A íntegra da audiência pública sobre o Protocolo Facultativo à CEDAW

AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE O “PROTOCOLO FACULTATIVO À CEDAW – CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER”, CONVOCADA PELA SENADORA EMÍLIA FERNANDES (PT/RS)

DATA: 21 DE MAIO DE 2002, ÀS 18 HORAS

LOCAL: SALA 13 (COMISSÃO DE SERVIÇOS DE INFRA-ESTRUTURA DO SENADO)

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

A SRª PRESIDENTE (Emilia Fernandes) – Neste momento, damos início a esta reunião que tem o objetivo de travar um debate entre a sociedade brasileira e o Parlamento, a fim de aprofundarmos o conhecimento em relação ao Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, CEDAW, que está tramitando nesta Casa.

Já nos honram com sua presença o Ministro Hidelbrando Tadeu Nascimento Valadares, Diretor-Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores; a Drª Solange Bentes Jurema, Secretária Nacional dos Direitos da Mulher e Presidente Nacional do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Uma das grandes conquistas obtidas pelas mulheres foi a possibilidade de termos uma secretaria com status de um ministério para tratar das questões das mulheres.

Dom Aloysio José Leal Penna, Arcebispo de Botucatu, São Paulo, e responsável pela Pastoral da Família, também nos honra com sua presença, como representante da CNBB. Enviamos convite a Dom Raimundo Damasceno, Secretário da CNBB, que respondeu comunicando oficialmente que neste evento a CNBB seria representada por Dom Aloysio José Leal Penna.

Contamos também com a Drª Sílvia Pimentel, Coordenadora Nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher, Cladem, no Brasil, e Professora Doutora em Filosofia do Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Temos o prazer de contar ainda com a presença da Drª Flávia Piovesan, Procuradora do Estado de São Paulo e Professora de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Ao longo das nossas atividades, iremos registrando a presença de pessoas que aqui estiverem representando demais entidades e órgãos.

Desde já agradecemos ao Senador Gilvam Borges pela presença, igualmente à Senadora Marina Silva e às Deputadas Iara Bernardi, Alcione Barbalho e Luiza Erundina, que representam a Bancada feminina da Câmara dos Deputados.

Farei alguns registros e depois passarei a palavra aos nossos convidados.

No último dia 25 de abril, estava em votação no plenário do Senado Federal, o Projeto de Decreto Legislativo nº1/2002, referente ao Protocolo Facultativo Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. A votação foi adiada nesse dia sob a argumentação de que deveria ser desenvolvida maior discussão sobre o conteúdo desse documento. O adiamento da votação do Protocolo foi motivado por documento apresentado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, endereçado ao Presidente do Senado Federal, Ramez Tebet, intitulado Rejeição do Protocolo Facultativo CEDAW. Esse documento foi entregue aos Senadores e Senadoras na manhã do dia 25, antes da sessão da manhã.

Assim, com o intuito de promover amplo esclarecimento a todos os Senadores e Senadoras desta Casa e também a toda a sociedade civil acerca do real conteúdo e significado do Protocolo, entendemos importante a realização desta reunião.

Antes de passar a palavra aos ilustres convidados, faço algumas considerações sobre o processo de ratificação, pelo Estado brasileiro, do Protocolo. Os palestrantes podem nos corrigir e tirar dúvidas no momento oportuno. Esses palestrantes terão dez minutos para suas exposições iniciais. Depois, se surgir algum questionamento ou persistir alguma dúvida, poderemos ampliar esse tempo.

Esse Protocolo está em processo de ratificação, porque, de acordo com a nossa Constituição Federal, qualquer acordo internacional que o Brasil firme necessita de ratificação pelo Congresso Nacional. Depois dessa ratificação, o acordo precisa do depósito do Governo brasileiro junto à ONU.

