(Suprema Corte dos EUA ameaça anular sentença Roe versus Wade)
Em janeiro de 1973, uma jovem do Texas, Norma Mc Corvey (apelidada de Jane Roe), que se dizia grávida em razão de um estupro (o que depois confessou ter sido uma fraude), não pôde praticar aborto porque a lei do seu Estado não permitia. Recorreu então à Suprema Corte dos Estados Unidos a fim de que declarasse inconstitucional aquela lei proibitiva. Leiamos como Ronald Dworkin (1931-2013), filósofo do direito, abortista, relata o que aconteceu.
Em 1973, no famoso caso Roe contra Wade, o Tribunal declarou (por uma votação de sete a dois) que a legislação do Texas, que criminalizava o aborto a não ser quando praticado para salvar a vida da mãe, era inconstitucional. Foi mais adiante: afirmou, de fato, que qualquer lei estadual que proibisse o aborto para proteger o feto nos primeiros dois trimestres de gravidez – antes do sétimo mês – era inconstitucional. […] De um só golpe, em Washington, um tribunal de nove juízes que haviam sido nomeados e não eleitos para seus cargos, e que nem foram unânimes em sua decisão, mudara radicalmente as leis de quase todos os cinquenta estados norte-americanos[1].
Além de declarar inconstitucional qualquer lei estadual, como a do Texas, que proibisse o aborto inclusive até o sexto mês de gravidez, a Suprema Corte declarou que o aborto poderia ser permitido até o momento do nascimento, desde que o médico o julgasse necessário para preservar a saúde da mãe. O conceito de saúde foi estendido ao extremo, compreendendo o completo bem-estar físico e psicológico da gestante. Acerca disso, transcreva-se o voto do juiz relator Blackmun:
A maternidade, ou uma prole adicional, pode forçar a mulher a uma vida e a um futuro angustiados. O dano psicológico pode ser iminente. A saúde física e mental pode ser sobrecarregada pelo cuidado do filho. Há ainda a angústia, para todos os envolvidos, associada ao filho indesejado, e há o problema de trazer uma criança a uma família já incapaz, psicologicamente e por outros motivos, de cuidar dela. Em outros casos, como neste [o de Jane Roe], as dificuldades adicionais e o contínuo estigma de mãe solteira podem estar envolvidos. Tudo isso são fatores que a mulher e seu médico responsável necessariamente levarão em conta na consulta.[2] (destacou-se).
Com esse conceito tão amplo de “saúde”, a partir de 1973 qualquer mulher norte-americana pôde abortar simplesmente por alegar que a gravidez, sendo indesejada, causava-lhe um mal-estar psicológico, e assim, prejudicava a sua “saúde” psíquica. Estava liberado na prática o aborto por simples solicitação da gestante: o aborto a pedido (abortion on demand).
Ronald Dworkin aplaudiu a sentença “Roe versus Wade”. Aplaudiu também a sentença Planned Parenthood versus Casey, que em 1992, assegurou o direito de a mulher fazer aborto antes da viabilidade fetal (por volta de 24 semanas):
A sentença Casey foi importante porque esclareceu, como nunca fizera anteriormente, quão central a questão do aborto é para a ideia mesma de liberdade[3].
Porém, ele entrevê um “dia devastador” em que “Roe versus Wade” seria revogada:
A sentença Roe contra Wade ainda não está totalmente a salvo: se for nomeado um novo juiz que acredite que ela deve ser revogada, certamente assim o será. Esse dia seria devastador para a história constitucional dos Estados Unidos, pois significaria que os cidadãos desse país não mais estariam seguros de sua liberdade de tomar decisões segundo suas próprias convicções – sejam elas pessoais, religiosas ou motivadas por questões de consciência.
“Dia devastador” à vista
Está para ser julgado pela Suprema Corte o caso “Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization”, em que uma clínica de aborto do Mississipi questionou a constitucionalidade de uma lei de seu Estado que em 2018 proibiu o aborto durante as quinze primeiras semanas de gravidez.
No dia 2 de maio deste ano, a revista Politico[4] divulgou um “primeiro esboço de parecer da maioria” sobre o caso Dobbs, assinado pelo juiz Samuel Alito. O documento foi vazado, mas o presidente da Corte, John Roberts, embora reprovando o vazamento, confirmou a autenticidade do escrito[5]. Composto de 98 páginas, o parecer defende a anulação de “Roe versus Wade” e de “Planned Parenthood versus Casey”. Eis alguns trechos[6]:
Nós sustentamos que Roe e Casey devem ser anuladas. A Constituição não faz referência ao aborto, nem tal direito está implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional (p. 5).
Roe estava flagrantemente errada desde o início. Seu raciocínio foi excepcionalmente fraco, e a decisão teve consequências danosas. E longe de trazer um assentamento nacional da questão do aborto, Roe e Casey inflamaram o debate e aprofundaram a divisão.
É tempo de dar atenção à Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos do povo. […] Isto é o que a Constituição e o Estado de Direito exigem (p. 6).
O direito ao aborto não está profundamente enraizado na história e nas tradições da Nação. Pelo contrário, uma tradição ininterrupta de proibição do aborto sob pena de punição criminal persistiu desde os primeiros dias do direito comum (common law) até 1973 (p. 24)
A Suprema Corte dos EUA é composta de nove juízes. Os nomeados por presidentes republicanos tendem a posicionar-se em favor da vida. Os nomeados por presidentes democratas tendem a ser favoráveis ao aborto. Segundo a matéria de “Politico”, concordam com o parecer de Samuel Alito os juízes Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett, todos eles nomeados por republicanos. Ao todo, cinco juízes, o que já constitui a maioria do tribunal.
Os três juízes nomeados pelos democratas – Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan – estão trabalhando em uma ou mais dissidências. O voto do presidente John Roberts, embora nomeado pelo republicano George W. Bush, ainda é incerto. A menos que um ou mais juízes mude seu voto, a derrota do direito ao aborto é certa. A decisão final deverá sair neste mês (junho) ou no próximo.
Anular a sentença “Roe versus Wade” ainda não significa reconhecer a criança por nascer como pessoa, sujeito de direitos. Significa apenas deixar cada Estado da federação livre para legislar sobre o aborto, sem interferência da Suprema Corte, o que já será uma grande vitória.
O aproximar-se do “dia devastador” de Dworkin explica o pânico que os abortistas vêm demonstrando. Revistas com matéria de capa defendendo o aborto, empresas prometendo financiar o aborto das mulheres empregadas, o diretor geral da OMS Tedros Adhanom dizendo que “o acesso ao aborto salva vidas”. De fato, o que estamos para presenciar parecia impossível. Mas, como disse o anjo à Santíssima Virgem, “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37).
Anápolis, 6 de junho de 2022.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] Ronald DWORKIN. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 6-7.
[2] UNITED STATES OF AMÉRICA. Supreme Court. Roe v. Wade. Appeal from the United States District Court to the Northern District of Texas. BLACKMUN, J., Opinion of the Court, 22 Jan. 1973, Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/410/113
[3] Ronald DWORKIN. Domínio da vida… p. 240.