O silêncio de morte

(quando silenciar-se é fatal)

No início do mês de novembro, a Igreja nos convida a meditar sobre a morte. É a comemoração de todos os fiéis defuntos. Dia de silenciar-se e meditar sobre o mistério da morte, que diz respeito a todos nós.

Às vezes, porém, para salvar uma vida é necessário falar. Uma gestante em desespero precisa de uma palavra de conforto para desistir do aborto e aceitar o bebê como uma bênção de Deus. Em tais casos, deixar de falar é um pecado de omissão. É um silêncio que conduz à morte.

As leis que asseguram o direito à vida, a começar pela Constituição, devem ser claras. Não basta dizer “todos têm direito à vida”. É necessário acrescentar as sagradas palavras “desde a concepção” para afugentar o fantasma do aborto.

Infelizmente, durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), houve um esforço contínuo do relator deputado Bernardo Cabral (PMDB/AM) por excluir toda proposta de emenda que visasse o acréscimo daquelas três palavras vitais: “desde a concepção”.

Bom começo

Em 01/02/1987, foi instalada a Assembleia Nacional Constituinte, organizada em oito Comissões Temáticas, cada uma delas dividida em três Subcomissões Temáticas, destinadas a discutir os diversos temas do novo texto da Constituição. A Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher estava dividida em três Subcomissões, entre elas a Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais. Em 11/05/1987, o deputado Darcy Pozza (PDS/RS), relator desta última Subcomissão, apresentou um anteprojeto que previa expressamente a punição do crime do aborto diretamente provocado[1].

Art. ( … ) São direitos e garantias individuais:

I – a vida; não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de trabalhos forçados, de banimento ou confisco, ressalvados, quanto à pena de morte, a legislação aplicável em caso de guerra externa e, quanto à prisão perpétua, os crimes de estupro ou sequestro seguidos de morte; será punido como crime o aborto diretamente provocado.

Em 23/05/1987, a Subcomissão aprovou o Anteprojeto com a seguinte redação:

Art. ( … ) São direitos e garantias individuais:

I – a vida, desde a sua concepção até a morte natural, nos termos da lei.

Pela primeira vez apareceu a concepção como marco inicial do direito à vida.

Giro de 180 graus

A Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, porém, não acatou o texto da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais. Em 12/06/1987, o relator deputado Paulo Bisol (PSDB/RS) apresentou um Substitutivo na Comissão, que passou a negar qualquer direito ao nascituro:

Art. 3º – São direitos e liberdades individuais invioláveis:

I – A VIDA, A EXISTÊNCIA DIGNA E A INTEGRIDADE FÍSICA E MENTAL.

a) Adquire-se a condição de sujeito de direitos pelo nascimento com vida.

Essa redação foi aprovada e passou a fazer parte do Anteprojeto da Comissão, de 15/06/1987.

O que a Comissão fez foi uma interpretação pró-aborto do controvertido artigo 4º do Código Civil de 1916 (correspondente ao artigo 2º do atual Código, de 2002) e colocar tal suposto direito ao aborto no texto da Constituição[2]. Dizer que antes de nascer com vida a criança não tem direitos equivalia a liberar a prática do aborto.

Esse horrível texto foi aceito integralmente na Comissão de Sistematização pelo relator deputado Bernardo Cabral (PMDB/AM). Em 26/06/1987, ele apresentou um Anteprojeto de Constituição em que o dispositivo aparecia integralmente, apenas com a mudança de número do artigo: de 3 para 13.

Em 09/07/1987, o relator Bernardo Cabral apresentou na Comissão de Sistematização um Projeto de Constituição, com redação idêntica à do Anteprojeto, apenas trocando o número do artigo: de 13 para 12.

Em agosto de 1987, Bernardo Cabral apresentou seu primeiro Substitutivo ao Projeto de Constituição. Desta vez apareciam os “direitos concernentes à vida”, sem dizer, porém, quando começam tais direitos.

Art. 6º – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à integridade física e moral, à liberdade, à segurança e à propriedade.

Em outubro de 1987, o mesmo Bernardo Cabral apresentou um segundo substitutivo ao Projeto de Constituição, desta vez sem mencionar o direito à vida entre os direitos individuais e coletivos:

Art. 6º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Tal redação passou a fazer parte do chamado Projeto de Constituição (A), entregue em 24/11/1987.

