O blefe dos abortistas

(publicado pela Folha de São Paulo em 24/04/98 na página 3)

Dizem que os jogadores de pôquer jogam ou apostam dando a entender que possuem cartas altas, quando na verdade não as têm. O adversário, intimidado pelo suposto poder do outro, acaba por render-se ou entregar os pontos. Esta estratégia, conhecida como “blefe” consiste em “jogar verde para colher maduro“. O jogador convence o inimigo de que já está com o jogo ganho, e de que é inútil resistir. Ora, isto não é a verdade, mas apenas um desejo. Se o outro acreditar, e se render, este desejo passará a ser verdade.

É o que está acontecendo atualmente na guerra feroz pela legalização do aborto. Os abortistas mentem dizendo que no Brasil o aborto já é legal em dois casos desde 1940, quando o Código Penal foi promulgado. Afirmam e repetem que matar um inocente em tais casos é um “direito” adquirido. E que o exercício de tal “direito” não requereria nada além de uma simples “regulamentação”. Para tanto, dizem, nem haveria necessidade de uma lei federal. Tudo se resolveria por uma “portaria” do Ministério da Saúde.

Todo o parágrafo acima contém não o que é verdade, mas aquilo que os abortistas querem que se torne verdade. Atualmente o aborto no Brasil é ilegal em todos os casos, inclusive quando praticado como um “meio” (?) para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de um estupro. O chamado “aborto legal” simplesmente não existe. É uma fantasia, muito viva e brilhante no sonho dos abortistas de nossa pátria. Mas apenas uma fantasia.

Ora, o desejo deles é que esta fantasia se torne realidade. A estratégia usada tem sido repetir muitas vezes a mentira de que esta fantasia já é real, de que o aborto já é legal em dois casos, de que já existe uma brecha em nossa legislação que permite violar o direito à vida. Se os incautos acreditarem, e acabarem por concordar que esta batalha já está perdida, e assim entregarem os pontos, então os partidários do aborto se aproveitarão desta rendição para tornar seus sonhos reais.

Se o leitor é jurista ou estudante de Direito, já deve estar abrindo o Código Penal para mostrar-me o famigerado artigo 128 e “provar-me” que o aborto legal já existe no Brasil. Leia o artigo, mas leia-o com cautela:

“Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal

A redação é clara. Não está escrito “não constitui crime” mas tão-somente “não se pune“. O médico que pratica aborto nesses dois casos comete crime, embora esteja isento de punição.

O mesmo acontece com o furto quando praticado em prejuízo do ascendente, descendente ou cônjuge. O artigo 181 do Código Penal diz que nestes casos o criminoso fica “isento de pena”. Mas ninguém de bom senso chamaria de “furto legal” àquele que é praticado pelo filho contra o pai, simplesmente porque tal furto não se pune. Nem ousaria dizer que é um “direito” dos filhos furtar dos pais. E muito menos chegaria ao cúmulo de dizer que tal “direito” deveria ser exercido com o financiamento do Estado, sugerindo que as escolas públicas ensinassem às crianças a maneira mais segura de surrupiar coisas dos pais.

A seguir, o depoimento de alguns juristas:

Demais disso, convém lembrar, logo de imediato, que o art. 128, CP, e seus incisos, não compõem hipóteses de descriminalização do aborto. Naquele artigo, não está afirmado que “não constitui crime” o aborto praticado por médico nas situações dos incisos I e II. O que lá está dito é que “não se pune” o aborto nas circunstâncias daqueles incisos. Portanto, em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas – o que a legislação infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo – não será punido penalmente, por razões de política criminal” (MARCO ANTÔNIO SILVA LEMOS, Juiz de Direito no Distrito Federal, O alcance da PEC 25/A/95, publicado no Correio Braziliense, 18/12/1995, Caderno Direito e Justiça, página 6; os grifos são do original).

Felizmente, para o nosso Código Penal, o aborto é sempre ilegal. O seu artigo 128 não descrimina os abortos sentimental e necessário, mas, tão-só, por motivo de política criminal, deixa de puni-los.

Basta, para que se chegue a essa conclusão, que se compare a redação por ele dada ao artigo 23, onde se faz referência às justificativas, ‘não há crime quando…’, com a do artigo 128, ‘Não se pune’” (JOSÉ GERALDO BARRETO FONSECA, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, carta, 12/2/1997)

Matar alguém é crime. A interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção é crime de aborto. A lei penal não contempla a figura do aborto legal, mas torna impunível o fato típico e antijurídico em determinadas circunstâncias. A impunibilidade, vale a pena enfatizar, não desnatura o delito. Este é um fato típico e antijurídico. A culpabilidade é o elemento que liga a conduta prevista na lei e contra o direito à punibilidade. Portanto, o aborto é ilegal” (JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, carta, 5/2/1997)

Quando o legislador penal, no artigo 128 do Código Penal, prescreve que ‘não se pune o aborto praticado por médico (I) se não há outro meio de salvar a vida da gestante, e (II) se a gravidez resulta de estupro…’, não se está ‘descriminalizando’ tais abortos nem tornando lícitas condutas antes ilícitas (‘legalizando’) nem excluindo a antijuridicidade dos abortos provocados” (VICENTE DE ABREU AMADEI, Juiz de Direito da 1ª Vara Criminal de Osasco – SP, Ilusão do necrodireito fetal e aborto na rede hospitalar pública, Osasco, fev. 1997, p.2)

Quanto ao aborto, a lei diz “não se pune”. Suprime a pena. Fica o crime” (WALTER MORAES, Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, O problema da autorização judicial para o aborto, Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, março/abril 1986, p. 21)

Por isso, é absurdo, é patente falta de cultura jurídica – eu diria mesmo, falta de bom senso – falar em aborto legal nas hipóteses em que o aborto direto não se pune” (RICARDO HENRY MARQUES DIP, Juiz do Tribunal da Alçada Criminal de São Paulo, carta, 6/1/1997; o grifo é do original)

Esta expressão “não se pune” não é nada agradável à tese abortista. Alguns penalistas já lamentaram que ela existisse, e várias tentativas houve ao longo dos anos de trocá-la por “não constitui crime”. A mais recente tentativa foi a da Comissão de “Alto Nível” (sic) do Ministério da Justiça que elaborou o Anteprojeto do Código Penal. Sorrateiramente, sem que ninguém fizesse propaganda, o “não se pune” foi trocado por “não constitui crime” (cf. Diário Oficial da União, 25/3/98, p.1).

Ingenuamente a imprensa noticiou que o Anteprojeto pretendia “acrescentar mais um caso de aborto legal” (o aborto eugênico, em homenagem póstuma aos nazistas). Na verdade o que a nova redação quer fazer é bem outra coisa: criar a figura do aborto legal (que hoje não existe), dando ao cidadão o “direito” de eliminar a vida do nascituro em três casos.

Anápolis, 10 de abril de 1998.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

 

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