Em 22 de dezembro de 2000, entrou em vigor, no âmbito internacional, o Protocolo Facultativo CEDAW, instrumento jurídico adotado pela Organização das Nações Unidas em 1999. O Protocolo é um tratado internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres, que garante a elas o acesso à justiça internacional, de forma mais direta e eficaz, quando o sistema nacional se mostra falho ou omisso na proteção dos seus direitos humanos. O Protocolo está aberto a assinaturas e ratificação pelos Estados que já sejam parte da CEDAW. O Brasil faz parte da CEDAW desde 1984 e assinou o Protocolo em 13 de março de 2001, iniciando assim oficialmente o processo de ratificação do Protocolo pelo Estado brasileiro.

Desde o início desse processo, cumpre ressaltar, a Bancada feminina do Congresso Nacional incluiu a aprovação do protocolo na sua lista de projetos prioritários. Atendeu, dessa forma, a apelos nacionais e internacionais não apenas de conferências tal como a de Pequim, onde o Brasil assinou protocolos, mas também de debates de movimentos organizados.

Em sessão solene do Dia Internacional da Mulher, no dia 14 de março de 2001, os Presidentes em exercício da Câmara e do Senado assumiram publicamente o compromisso de dar prioridade política à tramitação e aprovação, em regime de urgência, do Protocolo pelo Congresso Nacional.

Em 26 de abril de 2001 o Executivo brasileiro enviou mensagem presidencial, MSC 0374/01, ao Congresso Nacional para a aprovação do Protocolo Facultativo CEDAW. Aqui faço parênteses para tornar bem claro que esse não é um projeto de minha autoria, como algumas pessoas e até entidades pensavam; trata-se, isso sim, de um acordo internacional assinado pelo Presidente da República – certamente, um dia poderemos chegar à Presidência e assinar alguns acordos.

Em 12 de dezembro de 2001, o Projeto de Decreto Legislativo referente ao Protocolo, PDL nº 1357, de 2001, foi aprovado por unanimidade pelo Plenário da Câmara dos Deputados, onde havia passado pela Comissão de Relações Exteriores, que aprovou o parecer da Deputada Elcione Barbalho, aqui presente, do PMDB do Pará. Passou, depois, pela Comissão de Seguridade Social e Família, onde mereceu parecer – e foi aprovado – da Deputada Laura Carneiro, do PFL do Rio de Janeiro. Quando chegou ao plenário em regime de urgência, foi votado e defendido pela Deputada Zulaiê Cobra, do PSDB de São Paulo. Encaminhado ao Senado Federal, segundo a tramitação, foi aprovado, também por unanimidade, por todos os Partidos, no dia 16 de abril de 2002, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, com base no parecer favorável que eu, Senadora Emilia Fernandes, do Partido dos Trabalhadores do Rio Grande do Sul, apresentei e defendi. Repito: a Comissão, por unanimidade, aprovou.

Na seqüência, foi para votação ao plenário, no dia 25 de abril, quando foi então, como já registrei, apresentado um pedido de retirada de pauta, sendo adiada sua votação. Então, entendemos que não adiantava apenas adiar, sem que tivéssemos um momento de discussão mais ampla, com maior visibilidade, como será essa reunião.

Agradecemos aos funcionários pela presença e aos meios de comunicação do Senado, que estão gravando esta reunião para que sejam transmitidos ao Brasil os debates, as manifestações dos ilustres convidados e convidadas que aqui estão.

Este é o trabalho do Parlamento: dar visibilidade e transparência àquilo que aqui se faz, que aqui se discute e que aqui se aprova. Dentro desse resgate histórico, com datas e trâmite, não discuti o mérito. Vamos fazê-lo a partir de agora, nesta reunião. Vale lembrar ainda que, até o presente momento, setenta e quatro países já assinaram o protocolo e trinta e oito já o ratificaram. Entre eles, estão: Bolívia, Costa Rica, Guatemala, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai.

Finalizando, esclareço que o Protocolo Facultativo é um instrumento procedimental, que não cria nenhum direito novo substantivo às mulheres, mas fortalece aqueles previstos na CEDAW, os quais já são parte da nossa legislação desde 1984, quando o Brasil ratificou a Convenção.

A CEDAW é um tratado internacional de direitos humanos que busca assegurar a igualdade entre homens e mulheres e eliminar a discriminação contra a mulher, no exercício de seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, tanto na esfera pública quanto na privada.

