Como se não houvesse amanhã

Antonio Henrique C. da Silva
(Juiz Federal)
[Jornal do Brasil, 02/AGO/2004]
http://www.jb.com.br/jb/papel/opiniao/2004/08/01/joropi20040801004.html

No debate sobre a possibilidade de abortamento legal de crianças anencefálicas, não são poucos os preconceitos presentes nos argumentos pró-abortamento. Dizendo-se defensores do ”Estado laico”, ilustres PhDs e seus seguidores interditam a voz da Igreja e de seus concordes, rotulando-as de mera superstição ou grossa hipocrisia. Tudo como se não houvesse qualquer embasamento logico e racional na posição diametralmente contraria. Ou como se a fides et ratio, a razão iluminada pela fé, não fosse cultivada desde Jesus Cristo. Ou ainda, como se os direitos fundamentais de nossa civilização (chamada não por acaso de ”judaico-crista”) não tivessem sido pacientemente gestados no seio da Igreja e sua tradição.

Com isso, evidentemente, passam ao largo do cerne da questão: se há no útero habitado uma vida humana digna de proteção, malgrado seus problemas. Tudo o mais é acessório, em vista da prioridade absoluta da proteção da vida humana frente aos demais bens jurídicos.

O óvulo fecundado forma uma seqüência genética inédita e irrepetível, a que se seguem meras reprodução e especialização celulares. É um organismo vivo, pois desenvolve funções fisiológicas. E é também humano, pois não há doença ou defeito congênito que lhe retire essa condição. E é, portanto, único em dignidade, ainda que sustentado por um filete de neurônios esparsos, durante um tempo muito breve.

Esse é o centro do problema. Esse postulado racional é que deve ser refutado no âmbito do debate para que alguma outra posição possa ter validade.

Qual a lógica em abandonar a proteção da vida presente em razão da ”inviabilidade” da vida futura? Por que, então, seguindo-se a mesma lógica, não se aplica a eutanásia compulsória a todos os doentes terminais, desesperançados e ”inviáveis” que oneram nossos sistemas de saúde com longas internações?

Que tipo de ponderação jurídica sacrifica uma vida antes de seu tempo em prol do bem-estar da mãe ou outro bem de claramente menor importância?

Como sequer pensar em sujeitar ao sufrágio popular o destino da vida inocente, um bem tão valioso que constitui o fundamento da própria civilização e a precondição de qualquer acordo que possa haver entre os homens?

Assim como a manipulável prova testemunhal foi, por muito tempo, rotulada de ”a prostituta das provas”, a dignidade humana tem se mostrado, infelizmente, ”a prostituta dos princípios”, pois presta-se a trabalhar em favor de qualquer interesse, mesmo aquele que fere de morte o primordial direito a vida, ao qual deveria estar indissoluvelmente associado. E um engano rotundo reduzir o principio da dignidade humana a simples garantia de não sofrimento. Caso assim fosse, já não seria mais possível ”sofrer com dignidade” diante dos inúmeros revezes da vida. E, de mais a mais, como a vida que jaz no útero já foi qualificada como humana, não há que se lhe negar dignidade e proteção, a não ser sob um ônus argumentativo muito pesado, um tanto incompatível com a anencefalia que vem marcando o debate.

A mensagem depositada há 2 mil anos nas mãos da humanidade é forte. Suas conseqüências, a auto-estima de quem é preferido pelo Senhor do Universo e a estima de quem enxerga no outro a mesma dignidade, conduzem a uma só opção: amar, radical, exageradamente, como se não houvesse amanhã.

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