A grande diferença

(qual a “grande diferença” que existe entre os riscos de uma gravidez normal e os riscos de uma gravidez de um anencéfalo?)

Para justificar o aborto de bebês anencéfalos — com o eufemismo de “antecipação terapêutica de parto” (ATP) — costuma-se dizer:

a) ou que o anencéfalo, por não emitir ondas cerebrais, não é vivo;
b) ou que a sua gravidez causaria riscos à vida da gestante, riscos estes evitáveis pelo aborto.

Sobre essas questões, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já foi consultado pela Corregedoria do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) (1). Vale a pena transcrever as respostas dadas pelo presidente do CFM, Dr. Edson de Oliveira Andrade, em 26 de maio de 2003 (2):

1. Com que idade inicia-se a atividade cerebral no embrião-feto?

R.  A atividade elétríca cerebral surge no embrião por volta do 2º ou 3° mês, conforme Borkowski e Bernstine descrito em Eletrencefalografia de Enrique A. Delamônica.

2. Deve-se considerar a ausência de atividade cerebral como ausência de vida?

R: A ausência de atividade elétríca cerebral por si só é insuficiente para se considerar ausência de vida, já que a vida pode ser entendida como um modo de organização, de ser, de existência que depende totalmente do universo físico e está presente já na concepção do feto.

3. A atividade cerebral em um ser intra-uterino, embrião ou feto, é fator determinante para considerá-lo ser vivo?

R: A vida não pode ser reduzida apenas à atividade elétrica cerebral. Entendo que a junção do espermatozôide com o óvulo já formam um ovo vivo. A vida já está nas células do concepto, caso contrário ele não se desenvolveria, não cresceria e não nasceria.

4. Um embrião, antes da presença da atividade cerebral, deve ser considerado como uma massa orgânica com ausência de vida?

R: Esta questão já está respondida na anterior.

[…]

7. Um feto anencéfalo por não apresentar atividade cerebral, poderá ter o diagnóstico de ausência de vida embrionária/fetal tornando-o, não um ser vivo, mas um resto ovular intra-uterino?

R. Um feto anencefálico deve, sob o ponto de vista de definição como vimos em quesito anterior, ser considerado um ser vivo, mas com chance estatística de 100% de estar morto durante ou na primeira semana após o nascimento.

Como se pode perceber, as respostas foram dadas com bom senso. Reconheceu-se que o anencéfalo não é uma “coisa” nem um “resto ovular intra-uterino”, mas um autêntico ente humano vivo. Infelizmente, Dr. Edson enganou-se ao assegurar que o anencéfalo jamais vive além de uma semana após o nascimento. A anencéfala Maria Teresa, filha de Ana Cecília Araújo Nunes (Fortaleza – CE), nascida em 17 de dezembro do ano 2000, teve alta hospitalar e morreu em 29 de março de 2001, ou seja, com mais de três meses de nascida! (3). O Comitê de Bioética do Governo Italiano informa que “foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer à respiração mecânica” (4).

Vejamos agora o que respondeu o presidente do CFM acerca da ocorrência de poliidrâmnio (5) em gestação de anencéfalos e do risco causado à mãe (6).

1. Polidrâmnio (7) é a patologia exclusiva de gestações com fetos acrânicos/anencéfalos?

R: Não.

[…]

12. Em caso de resposta negativa do quesito 1, deve-se considerar risco de vida para a gestante com polidrâmnio, sem feto acrânico/anencéfalo, pela possibilidade dos comprometimentos que, porventura venham a causar, ainda que não os tenha presente?

R: Depende da patologia e da intensidade do polidrâmnio. Algumas, como o diabetes e o polidrâmnio idiopático (8), podem ser tratadas clinicamente e ter o volume de liquido amniótico revertido. Se não há comprometimentos presentes relacionados ao polidrâmnio, o risco existe, mas não é iminente e poderá ser evitado em algumas situações. A grande diferença está em que nos outros casos de polidrâmnio o feto tem boa expectativa de vida, o que não acontece no caso de fetos acrânio/anecéfalo (9). Nesse caso julga-se que não se justifica submeter a mulher a risco de vida quando não há expectativa de entregar a ela um filho vivo [O grifo é nosso].

Pela resposta acima, percebe-se que a anencefalia do bebê, ainda que acompanhada de poliidrâmnio, não oferece risco iminente para a mãe, e tal risco pode ser evitado. O que então, na opinião do presidente do CFM, justificaria o aborto do anencéfalo? “A grande diferença — diz ele — está em que nos outros casos de poliidrâmnio o feto tem boa expectativa de vida“. Em outras palavras, a gravidez de anencéfalo não oferece riscos especiais, muito menos o aborto seria o “único meio” de eliminar tais riscos. A “grande diferença” é que a criança anencéfala, por ser gravemente deficiente, não merece ser carregada pela mãe, trazendo-lhe os transtornos e riscos que qualquer gestação traz. A “grande diferença” é que o custo da criança é inferior ao benefício que ela vai trazer para a mãe.

A premissa que está por trás de todo esse raciocínio é a de que a vida humana não vale em si mesma. Vale se tiver qualidade, vale se tiver alguma duração “razoável”, mas não tem valor intrínseco. A criança anencéfala não merece ser amada até o último momento. Convém que seja expulsa do útero e descartada.

Tal aborto, portanto, não pode jamais ser chamado de “terapêutico”. O nome correto é aborto eugênico. Seu fim é eliminar o que está com defeito, como se faz em um controle de qualidade industrial.


Em resumo:

1) A não emissão de ondas cerebrais é irrelevante para a caracterização da existência de um indivíduo humano vivo. Logo, não se pode dizer que o aborto de anencéfalos seja “atípico”.

2) Uma gestação de bebê anencéfalo não oferece qualquer risco extraordinário em relação às gestações de bebês normais. O poliidrâmnio também ocorre em gestações normais e é facilmente tratável por uma drenagem do líquido amniótico. O aborto não é “meio” para salvar a vida da gestante, e muito menos o “único meio”. Logo, não se pode dizer que o aborto de anencéfalos seja “terapêutico”.

3) A única “justificativa” do aborto em tal caso é o desprezo ou menosprezo pelo nascituro em razão de sua grave deficiência e curta expectativa de vida. Trata-se de um verdadeiro aborto eugênico.

4) Percebe-se como é absurda a Resolução 1.752/2004, do mesmo Conselho Federal de Medicina, que, em 08 de setembro de 2004 chamaria o anencéfalo de “natimorto cerebral” (sic), permitindo a extração de seus órgãos para fins de transplante, mesmo com o tronco cerebral ainda funcionando.

Anápolis, 10 de fevereiro de 2006.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis

(1) Processo Administrativo 08190.027167/02-48
(2) Folhas 355 a 356 dos autos do referido processo administrativo.
(3) A história de Maria Teresa pode ser lida em www.providaanapolis.org.br/mteresa.htm
(4) Comitato nazionale per la bioetica. Il neonato anencefalico e la donazione di organi21 giugno 1996. p. 11. O Comitê Nacional de Bioética do governo italiano é composto por estudiosos das mais diversas áreas, em coerência com a natureza intrinsecamente pluridisciplinar da Bioética: médicos, juristas, psicólogos, sociólogos, filósofos. A declaração italiana está disponível emhttp://www.providaanapolis.org.br/cnbital.pdf. A versão portuguesa está disponível em http://www.providaanapolis.org.br/cnbport.htm
(5) Excesso de água na bolsa amniótica, fato que ocorre também em gravidezes em que a criança é normal.
(6) Folhas 351 a 352 dos autos do referido processo administrativo.
(7) Além de “poliidrâmnio” usa-se a variante “polidrâmnio”.
(8) Poliidrâmnio idiopático é o que ocorre em gravidezes normais, sem causa conhecida. Segundo uma conceituada médica de saúde pública do Rio de Janeiro, Dra. Lucinda Maria Ciuffo (CRM 52 20412-2), em 60% dos casos os poliidrâmnios são idiopáticos.
(9) Provavelmente o médico quis escrever “acrânicos/anencéfalos”.

 

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