A unidade da linguagem

(Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras – Gn 11,1)

“Pai, Filho e Espírito Santo são três deuses adorados pelos cristãos”. Essa afirmação gera uma repulsa imediata não só dos teólogos, mas de qualquer criança instruída no Catecismo da Doutrina Cristã. Pai, Filho e Espírito Santo não são três deuses: são três pessoas em um só Deus.

“Vim aqui para iniciar um processo de anulação de casamento”. Essa frase fere os ouvidos de um canonista. Ele imediatamente explicará que a Igreja não pode “anular” matrimônios já ratificados e consumados. O que ela faz é investigar se no ato da celebração houve algum vício que tornou o matrimônio inválido. A sentença de um tribunal eclesiástico não é constitutiva, mas declaratória. Ela nãotorna o matrimônio nulo; simplesmente declara que tal matrimônio nunca existiu, apesar das aparências de uma celebração válida.

Nos exemplos acima, a precisão da linguagem é fundamental, seja para a Teologia Dogmática, seja para o Direito Canônico. Não se admite, nem mesmo para o povo inculto, que as Pessoas Divinas sejam chamadas de “deuses” ou que se diga que a Igreja “anulou” um matrimônio que sempre foi nulo.

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Analogamente, um cristão defensor da vida deveria reagir prontamente quando alguém lhe diz que no Brasil o aborto é “permitido” como meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de estupro (art. 128, I e II CP). O Código Penal não fala em “permissão”. Sua redação é “não se pune”. A lei penal pode deixar de aplicar a pena a um crime já consumado, mas não pode dar “permissão” prévia para cometer um crime. Há certos atos que, embora ilícitos, não podem ser punidos (como punir alguém que praticou o suicídio?). Há outros em que a punição é desnecessária (é o caso do pai tremendamente amargurado por ter matado seu filho com um disparo acidental de arma de fogo). Há ainda outros em que o legislador considera a punição inconveniente, uma vez que a família sozinha pode resolver a questão (é o caso do furto praticado entre parentes). Mas uma coisa é isentar o criminoso de pena. Outra é dizer que o criminoso tem permissão de praticar o delito.

Essa distinção é importantíssima. Se o Código Penal pudesse “permitir” a morte deliberada e direta de um inocente (como é o caso do aborto diretamente provocado), a Constituição poderia ser lançada no cesto de lixo. De que valeria a “inviolabilidade do direito à vida” garantida solenemente pela Carta Magna (art. 5º, caput)?

Ora, no Brasil, não existe aborto “permitido” ou “legal”, mas todo é crime (haja ou não pena a ele associada). Sendo assim, um juiz não pode emitir uma sentença “autorizando” o aborto de uma criança concebida em um estupro (art. 128, II, CP), do mesmo modo que não pode “autorizar” que um filho furte de seu pai (art. 181, CP). Em ambos os casos não há pena para o criminoso. Mas o crime subsiste e não há, nem pode haver, permissão prévia para cometê-lo.

Se o aborto “legal” não existe, não podem existir os “serviços”[1] de aborto “legal” praticados pelos hospitais públicos com o dinheiro arrecadado de nossos tributos. Em tais casos, o Estado está simplesmente financiando o crime[2].

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Outra afirmação falsa, muito cara aos abortistas, que deveria suscitar reação imediata em quem defende a vida, é a de que “o nascituro não é pessoa”. De fato, diz a primeira parte do artigo 2º do Código Civil que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Mas esse texto legal tornou-se inaplicável por conflitar com o Pacto de São José da Costa Rica — assinado e ratificado pelo Brasil sem reservas — que garante ao nascituro o reconhecimento de sua personalidade “desde o momento da concepção[3]. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que esse Tratado Internacional “torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante[4]. Tornou-se inaplicável, assim, o artigo 652 do Código Civil (que admite a prisão do depositário infiel) e a primeira parte do artigo 2º do Código Civil (que não reconhece a personalidade do nascituro).

Dizer que o nascituro é pessoa não é, portanto, um simples sonho dos defensores da vida. É uma realidade jurídica vigente. E se ele é pessoa (e não simples “expectativa de pessoa”), tem direitos atuais (e não mera “expectativa de direitos”). Destroi-se assim pelas bases todo o edifício abortista.

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Os defensores do aborto — que aliás não têm compromisso com a verdade — são unânimes nos termos, na linguagem e nos argumentos empregados:

O nascituro não é pessoa. Só tem expectativa de direitos. No Brasil, o aborto é legal quando não há outro meio para salvar a vida da gestante. Também é legal quando a gravidez resulta de estupro. Em tais hipóteses, a prática do aborto é um direito da gestante e um dever do Estado.

O que é estarrecedor é ver tais fórmulas na boca de militantes pró-vida. Afirmar qualquer uma das frases acima é fazer um desastroso “gol contra”. Vejamos alguns trágicos exemplos.

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No dia 30 de maio de 2005, o então Procurador Geral da República Dr. Cláudio Lemos Fonteles ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510 (ADI 3510) contra o artigo 5° da Lei de Biossegurança (Lei n.º 11.105/05) alegando que a destruição de embriões humanos contraria a inviolabilidade do direito à vida previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.

Como era de se esperar, os adversários (Advocacia Geral da União, Consultoria Geral da União, Advocacia do Senado Federal e alguns “amici curiae”), a fim de defenderem o direito de matar embriões humanos, usaram a tese de que o nascituro não é pessoa e que não goza de direitos atuais.

Lamentavelmente, Dr. Fonteles, em sua réplica de 14/11/2005[5], concordou que o nascituro não é pessoa (!) perante o Código Civil pois “o nascimento com vida é que enseja aconteçam as relações interpessoais” (sic)[6]. Mas, segundo ele, essa negação da personalidade não impediria que a Constituição lhe assegurasse a inviolabilidade do direito à vida. Uma argumentação confusa, difícil de entender e difícil de convencer. Essa deficiência da argumentação parece ter sido a grande responsável pelo fracasso da ADI 3510 perante o Supremo Tribunal Federal.

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Hoje presenciamos a mais uma confusão conceitual e linguística na tramitação do projeto conhecido como Estatuto do Nascituro (PL 478/2007). A proposta, bem diferente da versão original apresentada pelo Pró-Vida de Anápolis, reconhece ao nascituro vários direitos, mas deliberadamente não ousa afirmar que ele é pessoa. Ora, adianta pouco dizer que o nascituro tem direitos, por numerosos que sejam, enquanto não se afirmar explicita e claramente que ele é pessoa. Vejamos.

Na vigência do antigo Código Civil (de 1916), já eram reconhecidos vários direitos ao nascituro. No entanto, por causa daquela infeliz afirmação de que “a personalidade civil do homem começa do seu nascimento com vida” (art. 4º, CC/1916, correspondente ao art. 2º, CC/2002), o Supremo Tribunal Federal interpretava tais direitos como mera “expectativa de direitos”. Leia-se a ementa do julgamento do Recurso Extraordinário 99038/MG, julgado em 18/10/1983:

CIVIL. Nascituro. Proteção de seu direito, na verdade proteção de expectativa, que se tornará direito, se ele nascer vivo. Venda feita pelos pais a irmã do nascituro. As hipóteses previstas no Código Civil, relativas a direitos do nascituro, são exaustivas, não os equiparando em tudo ao já nascido.

É, portanto, indispensável que o Estatuto do Nascituro declare que o nascituro é pessoa, a fim de evitar a triste interpretação acima pela Suprema Corte.

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Quando em 19/5/2010, o Estatuto do Nascituro foi votado na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), os deputados pró-aborto protestaram dizendo que a proposta extinguiria o “aborto legal” (art. 128, CP) no Brasil. Seria de se esperar que os deputados pró-vida replicassem que no Brasil não existe “aborto legal” a ser extinto. Foi, no entanto, triste presenciar como eles concordaram que o aborto legal existe (!) e afirmaram veementemente que o Estatuto do Nascituro não revogaria esse “direito” de abortar. A relatora do projeto Solange Almeida (PMDB-RJ) resolveu então, fazer uma complementação de voto, a fim de assegurar – pasmem! – que os direitos do nascituro concebido em um estupro (art. 13 da proposta) não extinguiriam o suposto direito de o médico matá-lo! Os direitos do bebê foram mantidos, porém, “ressalvados o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro” (sic). Quanta confusão!

Conclusão: enquanto os pró-vida não usarem a mesma linguagem e os mesmos argumentos, não conseguirão ir muito longe. Os abortistas, zombando deles, dirão: “esses homens começaram a construir e não puderam acabar” (cf. Lc 14,30).

Anápolis, 8 de setembro de 2011

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis



[1] ou “desserviços”.

[2] Cf. CRUZ, Pe. Luiz Carlos Lodi da. Aborto na rede hospitalar pública: o Estado financiando o crime. Anápolis: Múltipla, 2007.

[3] Eis alguns artigos do Pacto de São José da Costa Rica, que asseguram o reconhecimento da personalidade do nascituro:

Art. 1º, n. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

[4] Recurso Extraordinário 349703/RS, acórdão publicado em 05/06/2009.

[5] Subscrita por ele e pelo novo Procurador Geral da República Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.

[6] ADI 3510, Novo Parecer da Procuradoria Geral da República, 14 nov. 2005, p. 2.

 

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