(a resposta a esta dúvida tem causado perplexidade)
Várias vezes a Igreja se pronunciou contra a laqueadura usada para impedir os riscos de uma futura gravidez. Pio XII já dizia que em tal caso não se pode aplicar o princípio da totalidade:
Nesse caso, o perigo que corre a mãe, não provém, nem direta nem indiretamente, da presença ou do funcionamento normal das trompas […]. O perigo não aparece a não ser que a atividade sexual livre leve a uma gravidez. Faltam as condições, que permitiriam dispor duma parte, a favor do todo, em virtude do princípio da totalidade. Portanto, não é permitido intervir nas trompas sadiasEm 1975, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé emitiu um documento em resposta a perguntas da Conferência Episcopal dos Estados Unidos sobre a esterilização nos hospitais católicosToda esterilização que por si mesma, isto é, por sua própria natureza e condição, tem por único efeito imediato tornar a faculdade generativa incapaz de procriar, deve ser considerada esterilização direta […]. Por isso, não obstante qualquer boa intenção subjetiva daqueles cujas intervenções são inspiradas pelo cuidado ou pela prevenção de uma doença física ou mental prevista ou temida como resultado de uma gravidez, tal esterilização permanece absolutamente proibida segundo a doutrina da Igreja.
Em 1993, a mesma Congregação reforçou sua posição ao responder sobre a histerectomia (remoção do útero) e o “isolamento uterino”(= laqueadura tubária) feitos para evitar os riscos de uma futura gravidez… para tornar estéreis os futuros atos sexuais férteis, livremente realizados. O fim de evitar os riscos para a mãe, derivantes de uma eventual gravidez, vem, portanto, perseguido por meio de uma esterilização direta, em si mesma sempre moralmente ilícita […].
No dia 03.01.2019, porém, o Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé publicou uma estranha “Resposta” da Congregação para a Doutrina da Fé, assinada em 10.12. 2018 pelo prefeito Cardeal Luís Ladaria, a uma “dúvida sobre a liceidade da histerectomia em certos casos”Dúvida:É lícito retirar o útero (histerectomia) quando o mesmo encontra-se irreversivelmente em um estado tal de não poder ser mais idôneo à procriação, tendo os médicos especialistas chegado à certeza de que uma eventual gravidez levará a um aborto espontâneo antes da viabilidade fetal?
Resposta: Sim, porque não se trata de esterilização (sic!).
Leiamos e comentemos passo a passo a “Nota ilustrativa”:
A dúvida refere-se a alguns casos extremos, recentemente submetidos a Congregação para a Doutrina da Fé, que constituem uma situação diferente daquela a qual foi dada resposta negativa no dia 31 de julho de 1993. O elemento que torna essencialmente diferente a atual questão é a certeza alcançada pelos médicos especialistas de que em caso de gravidez, esta se interromperia espontaneamente antes que o feto chegue ao estado de viabilidade. Aqui não se trata de dificuldade ou de riscos de maior ou menor importância, mas da impossibilidade de procriar de um casal.
Comentário: O caso não difere do tratado na resposta negativa de 1993. Se a criança foi concebida, o casal já procriou. Um futuro e eventual aborto espontâneo não caracteriza uma “impossibilidade de procriar”.
O objeto próprio da esterilização é o impedimento da função dos órgãos reprodutivos, enquanto a malícia da esterilização consiste na rejeição da prole: é um ato contra o bonum prolis. No caso contemplado na questão, ao contrário, sabe-se que os órgãos reprodutivos não são capazes de manter um concebido até a viabilidade, ou seja, não são capazes de realizar sua função procriadora natural. O propósito do processo de procriação é dar à luz uma criatura, mas neste caso o nascimento de um feto vivo não é biologicamente possível. Portanto, se está diante não somente de um funcionamento imperfeito ou arriscado dos órgãos reprodutivos, mas de uma situação na qual o propósito natural de dar à luz a uma prole viva não é possível.
Comentário: No caso acima não foi dito que os órgãos reprodutivos não são capazes de gerar, mas tão somente que “não são capazes de de manter um concebido até a viabilidade”. Logo, a criança é concebida. O problema não está na procriação, mas sim no desenvolvimento embrionário, que é posterior a ela. Portanto, a mulher é fértil e a remoção do útero tem por fim causar a sua esterilidade.
A intervenção médica não pode ser julgada como antiprocriativa, porque se está diante de um contexto objetivo no qual nem a procriação nem consequentemente a ação antiprocriativa são possíveis. Retirar um sistema reprodutivo incapaz de levar adiante uma gravidez não pode ser qualificado como esterilização direta, que é e permanece intrinsecamente ilícita como fim e meio
Comentário: No caso acima, a procriação é possível, mas se tornará impossível após a remoção do útero (histerectomia). O único fim da histectomia em tal caso é tornar a mulher estéril, a fim de que ela não procrie (e assim a prole concebida não sofra aborto espontâneo). Logo, trata-se de uma esterilização direta, que, embora feita com boa intenção, é e sempre foi proibida pela Igreja.
O problema dos critérios para avaliar se a gravidez pode ou não ser prolongada até o estado da viabilidade fetal é uma questão médica. Do ponto de vista moral, deve-se exigir que seja alcançado o grau máximo de certeza possível pela medicina, e, nesse sentido, a resposta dada é válida para a questão, uma vez que foi colocada com reta intenção.
Comentário: “Em Medicina, nem sempre nem nunca”, diz um provérbio. Há apenas probabilidades. Com frequência as previsões dos médicos são desmentidas pelos fatos. Até do ponto de vista prático, a resposta seria inaplicável.
Além disso, a resposta à dúvida não diz que a decisão de praticar a histerectomia é sempre a melhor, mas apenas sob as condições acima mencionadas é uma decisão moralmente lícita, sem, portanto, excluir outras opções (por exemplo, recorrer aos períodos inférteis ou a abstinência total). Cabe aos cônjuges, em diálogo com os médicos e com o diretor espiritual, escolher o caminho a seguir, aplicando ao próprio caso e às circuntâncias os critérios graduais normais da intervenção médica.
Comentário: O recurso aos períodos inférteis (continência periódica) ou a abstinência total (continência absoluta) continuam sendo as únicas opções moralmente lícitas para adiar, por motivos graves, uma nova concepção.
Conclusões:
Várias pessoas, incluindo antigos alunos de Bioética, mostraram-se perplexas com a nova “Resposta” da Congregação para Doutrina da Fé, que contradiz o que o Magistério sempre ensinou sobre a malícia intrínseca de “toda ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento de suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação”O fim da remoção do útero (histerectomia) no caso acima é, em previsão de atos conjugais futuros, livremente praticados, tornar impossível a procriação. Todo problema gira em torno da confusão que o texto faz entre procriação e nascimento com vida. Tal confusão é perigosa, pois poderia servir para alguém argumentar em favor do aborto, uma vez que, antes de nascer com vida, nem sequer teria havido procriação!
A própria pergunta é estranha, pois, na situação descrita, um médico não pensaria em remover o útero. Pensaria em ligar as trompas, que é muito mais simples e produz o mesmo efeito (esterilizador). A pergunta sobre a histerectomia estaria porventura preparando uma nova pergunta sobre a laqueadura tubária?
Ao contrário das respostas de 1975 e 1983, esta resposta (de 2018) ainda não foi publicada na Acta Apostolicae SedisAnápolis, 16 de março de 2020.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis