(trata-se de uma questão fechada)
No dia 8 de agosto de 2022, para espanto de muitos, a Pontifícia Academia para a Vida (PAV) afirmou no Twitter que a encíclica “Humanae Vitae” (São Paulo VI, 1968) não deveria ser considerada parte dos “pronunciamentos infalíveis” da Igreja[1]. Assim, a condenação à anticoncepção nela contida não seria “irreformável”. Isso explicaria por que o livro “Ética teológica da vida”, publicado pela mesma Academia, tratasse a contracepção como uma questão aberta, sem que tivesse recebido um “não” definitivo do Magistério da Igreja.
É verdade que São Paulo VI, na sua histórica encíclica “Humanae Vitae” (HV), preferiu não incluir a formalidade de uma definição “ex cathedra” do Magistério Extraordinário. Mas a doutrina nela contida é infalível por fazer parte do ensinamento perene da Igreja
O que o Papa fez foi simplesmente reafirmar aquilo que já era crido e ensinado em toda parte (ubique), sempre (semper) e por todos (ab omnibus), conforme a célebre sentença de São Vicente de Lerins (†450): “Deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em toda a parte, sempre e por todos”[2].
Ao condenar a anticoncepção, São Paulo VI fez referência à encíclica “Casti conubii” de Pio XI (1930):
Chamando a atenção dos homens para a observância das normas da lei natural, interpretada pela sua doutrina constante, a Igreja ensina que qualquer ato matrimonial (quilibet matrimonii usus) deve permanecer aberto à transmissão da vida (HV, n. 11).
O texto da Casti Conubii a que fez referência a HV, foi este:
Qualquer uso do matrimônio, em que, pela humana malícia, o ato seja destituído de sua natural virtude geradora, vai contra a lei de Deus e da natureza, e aqueles que ousem cometer tais atos, tornam-se réus de culpa grave[3].
Pio XI reafirmou essa verdade porque os anglicanos, naquele ano (1930), pela primeira vez começavam a abrir brechas para a anticoncepção. É digno de nota que, no meio protestante, até aquele momento, era unânime a posição contrária à contracepção[4].
Nos Estados Unidos, Margaret Sanger, fundadora da IPPF[5], dedicou sua vida a criar casos judiciais que acabassem por afrouxar a interpretação das leis proibitivas da anticoncepção. O coroamento de sua obra foi a sentença “Griswold v. Connecticut” (1965), em que a Suprema Corte declarava que o casal tinha direito de usar anticoncepcionais porque isso estaria incluso no “direito à privacidade” protegido pela Constituição. No ano seguinte (1966), Sanger morreria sem ver a Suprema Corte reconhecer um direito ao aborto. Isso ocorreria em 1973, com a sentença “Roe versus Wade”, fruto da mentalidade contraceptiva por Sanger difundida. Note-se que, mesmo em um país de minoria católica, como os Estados Unidos, as leis civis proibiam e puniam a anticoncepção.
No Brasil, antigamente não só o aborto, mas também a anticoncepção constituía ilícito penal. Esta última estava incluída na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei N.º 3.688, de 3 de outubro de 1941):
Art. 20 – Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto ou evitar a gravidez;
Pena – multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.
Somente em 1979, a lei 6734/79 alteraria a redação do artigo 20 da Lei das Contravenções Penais, deixando de lado a contracepção. Hoje tal artigo vigora com a seguinte redação:
Art. 20 – Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto:
Pena – multa.
No livro do Gênesis, a Bíblia condena o pecado da anticoncepção. Vejamos:
Judá tinha um filho primogênito chamado Her, que se casou com uma mulher chamada Tamar. Her morreu sem deixar filhos. Quando isso ocorria, segundo a lei do levirato (do latim “levir” = cunhado), a viúva deveria casar-se com o irmão do falecido. “O primogênito que ela lhe der perpetuará o nome do irmão falecido, para que seu nome não desapareça de Israel” (Dt 25,6). Ora, o irmão de Her chamava-se Onã. Judá disse a Onã: “Une-te à mulher do teu irmão para cumprir a obrigação de cunhado e suscitar uma descendência para teu irmão” (Gn 38,8). Mas Onã sabia que o filho não seria considerado dele, mas de Her, para efeitos jurídicos. Que fez então?
Onã sabia que não seria sua a descendência; por isso, quando se unia à mulher do seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu irmão. O que Onã fez desagradou ao Senhor, que o fez morrer também (Gn 38,9-10).
O pecado de Onã, conhecido como onanismo ou coito interrompido, consistiu em interromper o ato conjugal antes da ejaculação, a fim de evitar a procriação. O castigo de Deus para esse pecado foi a morte.
Santo Agostinho reprovava severamente os casais que praticavam a anticoncepção:
Se marido e mulher assim pensam, não são cônjuges. Se desde o princípio assim pensaram, não se uniram pelo matrimônio, mas pelo pecado. E se, finalmente, só a mulher é que assim pensa, ou só o marido, ouso dizer que, de algum modo, degenerou aquela em meretriz do próprio marido, e este em adúltero da própria mulher[6].
Em 1991, na Exortação Apostólica “Familiaris Consortio”, São João Paulo II citava textualmente o ensinamento da “Humanae Vitae”:
É exatamente partindo da «visão integral do homem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas também sobrenatural e eterna» [HV 7], que Paulo VI afirmou que a doutrina da Igreja «se funda na conexão inseparável, que Deus quis e que o homem não pode quebrar por sua iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado procriador» [HV 12]. E conclui reafirmando que é de excluir, como intrinsecamente desonesta, «toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação» [HV 14] (S. João Paulo II, Familiaris Consortio, n. 32).
Em 1993, São João Paulo II, na encíclica “Veritatis Splendor”, considerada a carta magna da Moral Católica, assim confirmava a doutrina da “Humanae Vitae”:
Sobre os atos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas contraceptivas pelas quais o ato conjugal se torna intencionalmente infecundo, Paulo VI ensina: «Na verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com o fim de evitar um mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito, nem mesmo por gravíssimas razões, praticar o mal para se conseguir o bem (cf. Rm 3, 8), ou seja, fazer objeto de um ato positivo de vontade o que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo com o intuito de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares ou sociais» [HV 14] (S. João Paulo II, Veritatis Splendor, n. 80).
Em 1997, o Pontifício Conselho para a Família publicou um “Vade-mécum para os confessores sobre alguns temas de moral relacionados com a vida conjugal”, no qual se dizia que a malícia intrínseca da contracepção era uma doutrina definitiva e irreformável:
A Igreja ensinou sempre a malícia intrínseca da contracepção, isto é, de todo o ato conjugal tornado, intencionalmente, infecundo. Deve reter-se este ensinamento como uma doutrina definitiva e irreformável. A contracepção opõe-se gravemente à castidade matrimonial, é contrária ao bem da transmissão da vida (aspecto procriador do matrimônio), e à doação recíproca dos cônjuges (aspecto unitivo do matrimônio), lesa o verdadeiro amor e nega a função soberana de Deus na transmissão da vida humana (Pontifício Conselho para a Família. Vade-mécum para os confessores: temas de moral relacionados com a vida conjugal, n. 2.4)
Por fim, o Papa Francisco, na Exortação Apostólica “Amoris Laetitia” (AL), reafirmou a necessidade de que o ato conjugal seja aberto à vida:
“Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o prolonga para além da sua própria existência. Assim nenhum ato sexual dos esposos pode negar este significado, embora, por várias razões, nem sempre possa efetivamente gerar uma nova vida.” (AL 80).
Conclusão:
O ensinamento infalível da Igreja vai muito além daquilo que é definido por um concílio ecumênico ou pelo Papa quando fala “ex cathedra”. A Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, do Concílio Vaticano II, fala de que modo e em que condições a infalibilidade se estende aos Bispos e até ao conjunto dos fiéis.
Embora os Bispos individualmente não gozem da prerrogativa da infalibilidade, contudo, mesmo quando dispersos pelo mundo, guardando, porém, a comunhão entre si e o Sucessor de Pedro e quando ensinam autenticamente sobre assuntos de fé e moral, concordando numa sentença que deve ser mantida de modo definitivo, então enunciam infalivelmente a doutrina de Cristo (Conc. Vat. II, Lumen Gentium, n. 25).
O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se no ato de fé. E manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo quando ‘desde os Bispos até os últimos fiéis leigos’, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes (Conc. Vat. II, Lumen Gentium, n. 12.)
O que causou tanta revolta contra a encíclica “Humanae Vitae” é que nela o Papa não criou “novidades” próprias de uma heresia, mas se manteve fiel à regra da Tradição, cujo ensinamento é infalível e, portanto, irreformável.
Continência periódica
O espaçamento das gestações – quando houver “motivos sérios” – pode ser feito pela continência periódica, ou seja, pela renúncia aos atos conjugais durante os períodos fecundos. Leiamos a encíclica:
Se, portanto, existem motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores, a Igreja ensina então que é lícito ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras e deste modo regular a natalidade, sem ofender os princípios morais que acabamos de recordar (HV 16).
Há uma diferença essencial entre a continência periódica e o pecado da anticoncepção. O casal que pratica a continência periódica nada faz para tornar um ato conjugal infecundo. Quando prevê que aquele ato será fecundo, o casal se abstém de praticá-lo. Nos dias em que o pratica, pratica-o naturalmente. Ao contrário, o casal que usa meios anticoncepcionais torna infecundo um ato que seria naturalmente fecundo.
No primeiro [caso], os cônjuges usufruem legitimamente de uma disposição natural; enquanto que, no segundo, eles impedem o desenvolvimento dos processos naturais (HV 16).
São João Paulo II, antes de assumir o Pontificado, advertia que mesmo a continência periódica não pode ser praticada por motivos egoísticos, como se fosse uma pílula anticoncepcional católica.
A continência como virtude não pode ser concebida como um ‘meio anticoncepcional’. […] A continência interesseira, ‘calculada’ desperta dúvidas. Ela, como qualquer outra virtude, deve ser desinteressada, concentrada na ‘retidão’ em si, não só na ‘utilidade’. […] Se a continência deve ser virtude e não só ‘método’, no sentido utilitarista, não pode contribuir para a destruição da disponibilidade procriativa daqueles que convivem ‘maritalmente’ como esposos. […] E por isso não se pode falar da continência como virtude quando os esposos aproveitam os períodos de infertilidade biológica unicamente para não ter filhos, e convivem só e exclusivamente nestes períodos para o próprio conforto. Proceder assim equivale a aplicar o ‘método natural’ em contradição com a sua natureza. Opõem-se tanto à ordem objetiva da natureza, como à essência do amor”[7].
O dom do filho e a família numerosa
Ensina-nos o Catecismo da Igreja Católica que “o filho não é algo devido, mas um dom. O ‘dom mais excelente do matrimônio é uma pessoa humana” (n. 2378). Se é assim, não faz sentido ver o filho como algo a ser “evitado”. Sobre a bênção da família numerosa, assim se exprimia São João Paulo II:
A família é na realidade uma instituição educadora, portanto é necessário que ela conte, se for possível, vários filhos, porque para que o novo homem forme sua personalidade é muito importante que não seja único, mas que esteja inserido numa sociedade natural. Às vezes fala-se que é ‘mais fácil educar muitos filhos do que um filho único’. Também se diz que ‘dois não são ainda uma sociedade; eles são dois filhos únicos’ (Ibidem, p. 216).
De fato, ensina-os o Catecismo: “A Sagrada Escritura e a prática tradicional da Igreja veem nas famílias numerosas um sinal da bênção divina e da generosidade dos pais” (n. 2373).
Anápolis, 7 de setembro de 2022.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] https://www.ncregister.com/commentaries/contraception-and-infallibility-part-1
[2] “Magnopere credendum est, ut id teneamus, quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” (Commonitorium adversus haereses, c. 2)
[3] PIO XI, Enc. Casti Connubii, 31 de dezembro de 1930, em AAS 22 (1930), p. 560.
[4] Cf. Brian CLOWES. The facts of life: an authoritative guide to life and family issues. 2. ed. Front Royal: Human Life International, 2001, p. 50.
[5] Federação Internacional de Planejamento Familiar. Conhecida como “a multinacional da morte”, é hoje a maior rede privada de contracepção, esterilização e aborto.
[6] S. AGOSTINHO. De nuptiis et concupiscentia, cap. XV.
[7] WOJTYLA, Karol. Amor e responsabilidade: estudo ético. São Paulo: Loyola, 1982. p. 215-216.