O Protocolo não cria direitos adicionais; amplia, isso sim, o exercício da cidadania das mulheres brasileiras, permitindo que recorram ao comitê quando o Estado for omisso ou falho na proteção de seus direitos humanos consagrados na Convenção.

A ratificação do Protocolo Facultativo, CEDAW, portanto, apenas amplia a sistemática do monitoramento internacional do comitê em relação à implementação dos direitos já consagrados pela CEDAW, permitindo o encaminhamento de denúncias individuais de violação dos direitos da convenção e a instauração de investigação em casos de graves ou sistemáticas violações da CEDAW.

A CEDAW, como os outros comitês que monitoram os demais tratados internacionais de direitos humanos da ONU, é composta por especialistas eleitos por indicação dos Estados para um mandado, em geral, de quatro anos. Eles têm atribuição de examinar relatórios enviados pelos países. Emitem opiniões e recomendações, orientando os Estados na questão da igualdade dos direitos humanos.

Assim sendo, o Protocolo Facultativo da CEDAW tem o mesmo status que outros instrumentos internacionais de direitos humanos, os quais também contemplam procedimentos de denúncias, quais sejam: Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em seu art. 14, e a Convenção contra a Tortura, por exemplo, em seu art. 22.

Então, pela lógica, vale dizer que impedir a ratificação desse Protocolo Facultativo significaria impedir o reconhecimento dos demais tratados e procedimentos, denúncias e violações garantidas por outros tratados, sob o ponto de vista civil e político – discriminação racial, tortura, temas que hoje extrapolam as questões nacionais.

Contudo, é interessante lembrar que, no último dia 26 de abril de 2002, o Congresso Nacional apresentou, e o Presidente do Senado Federal, Ramez Tebet, promulgou, o Decreto Legislativo nº 57, de 2002, que aprova solicitação de o Brasil fazer a declaração facultativa prevista no art. 14 da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, reconhecendo a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, para receber e analisar denúncias de violação dos direitos humanos cobertos na Convenção.

Pergunto aos ilustres membros da Mesa: que sentido tem a atitude desta Casa de ter impedido, no dia 25 de abril, a aprovação do Protocolo? Não reconhece a competência do Comitê da CEDAW e, no dia seguinte, dia 26 de abril, aprova e reconhece a mesma competência em relação ao comitê que monitora a convenção da discriminação racial.

É com esse espírito de respeito, de valorização, de reconhecimento pelos pensamentos diferenciados na sociedade – que é legítimo e respeitamos – que vamos iniciar os nosso trabalhos, ouvindo a todos com o maior respeito e oportunidade democrática.

Passo, então, a palavra ao Ministro Hidelbrando Tadeu Nascimento Valadares, Diretor-geral do Departamento de Direitos Humanos e temas sociais do Ministério das Relações Exteriores, para expor as suas idéias.

O SR. HILDEBRANDO TADEU NASCIMENTO VALADARES – Muito grato, Srª Senadora, minhas primeiras palavras são de agradecimento à Srª Senadora Emilia Fernandes, pelo convite que me transmitiu, em 30 de abril passado, para estar hoje aqui trazendo a posição do Executivo, por meio do Itamaraty, em relação ao Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.

Na sua pessoa, Srª Senadora, também saúdo todos os demais componentes desta Mesa e manifesto a minha pessoal satisfação de participar de uma Mesa em que, além da Presidente, uma Senadora brasileira, temos um bispo representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a Secretária de Estado para os Assuntos da Mulher e duas grandes juristas brasileiras. Sinto-me até um pouco deslocado nesta Mesa, da minha posição simplesmente de Diretor-Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Itamaraty.

Dito isso – a minha exposição, vou tentar fazê-la tão rápido quanto possível -, creio que os temas e as dúvidas maiores sobre o assunto serão suficientemente esclarecidas pela minha intervenção de caráter geral inicial, mas, sobretudo, pelas intervenções dos demais integrantes desta Mesa.