Em 5 de julho de 1988, no fim do primeiro turno de votação e discussão no Plenário, Cabral apresentou o Projeto de Constituição (B), em que reaparecia o direito à vida, mas sem mencionar um marco inicial.

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, assegurada aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

A mesma redação foi mantida no Projeto (C) – fim do segundo turno – entregue em 08/09/1988, apenas mudando o número do artigo de 5º para 4º. No Projeto (D), da Comissão de Redação, aprovado em 22/09/1988, o citado artigo voltou a ter o número 5º, com idêntica redação. É a redação com que a Constituição foi promulgada em 05/10/1988, e que permanece até hoje.

A navalha de Cabral

Para que o atual artigo 5º da Constituição tivesse a redação que tem atualmente, assegurando a “todos” o direito à vida, sem mencionar quando começa tal direito, foi preciso que repetidas vezes o relator Bernardo Cabral fizesse uso de sua navalha afiada, cortando e rejeitando todas as propostas de emenda que incluíssem as palavras “desde a concepção” após “direito à vida”. Entre tais emendas estava a de uma deputada católica, amicíssima de Dom Eugênio Sales (Rio de Janeiro) e de Dom Manoel Pestana (Anápolis), proposta na Comissão de Sistematização em 01/07/1987: a emenda CS05377-0.

Ao rejeitar tais emendas, Cabral usou os seguintes argumentos:

  • A expressão “desde a concepção” já estava no Código Civil, de modo que seria desnecessário inseri-la na Constituição.
  • Tal matéria deveria ser abordada pela legislação “ordinária” ou “complementar” ou “em etapa posterior do processo legislativo”, não havendo necessidade de prevê-la ou inseri-la no texto.
  • A regulamentação do aborto merecia “discussão mais específica” e deveria ser tratada pela legislação penal “em ocasião mais favorável”

O Destaque da Emenda Sotero Cunha

Em 27/05/1988, o deputado Sotero Cunha (PDC/RJ) requereu a votação em separado (“destaque”) de uma emenda (N.º 70) que dava ao § 4º do artigo 263 do Projeto de Constituição (A) a seguinte redação:

Art. 263. ……………………………………………………………………………..

      • 4º É garantido a homens e mulheres o direito de determinar livremente o número de seus filhos e o planejamento familiar, sem infringir o princípio de proteção da vida desde a concepção[3].

O presidente da Assembleia, deputado Ulysses Guimarães (PMDB/SP), logo identificou o tema: “Evidentemente é o problema do aborto”. E deu a palavra a diversos constituintes para falarem a favor ou contra a emenda. O relator Bernardo Cabral pediu a palavra e disse:

Este assunto sofreu debate aceso na Comissão de Sistematização e, àquela altura, ficou praticamente acertado entre os Constituintes que não deveria figurar no texto constitucional, seja a favor ou contra o aborto, que ficou para a legislação penal.

Mantenho a minha posição. […] … sou contra a emenda.

Feita a votação, o resultado foi:

SIM – 123

NÃO – 231

ABSTENÇÃO – 22

TOTAL – 376

A emenda foi, portanto, rejeitada, frustrando-se a última tentativa de incluir as palavras “desde a concepção”. Surpreendentemente, entre as 22 abstenções estava a da famosa deputada católica, que, quase um ano antes, havia proposto uma emenda no mesmo sentido da de Sotero Cunha. O Cardeal Eugênio Sales num primeiro momento recusou-se a acreditar na notícia. A deputada tentou justificar-se dizendo que tais palavras haviam-se tornado desnecessárias (!), uma vez que, o artigo 227 havia assegurado à criança, com absoluta prioridade, o direito à vida:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, …[4].

Segundo a deputada, assegurar o direito à vida à “criança” equivaleria a assegurá-lo ao nascituro, uma vez que o Preâmbulo da Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1959, dizia:

… a criança, em decorrência de sua imaturidade física e mental, precisa de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento.

Porém, uma declaração da ONU é vista geralmente como uma carta de intenções, sem a força de um tratado ou convenção. Além disso, a Declaração fala da criança “antes do nascimento”, mas não diz a partir de que época antes do nascimento. E acima de tudo, que mal faria incluir as palavras “desde a concepção” no texto constitucional?

