A pajelança com as células-tronco

(um brilhante artigo da pesquisadora Alice Teixeira Ferreira, da Unifesp)

Fonte: O Globo, 20/08/2004, Primeiro Caderno, Editoria Opinião, página 7

Por volta de 1997 os pesquisadores europeus em biologia celular, e particularmente aqueles que estudavam a medula óssea, verificaram que certas células deste tecido, as células-tronco estromais possuíam a capacidade de gerar outros tecidos além das diferentes células que constituem o sangue. Eram responsáveis pela formação de cartilagens, osso e tecido adiposo (gordura) e eram muito importantes para a pega dos transplantes de medula nas crianças com anemia aplástica de Fanconi. Pesquisadores da Itália e aqui do Brasil descobriram que o autotransplante de células da medula óssea em roedores, nos quais se produziam lesões no coração (infarto ou doença de Chagas), curavam estas moléstias.

Desde 2001 pesquisadores brasileiros do Instituto do Milênio de Bioengenharia Tecidual vêm tirando pacientes da fila do transplante cardíaco com o sucesso do autotransplante de células-tronco adultas. Frente aos resultados, pesquisadores em todo o mundo resolveram desviar seus objetivos para a utilização das células-tronco embrionárias, visto serem totipotentes — a partir destas é que se forma todo organismo.

Tendo em vista os bons resultado com os autotransplantes, querem agora dar um salto fazendo uma pajelança com as células-tronco embrionárias humanas. Vão contra a ética, pois para obtê-las devem destruir embriões humanos, que consideram um amontoado de células, sem vida (!). Ora, se não têm vida, como podem ser utilizadas no tratamento de doenças degenerativas?

Também vão contra vários fatos científicos:

1) Se utilizarem células de embriões congelados como vão evitar a rejeição? Tomando imunossupressores o resto da vida? Por outro lado, existe alteração do DNA dos núcleos destas células cuja detecção não é possível, havendo, por isto, a possibilidade de gerar tumores. Aqui, deve ser lembrado que a má-formação de crianças geradas por reprodução assistida é três vezes maior que a natural. Se os embriões forem “descartáveis” por serem de viabilidade duvidosa, corre-se maior risco ainda.

2) A clonagem terapêutica, em que se produzem embriões com o genoma do paciente, para ser destruído e se obter as células-tronco cujo transplante não seja rejeitado. Mas se é doença genética, as células portarão o mesmo defeito.

A clonagem varia conforme a espécie animal. Até hoje não se conseguiu clonar primatas. Existe dúvida quanto às células-tronco embrionárias humanas obtidas na Coréia do Sul: não seria um teratoma (linhagem de células tumorais)?

Em resumo: não existe justificativa para se utilizar células-tronco embrionárias humanas na terapia de doenças degenerativas. Além do mais, torna-se necessário conhecer melhor os mecanismos que levam as células-tronco às lesões, bem como seu processo de diferenciação, antes de se propor como solução final de tais doenças. Corre-se o risco de repetir o que ocorreu com a terapia gênica.

Alice Teixeira Ferreira é professora de biofísica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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