Do ponto de vista histórico, creio que é muito importante assinalar que, desde a sua criação em 1945, a Organização das Nações Unidas tem tido, como um dos seus focos de atuação, a promoção da igualdade para as mulheres no âmbito global. Em 1946, foi criado um órgão especial para tratar de assuntos das mulheres, a Comissão sobre a Situação da Mulher. Composta por 45 membros, é subordinada ao Conselho Social da ONU. Examina o progresso em favor da igualdade das mulheres no mundo e faz recomendações, e sublinho recomendações, para a promoção dos direitos das mulheres nos campos político, econômico e social.

A Comissão tem uma significativa importância, inclusive porque organizou quatro conferências globais sobre o tema das mulheres: no México, em 1975; Copenhague, em 1980, Nairobi, em 1985 e Pequim, em 1995.

A esta Comissão compete, ainda, monitorar a implementação dos resultados da plataforma de ação de Pequim. Para tanto, recebe o apoio da Divisão para o Avanço das Mulheres, que acompanha a adesão dos países à Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ou seja, acompanha a adesão dos países a um instrumento que é considerado a Carta de Direitos Humanos das Mulheres.

As quatro conferências a que me referi sobre o tema das mulheres, elaborado pela ONU, são parte de uma série de conferências mundiais convocadas pelo sistema das Nações Unidas durante a segunda década do desenvolvimento, nos anos 70, que se estendeu até os anos 90.

O objetivo desses encontros era mapear a situação global em áreas específicas problemáticas e desenhar planos de ação, em longo prazo, nos seus respectivos campos.

O protagonismo da mulher nesse ciclo de conferências sobre temas sociais deu-se de uma maneira muito significativa e em função, entre outros, de dois fatores muito importantes. O primeiro foi a emergência de uma nova fase no Movimento Internacional da Mulher. E o segundo foi o agravamento de dois grandes problemas internacionais daquela época: a questão da população e a questão da alimentação, ou seja, problemas de caráter demográfico e de segurança alimentar.

A Organização das Nações Unidas deu-se conta de que a mulher é elemento chave para a solução desses dois problemas, em especial nos países em desenvolvimento, uma vez que a sua atuação é crucial para o bom encaminhamento de cada um deles.

A estratégia de promoção do desenvolvimento em suas dimensões demográficas, em suas dimensões de segurança alimentar, com vista à satisfação das necessidades básicas, devemos sublinhar, se ressente não apenas de recursos limitados, mas também, diria até sobretudo, do potencial ainda não realizado das mulheres como força social. Tal potencial será plenamente utilizado quando a igualdade de gênero for alcançada. Para isso, há esta Convenção. E, para fortalecer esses mecanismos, está o Protocolo Facultativo que nos congrega hoje, aqui.

Em 1972, foi acordado que o ano de 1975 seria celebrado como o Ano Internacional da Mulher. Naquele mesmo ano de 1972, uma finlandesa foi apontada como a 1ª Assistente do Secretário-Geral da ONU.

Refiro-me a esses dois eventos, embora sejam de níveis diferentes, porque ambos são marcos, começo de uma espécie de “nova era das mulheres nas Nações Unidas”. Ambos, e com efeito, reforçaram a emergência de um renovado movimento das mulheres no mundo inteiro.

Assim, o Ano Internacional da Mulher foi tido como o mais bem-sucedido entre tantos outros anos temáticos da ONU até os dias de hoje.

Deixo isso registrado porque creio que o fato de ter sido tão bem-sucedido mostra a capacidade do Movimento Internacional de Mulheres de se organizar e de levar adiante suas plataformas de reivindicações, tanto em termos globais, quanto em termos de sistema regional interamericano em cada um de nossos países, em especial no Brasil.

Ao finalizar 1975, ficou decidido que deveria ser elaborada uma Convenção Internacional sobre a Mulher, que seria um instrumento de grande transcendência. Essa foi a origem da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada, afinal, como manifestou a Senadora, em 1979.