Reação de Dom Pestana

Em algum dos inúmeros momentos em que Bernardo Cabral rejeitou incluir ou excluiu as palavras “desde a concepção” após o “direito à vida”, Dom Manoel Pestana Filho enviou-lhe um telegrama dizendo mais ou menos assim: “Vossa Excelência passará à história como aquele que abriu as portas para a matança dos inocentes. Que esse sangue caia sobre Vossa Excelência e sobre seus filhos”. Ao que Cabral respondeu: “Tire daí os meus filhos”.

Quanto à famosa deputada católica que, à última hora, absteve-se de votar a favor da Emenda Sotero Cunha, eis o que Dom Pestana escreveu: “Suas mãos nunca se limparão desse sangue”. Segundo referiu o Bispo, a abstenção daquela parlamentar deveu-se a um acordo feito para obter a aprovação do regime parlamentarista. Mesmo negociando o inegociável – a clareza do direito à vida – a deputada não obteve o seu intento. Acabou prevalecendo na Constituição não o parlamentarismo, mas o presidencialismo.

Na verdade, o Bispo de Anápolis não desejava um castigo estendido aos filhos de Cabral, nem desejava que aquela parlamentar não se purificasse de sua falta. Mas o estilo contundente lembrava a gravidade do pecado cometido e as gravíssimas consequências dele resultantes.

ADI 3510: o silêncio de morte.

Em 2005, o Procurador Geral da República Cláudio Fonteles ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510 contra o artigo 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), que permitia a morte provocada de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia com suas células-tronco. O argumento principal foi a “inviolabilidade do direito à vida”, prevista no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

O relator, Ministro Ayres Britto, em 5 de março de 2008, votou pela improcedência do pedido formulado na ação. Em sua argumentação, ele falou do silêncio da Constituição sobre o início da vida e de sua inviolabilidade.

A inviolabilidade de que trata o artigo 5º é exclusivamente reportante a um já personalizado indivíduo (o inviolável é, para o Direito, o que o sagrado é para a religião). E como se trata de uma Constituição que sobre o início da vida humana é de um silêncio de morte (permito-me o trocadilho), a questão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direito infraconstitucional e em que medida[5].

Servindo-se do “silêncio de morte” da Constituição Federal, Ayres Britto foi procurar na controvertida redação do artigo 2º do Código Civil algo sobre o início da personalidade. Desconsiderando a segunda parte (“a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”), ele se fixou na primeira (“a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”) e concluiu que é só após ter nascido vivo que o ser humano tem o inviolável direito à vida assegurado pela Constituição. Assim, os embriões humanos não são pessoas, não têm direitos, e podem ser livremente mortos para fins de pesquisa ou terapia com suas células-tronco. O voto do relator foi acompanhado pela maioria dos ministros, e o pedido da ADI 3510 foi rejeitado. As palavras “desde a concepção”, consideradas por alguns desnecessárias ou redundantes, naquele momento teriam salvado a vida de pessoas humanas em estágio embrionário. E hoje teriam salvo tantos bebês mortos até no terceiro trimestre sob a falsa alegação de que tais abortos são “legais”.

Como costumava dizer o saudoso Dom Pestana: não sabemos o mal que fazemos quando deixamos de fazer o bem.

São Paulo, 06 de novembro de 2024

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Vice-presidente do Pró-Vida de Anápolis.

[1] Aborto diretamente provocado ou aborto direto é aquele “querido como fim ou como meio”. Constitui sempre uma “desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente” (Cf. S. João Paulo II, Evangelium vitae, n. 62).

[2] O artigo 4º do Código Civil de 1916 dizia: “A personalidade civil do homem começa do seu nascimento com vida; mas a lei pões a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. A primeira parte negava que o nascituro fosse pessoa. Mas a segunda parte o afirmava, concedendo ao nascituro direitos (e não meras expectativas de direitos) desde a concepção.

[3] Cf. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 27 maio 1988, p. 10833 a 10836.

[4] Essa é a redação original do artigo. Posteriormente, ele seria modificado pela Emenda 65, de 2010, para incluir “ao jovem” após “à criança e ao adolescente”.

[5] ADI 3510. Voto do relator, 5 mar. 2008, n. 24, p. 26. Os destaques são do original.

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