A fraude do aborto “terapêutico”

(“em casos extremos, o aborto é um agravante, e não uma solução para o problema”) 

Bons exemplos devem ser imitados. O Chile (1989) e El Salvador (1997) eliminaram por completo os casos de impunibilidade do aborto, inclusive o do chamado aborto “terapêutico”, ou seja, aquele realizado a pretexto de salvar a vida da gestante. O Brasil, vergonhosamente, ainda mantém impune tal tipo de aborto no art. 128 do Código Penal:

Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Em ambos os casos, o aborto continua sendo crime, embora isento de pena. Ocorre, porém, que não há motivo para deixar de punir tais tipos de aborto. O artigo 128 deveria simplesmente ser revogado. Estudemos detidamente o caso do aborto chamado “terapêutico” ou “necessário”.

O direito natural proíbe a morte direta de um ser humano inocente. A morte de um inocente pode ser tolerada quando ocorre indiretamente, como um segundo efeito (ou efeito colateral) de uma ação que, em si, é boa.

Assim, uma intervenção cirúrgica cardiovascular em uma mulher grávida pode ter como conseqüência a morte do nascituro. Em tal caso, a morte do inocente não é um fim visado pela cirurgia (o fim é a cura da cardiopatia). Também não é um meio (pois não é a morte da criança que “causa” a cura da mãe). É simplesmente um segundo efeito.

Para que se possa, porém, tolerar um efeito secundário mau, é preciso que o bem a ser alcançado seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente a ele. No caso relatado, a cirurgia não seria lícita se fosse possível esperar até o nascimento do bebê ou se houvesse outro meio terapêutico que fosse inofensivo para a criança.

O fato de que muitos de nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados mas inevitáveis fez com que os moralistas formulassem o princípio da causa com duplo efeito:

Pode-se praticar um ato moralmente bom que tenha dois efeitos: um bom e outro mau, desde que:

a) a intenção do agente seja obter o efeito bom, e não o mau;

b) que o efeito bom seja obtido diretamente da ação, e não através do efeito mau;

c) que o efeito bom seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente ao efeito mau;

d) que não haja outro meio de se obter tal efeito bom, a não ser praticando a ação boa que produz tal efeito secundário mau.

Note-se bem que não se trata de “praticar um ato mau com boa intenção”. Isso nunca é moralmente lícito. O fim não justifica os meios, embora Maquiavel tenha dito o contrário.

No princípio em questão, trata-se de praticar um ato bom com boa intenção, mas que produz um efeito colateral mau.

O princípio da causa com duplo efeito foi descrito de maneira lapidar pela Academia de Medicina do Paraguai (1996):


 Não comete ato ilícito o médico que realize um procedimento tendente a salvar a vida da mãe durante o parto ou em curso de um tratamento médico ou cirúrgico cujo efeito cause indiretamente a morte do filho quando não se pode evitar esse perigo por outros meios.[1].


 Ao contrário de tudo o que foi dito até agora, o aborto “terapêutico” é diretamente provocado. É usado como meio para salvar a vida da gestante. Observe-se que em tal caso não se aplica o princípio da causa com duplo efeito. O que se pretende aqui é praticar um ato mau (matar um inocente) com um fim bom (salvar a vida de outro inocente). Como o fim não justifica os meios, ainda em tal situação o aborto permaneceria sendo um ato ilícito.

Mas tal situação ocorre? É difícil imaginar o caso em que a morte do bebê, por si só, “cause” a salvação da vida da gestante. É difícil pensar que ela seja um “meio” utilizado para curá-la. De fato, a morte do nascituro não traz benefício algum para a gestante. Convém citar esta frase lapidar da Academia de Medicina do Paraguai (1996):


Ante patologias da mãe ou do feto que surjam durante a gravidez, a medicina moderna, utilizando a tecnologia disponível em reprodução humana, conta com os meios para conservar a vida materna, o fruto da concepção e combater consequentemente a mortalidade perinatal. Em casos extremos, o aborto é um agravante, e não uma solução para o problema.[2].


 A insistência de certos médicos em indicar o aborto como “meio” — e até como “único meio” — para se salvar a vida de uma gestante parece derivar de uma espécie de crendice. Analisemos o exemplo análogo, retirado da Química:

Ácidos e bases neutralizam-se mutuamente, produzindo um sal e água. Assim, uma solução de ácido clorídrico (HCl) é neutralizada por uma solução de hidróxido de sódio (NaOH), produzindo cloreto de sódio (NaCl) e água (H2O):

HCl + NaOH ® NaCl + H2O

Imagine agora que, alguém, por acidente, tenha deixado derramar ácido clorídrico em sua pele. Suponha agora que um químico, presente no laboratório, levado pela convicção de que um ácido é neutralizado por uma base, aplicasse sobre a pele corroída da vítima uma solução de hidróxido de sódio (soda cáustica). O resultado seria, não um alívio, mas um agravamento da corrosão.