Nos anos 90, a onda democratizante desencadeada a partir do fim da Guerra Fria deu início a uma nova fase de conferências da ONU sobre temas sociais. Essa nova fase conferiu um novo vigor ao multilateralismo, por oposição ao que se chamou crise do multilateralismo, que caracterizou a década de 80. Essa mesma crise do multilateralismo é uma parte das circunstâncias muito difíceis que vivemos atualmente, em decorrência dos acontecimentos de setembro passado em Nova Iorque e de todas as suas derivações em termos de luta contra o terrorismo e de vulneração de direitos humanos.

Tais conferências, dos anos 90, tiveram sua origem naquelas que mencionei. Trabalharam em cima do acúmulo de realizações daquelas quatro conferências dos anos 70. Mas, pelas circunstâncias políticas do final da Guerra Fria e de democratização em amplas áreas do mundo, as reuniões da década de 90 tiveram um mérito acrescido: conseguiram conferir um avanço ainda maior à chamada Agenda Social das Nações Unidas.

As conferências sobre matérias sociais da ONU foram a Cúpula Mundial sobre a Criança, Nova Iorque, 1990; a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 1993; a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, Copenhagen, 1995; a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, setembro de 1995 e a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – Habitat II, Istambul, junho de 1996. Nessa lista de conferências, o elo mais recente é a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, que se realizou em setembro passado em Dorban, na África do Sul. Tanto a Declaração quanto o Programa de Ação de Dorban incorporaram a transversalidade das questões de gênero.

Digo que, ao longo de todas essas conferências, o Movimento das Mulheres no plano nacional, no plano global, no plano regional se solidificou e se expandiu, levando a conquistas absolutamente essenciais para nós, brasileiros, na medida em que estamos todos comprometidos com a criação e o aperfeiçoamento de uma sociedade democrática e de um Estado Democrático de Direito no Brasil.

Ao longo dessas conferências, desenvolveu-se uma agenda quase consensual sobre políticas, programas e princípios, inicialmente associados com temas mais amplos de desenvolvimento, igualdade e paz. Foram esses conceitos levados à Conferência sobre Meio Ambiente, do Rio, à de Viena, sobre Direitos Humanos, à de População, no Cairo, à de Desenvolvimento Social, de Copenhagen e à de Istambul. Em Dorban, no ano passado, recolhemos essa herança e conseguimos realmente avanços, tanto em termos declaratórios como em termos de projetos incluídos no programa de ação, que foram o coroamento desse processo.

Repetirei o que disse a Senadora: o Brasil assinou, em 31 de março de 1983, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, adotada, em 1979, pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

A Convenção entrou em vigor, no Brasil, no dia 2 de março de 1984, com reservas que foram retiradas em 1994, em virtude dos dispositivos da Constituição de 1988. As reservas eram aos artigos 15 e 16. O art. 15 tratava de igualdade entre homens e mulheres perante a lei e o art. 16, de discriminação contra mulheres em todos os assuntos referentes à relações de casamento de família. Naturalmente, com os grandes ganhos provenientes da nossa Constituição de 1988, essas reservas que o Governo brasileiro tinha deixaram de ter fundamento e foram retiradas.

O art. 17 da Constituição prevê o estabelecimento de um comitê para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. Esse comitê é composto de 23 peritos. Citarei agora as características desses peritos: “De elevado nível moral e competência no campo de atuação coberto pela convenção”. Os peritos devem ser eleitos pelos Estados-membros. É levada em consideração distribuição geográfica eqüitativa, tendo em conta as diferentes formas de cultura e civilização, bem como os principais sistemas legais existentes.

A tarefa crucial do comitê de peritos consiste em acompanhar a implementação pelos Estados membros da CEDAW, examinar os relatórios nacionais que as partes são obrigadas a submeter-lhe a cada quatro anos, segundo o art. 18 da convenção.

Abro parênteses para dizer que uma das dívidas institucionais do Brasil, em termos de política externa, é que nós, até hoje, não apresentamos esse relatório nacional. É uma dívida enorme. O Itamaraty fez um esforço muito grande. E digo que o esforço muito grande do Itamaraty é pequeno, comparado ao esforço da sociedade civil, do movimento de mulheres. Tenho grande orgulho do fato de ter sido assim, inclusive porque isso aconteceu antes de eu assumir essa diretoria geral, cargo que hoje estou exercendo. A elaboração básica, digamos, o copião desse relatório nacional, que será apresentado dentro de mais uns poucos meses à ONU, foi feito pela sociedade civil, foi feito pelo movimento organizado de mulheres. Duas coordenadoras desse movimento estão nesta Mesa. E, quando esse copião foi elaborado pela sociedade civil e remetido ao Itamaraty, fizemos uma releitura do documento e o negociamos com representantes do movimento de mulheres. O texto final está praticamente pronto. Temos agora apenas formulações pequenas, problemas de forma. Espero que, dentro de dois meses, no máximo, possamos encaminha-lo às Nações Unidas.

Com o intuito de dotar essa convenção de mecanismo de reforço à implementação dos direitos humanos das mulheres e de incentivar a eliminação de práticas discriminatórias, foi negociado o Protocolo Facultativo, objeto da nossa reunião de hoje. Este protocolo é de estrito caráter procedimental, como assinalou a Senadora. Ele apenas prevê outros procedimentos além dos relatórios nacionais. O Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi adotado por consenso pela Assembléia Nacional das Nações Unidas em 6 de outubro de 1999. A ONU reconhece a competência do comitê para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, para receber e analisar denúncias de violação dos direitos contemplados na convenção. Como a Senadora assinalou também, essa atitude não é inaugural. Há outros mecanismos como esse do qual o Brasil faz parte.

Trata-se do primeiro mecanismo internacional, entretanto, de caráter global, de denúncias sobre os direitos da mulher especificamente. Em 10 de dezembro de 1999, data em que foram abertas assinaturas, o Protocolo Facultativo foi assinado por 23 países. O Brasil assinou o protocolo em 13 de março de 2001. A cerimônia de assinatura teve lugar na sede das Nações Unidas, em Nova York, e ocorreu na presença da Presidente do Conselho da Comunidade Solidária, Drª Ruth Cardoso.

A competência atribuída ao comitê da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, pelo art. 2 do Protocolo Facultativo, inclui o seguinte: primeiro, análise de petições dos Estados que sejam vítimas de violações dos direitos humanos contemplados pela convenção. Após essa análise, o comitê pode emitir recomendações ao Estado envolvido. Segundo, o recurso ao comitê tem como pré-requisito o esgotamento prévio dos recursos domésticos disponíveis, com exceção, naturalmente, dos casos em que as satisfações que possam ser obtidas por esse meio se demonstrem excessivamente demoradas ou de efeito duvidoso. Os critérios para que os prazos sejam considerados demasiado longos ou os efeitos inócuos, não estão especificados no texto do Protocolo Facultativo, dependem, em cada caso, do critério de razoabilidade.

Por fim, terceiro, o Estado-parte da convenção que receber recomendações do comitê deverá examiná-las e, passados seis meses da data do seu recebimento, dirigir ao comitê resposta escrita, relatando as medidas que tenham sido tomadas para remediar a situação que deu origem às recomendações. Isso nada tem de novidade.

Apenas um pequeno parênteses: há algum tempo, o Relator especial da ONU sobre tortura veio ao Brasil, esteve em todos os lugares que quis, fez o seu relatório e as suas recomendações; nós, o Estado brasileiro acreditamos que seja uma interação muito positiva para o objetivo maior de defesa dos direitos humanos, no caso o de não ser torturado no Brasil. Estamos cumprindo as recomendações progressivamente. Já existe a preocupação quanto a essa possibilidade, e o Estado brasileiro acha muito positivo.

O sistema criado pelo Protocolo Facultativo constitui, na visão do Executivo, um estímulo adicional à implementação dos objetivos da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, provendo-a de um mecanismo de petição.

Assinale-se que a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Violência contra a Mulher, de Belém do Pará, adotada pela Assembléia Geral da OEA em 9 de julho de 1984 e ratificada, sem reservas, pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, conta com mecanismo similar.

O Protocolo Facultativo à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher entrou em vigor internacionalmente em 22 de dezembro de 2001, após ter obtido 10 ratificações. Até o momento, refiro-me ao que disse a Senadora, o Protocolo Facultativo já foi assinado por 74 países, dentre os quais 39 – a Senadora citou 38, mas houve um a mais – depositaram seus instrumentos de ratificação.