Da mesma forma, diante do fato de que certas doenças se tornam mais complicadas com a gravidez, há médicos que, à semelhança do químico do exemplo anterior, acreditam que o aborto fará “desengravidar” a paciente, levando-a ao estado anterior à concepção do filho. Isso, porém, não ocorre. O aborto é uma prática tão selvagem que, além de condenar à morte um inocente, agrava o estado de saúde da gestante enferma.

Sobre este assunto, convém citar a célebre aula inaugural “Por que ainda o aborto terapêutico?” do médico legal João Batista de Oliveira Costa Júnior para os alunos do Cursos Jurídicos da Faculdade de Direito da USP de 1965:


Limitar-me-ei, nestas considerações, apenas ao chamado abôrto terapêutico, que, na prática, pode confundir-se com o abôrto necessário, porque o tempo não me permitiria tratar de todas as outras espécies conhecidas. […]

Digo, inicialmente, que se me fosse permitido, chamá-lo-ia de abôrto desnecessário ou, então, de abôrto anti-terapêutico. […]

Ante os processos atuais da terapêutica e da assistência pré-natal, o abôrto não é o único recurso; pelo contrário, é o pior meio, ou melhor, não é meio algum para se preservar a vida ou a saúde da gestante. Por que invocá-lo, então? Seria o tradicionalismo, a ignorância ou o interesse em atender-se a costumes injustificáveis? Por indicação médica, estou certo, não o é, presentemente. Demonstrem, pois, os legisladores coragem suficiente para fundamentar seus verdadeiros motivos, e não envolvam a Medicina no protecionismo ao crime desejado. Digam, sem subterfúgios, o que os soviéticos, os suecos, os dinamarqueses e outros já disseram. Assumam integralmente a responsabilidade de seus atos. […]

… o abôrto terapêutico não é o único meio para preservar a vida da gestante, sendo mesmo mais perigoso do que o prosseguimento da gravidez, razão pela qual não poderia, também, o anteprojeto ser aplicado quando fala em um “mal considerávelmente inferior ao mal evitado”. […]

Por quê, então, o abôrto terapêutico?

Por tudo isso que acabo de dizer, considero a prática abortiva, mesmo no chamado abôrto terapêutico, um crime de lesa pátria e de lesa humanidade.[3].


A irritação de Costa Júnior deve-se ao fato de o Código Penal isentar de pena o médico que pratica o aborto “se não há outro meio de salvar a vida da gestante” (art. 128 – I). Outro motivo é que, na época, o anteprojeto de reforma do Código, chefiado por Nélson Hungria, pretendia conservar tal cláusula.


Da forma como foi redigido o dispositivo penal, no código vigente e, por sinal, como também consta no anteprojeto, tenho para mim que, se honestidade houvesse na sua observância, teria sido uma norma inteiramente inócua, porque nunca ocorreria tal espécie de aborto; mas o que, realmente, o dispositivo enseja é favorecer e ocultar o verdadeiro abôrto criminoso[4].


A denúncia é gravíssima. Segundo Costa Júnior, nunca ocorre o caso em que o aborto é necessário para salvar a vida da gestante. O objetivo de se manter a impunidade em tal caso é, para ele, única e exclusivamente, ocultar os verdadeiros e inconfessáveis motivos do aborto.

Em sua magnífica aula, Costa Júnior refuta, uma por uma, as principais “indicações” para o aborto terapêutico: nas cardiopatias, na hipertensão arterial, na tuberculose pulmonar, nas perturbações mentais e nos vômitos incoercíveis. A título de ilustração, reproduzimos um trecho de sua argumentação contra o aborto em gestantes tuberculosas:

 

Schaeffer, Douglas e Dreispon, em 1955, após meticulosa observação de tuberculosas grávidas, durante vinte anos no New York Lying-in Hospital, divulgaram as seguintes e eloqüentes conclusões, que encerram indubitavelmente qualquer discussão sobre tal assunto:

Resultados dos casos observados

Com abôrto terapêutico

Sem aborto terapêutico

melhorados

13%

56%

inalterados

47%

38%

agravados

33%

3%

mortes

7%

3%

Como, pois, conciliar o aborto terapêutico com a legislação penal ante esses resultados, quando o previsto legalmente é para salvar a vida ou, segundo outros códigos, também. preservar a saúde da gestante, e não para aumentar o índice de mortalidade ou a percentagem dos malefícios?[5]



 

Anápolis, 23 de março de 2003.

 

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis




[1]ACADEMIA DE MEDICINA DEL PARAGUAY. Declaración aprobada por el Plenario Académico Extraordinario en su sesión de 4 jul. 1996, tradução nossa.

[2] ACADEMIA DE MEDICINA DEL PARAGUAY. op. cit. O destaque é nosso.

[3] COSTA JÚNIOR, João Batista de O. Por quê, ainda, o abôrto terapêutico? Revista da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, volume IX, p. 312-330, 1965.

[4] Ibid. p. 315-316.

[5] Ibid. p. 322.

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