São signatários do protocolo facultativo os seguintes países latino-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Dentre esses, Bolívia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai já ratificaram o Protocolo.

Concluindo, a critério do Executivo, o reconhecimento da competência do comitê por meio da ratificação do Protocolo Facultativo da Convenção responde às expectativas de diversos segmentos da sociedade brasileira e constitui importante gesto governamental no sentido de reforçar internacionalmente o compromisso que o Brasil vem assumindo com a defesa e a promoção dos direitos da mulher e com a defesa e a promoção dos direitos humanos em geral, desde a redemocratização e da adoção da nossa Constituição.

A propósito, saliento que foi dirigido um ofício ao Ministro de Estado e Relações Exteriores, em 7 de março de 2001, pela Bancada feminina do Congresso Nacional, assinada por 15 Parlamentares de diferentes filiações político-partidárias. Esse ofício solicitava que o Brasil, em sintonia com a sua posição como “um dos Estados mais avançados e protagônicos no que se refere à proteção nacional e internacional dos direitos humanos, em especial dos direitos das mulheres”, assinasse e ratificasse o protocolo facultativo.

No essencial, queria apenas sublinhar que essa é a minha colaboração em termos não pessoais, mas em termos profissionais, e a posição do Itamaraty, do Executivo a respeito. Espero que, a partir do debate e das explicações a serem dadas nesta reunião, o protocolo facultativo possa ser ratificado e que, em breve, possamos encaminhar, em procedimento final, a documentação a Nova Iorque.

Muito obrigado. (Palmas.)

A SRª PRESIDENTE (Emilia Fernandes) – Muito obrigada, Ministro Hildebrando Tadeu Valadares.

Registro e agradeço a presença do Pe. Ernane Pinheiro, assessor da CNBB; de Valéria Pandjiarjiam, do Comitê Latino-americano de Defesa dos Direitos Humanos; de Regina Bitencourt e de Adriana Rodrigues Martins, ambas da Divisão de Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores; de Magalho da Silva, da Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores; de Marlene Libardone, Diretora Executiva da Agende; de Ella Castilho, Subprocuradora-Geral da República; de Sueli Aparecida Bilato, do gabinete do Senador Tião Viana, do PT do Acre; e da combativa professora Deputada Esther Grossi, Presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados.

De imediato, concedo a palavra à Drª Solange Bentes Jurema, Secretária Nacional dos Direitos da Mulher.

A DRª SOLANGE BENTES JUREMA – Cumprimento a Mesa e as Senadoras na pessoa da Senadora Emilia Fernandes, as Srªs. Deputadas, as companheiras aqui presentes e os representantes da Igreja.

Começo com uma frase da Igreja: “Deus escreve certo por linhas tortas”. O adiamento da votação do Senado, no dia 25 de abril, do Protocolo Facultativo nos permitiu discuti-lo hoje e, talvez, dar mais visibilidade ao que, de fato, ele representa para as mulheres. O que parece ter sido um retrocesso nessa longa luta das mulheres passa a ser um momento importante de reflexão.

A aprovação da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a CEDAW, ocorrida há mais de 20 anos, constituiu-se num marco importante na luta pela garantia dos direitos das mulheres.

A CEDAW estrutura-se sobre três princípios interrelacionados, a saber: o princípio da igualdade, o princípio da não-discriminação e o princípio da obrigação de Estado. É na articulação desses três princípios que se encontra a base política necessária para a formulação de estratégias que visem a igualdade de gênero, em consonância com os artigos previstos na CEDAW.

O Protocolo Facultativo da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher é um procedimento de comunicação através do qual o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação possa rever denúncias e averiguar se os direitos garantidos pela convenção têm sido violados e identificar soluções para as vítimas. É um procedimento de comunicação através do qual se permite à CEDAW proceder a investigações acerca de violações graves ou sistemáticas.

Esse protocolo promove o acesso à Justiça para as mulheres em nível internacional. Ele permite às mulheres às quais tenha sido n

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