FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
Ciclo de Palestras – Bioética e Direito
Local: Auditório do Edifício Sede do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Data: 08.03.2001
ABORTO E MORAL
Em 1857 a Suprema Corte dos Estados Unidos emitia a sentença “Dred Scott”. Sete juízes votaram a favor. Apenas dois votaram contra. Segundo tal sentença, para efeitos legais, o negro não era uma pessoa. Pertencia a seu dono, que dele podia dispor como uma coisa.
Essa legitimação da escravidão, feita pela mais alta instância do Poder Judiciário dos Estados Unidos, é hoje lembrada com vergonha e repulsa pelos norte-americanos.
Felizmente em 1865, após a sangrenta Guerra de Secessão, o parlamento americano elaborou a 13ª emenda à Constituição, que proibia a escravidão. Para tornar mais clara a 13ª emenda, em 1868 entrou em vigor a 14ª emenda, que tinha como um de seus principais objetivos declarar que os negros eram cidadãos americanos. Dizia ela:
“Todas as pessoas, nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos são cidadãos dos Estados Unidos. Nenhum Estado poderá aprovar nenhuma lei que restrinja os privilégios dos cidadãos dos Estados Unidos“.
Ironicamente, esta emenda, feita para garantir a igualdade de direitos entre negros e brancos, serviu de base para que, mais de um século depois, em 1973, a mesma Suprema Corte declarasse que os não nascidos não são pessoas.
O caso tornou-se célebre. Em janeiro de 1973, uma jovem do Texas, Norma Mc Corvey (conhecida como Jane Roe) que se dizia grávida em razão de um estupro, não pôde praticar aborto porque a idade da criança já ultrapassava o limite fixado pelo seu Estado. Recorreu então à Suprema Corte a fim de que declarasse inconstitucional aquela lei proibitiva.
Espantosamente, o Tribunal deu ganho de causa à jovem, numa sentença que entrou para a História com o nome de Roe versus Wade, pronunciada em 22 de janeiro de 1973. Para declarar que o nascituro não era pessoa, e que portanto não tinha direito à vida, a Suprema Corte usou o mesmo texto da emenda que outrora havia proibido a escravidão. Dizia tal emenda que “todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos são cidadãos dos Estados Unidos“. Como o nascituro não é nascido nem naturalizado, então ele não é cidadão dos Estados Unidos. Assim, ele não goza de nenhum direito! Por meio desse artifício, a Suprema Corte declarou textualmente que “a personalidade legal não existe nos Estados Unidos antes do nascimento“. Assim, qualquer lei, como a do Texas, que proibia o aborto até o momento do nascimento foi declarada inconstitucional. A Suprema Corte declarou textualmente que o aborto deveria ser permitido até o momento do nascimento, quando o médico julgasse necessário, conforme ele entendesse, para a saúde da mãe, “considerada esta à luz de todos os fatores emocionais, psicológicos e familiares que fossem importantes para o bem-estar da paciente“. Com esse conceito tão amplo de “saúde”, a partir de 1973 qualquer mulher norte-americana pôde abortar simplesmente por alegar que a gravidez, sendo indesejada, causava-lhe um mal-estar psicológico, e assim, prejudicava a sua “saúde” psíquica. Estava liberado na prática o aborto por simples solicitação da gestante (aborto a pedido – abortion on demand).
Por uma estranha coincidência, a decisão Roe versus Wade, que declarou que a criança não nascida não é pessoa, foi aprovada com o mesmo número de votos que a sentença do século anterior, que declarava que o negro não era pessoa: sete juízes votaram a favor e dois votaram contra.
Vinte e dois anos depois, em 1995, a protagonista do caso, Norma Mc Corvey, declarava publicamente na revista Newsweek que nunca havia sido estuprada. Tudo não passara de uma farsa para se obter a legalização do aborto. Hoje, extremamente arrependida, ela milita no movimento pró-vida norte americano.
O preconceito de lugar
Como hoje nós nos indignamos com a decisão da Suprema Corte de 1857, que institucionalizava o preconceito contra os negros, nossos pósteros vão-se indignar contra a decisão de 1973, que institucionalizou o preconceito contra as crianças não nascidas. E vão rir de nós, brasileiros, que reunimo-nos neste seminário para discutir se a criança não nascida deve ser tratada como pessoa ou se pode ser esquartejada e misturada aos detritos hospitalares.
O preconceito defendido pelos abortistas não é de cor. De que será, então? Em que o nascituro difere do nascido? Em três coisas: a idade, o tamanho e o lugar. Dessas três, a idade e o tamanho não são decisivas. Há crianças, nascidas prematuramente, que são menores e mais novas do que outras, ainda não nascidas. A diferença fundamental entre o nascido e o nascituro é o lugar: o nascituro está dentro do útero. O nascido está fora do útero.
Mas, se a cor da pele não é motivo para dizer que o negro não tem direitos, muito menos o lugar que a criança ocupa pode justificar que se diga que ela não é pessoa.
Para os abortistas, o nascimento é o momento mágico em que a criança deixa de ser coisa para ser pessoa. Mas que é o nascimento?
“Nascimento é a saída da criança do ventre materno, a secção do cordão umbilical, e o começo da existência do filho destacado fisicamente do corpo da mãe.
“A única mudança que se verifica com o nascimento é no sistema de apoio à vida exterior do filho. O filho não é diferente antes e depois do nascimento, exceto no fato de ter mudado o método de alimentação e de obtenção de oxigênio.
“Antes do nascimento, a alimentação e o oxigênio eram obtidos da mãe, através do cordão umbilical. Após o nascimento, o oxigênio é obtido de seus próprios pulmões, e a nutrição através do estômago, se ele está suficientemente preparado para alimentar-se dessa maneira” (Dr. & Mrs. J.C. Wilke. Handbook on Abortion. Cincinnati (OH), Hayes Publishing Co., 1975, pp. 24-25).
Certa vez, em um debate na televisão, uma abortista disse-me que uma criança com três meses de concebida não é pessoa, pois sua vida depende inteiramente da mãe. Apesar de já ter todos os seus órgãos formados desde o segundo mês (inclusive com impressões digitais), apesar de seu cérebro já estar produzindo ondas desde as 6 semanas (um mês e meio), apesar de seu coração funcionar desde 21 dias (menos de um mês de vida), para a aquela abortista a criança de três meses de vida intra-uterina não era pessoa. O argumento dela era simples (ou simplista): “se esta criança for retirada do útero materno, morrerá inevitavelmente; logo, ela não é pessoa”.
É verdade que a criança por nascer depende da mãe para sobreviver. Mas tal dependência é puramente extrínseca. Desde a fusão do óvulo com o espermatozóide, forma-se um novo indivíduo que comanda o seu próprio crescimento e desenvolvimento. Seu código genético é distinto da mãe. Seus aparelhos e sistemas são totalmente outros. Não é o organismo da mãe que vai construindo a criança. É a criança que constrói a si mesma, usando do alimento e do oxigênio fornecidos pela mãe. É o bebê, e não a mãe, que produz o famoso hormônio HCG, habitualmente usado nos testes de gravidez. É o bebê quem, por conta própria, suprime o período menstrual da mãe e constrói para si uma placenta e um envoltório protetor com líquido amniótico. E finalmente é o bebê quem determina o dia em que vai nascer, pois está fora de dúvida, segundo Dr. William A. Lilley (o “pai da fetologia”) que o início do parto é uma decisão unilateral do nascituro (cf. A. William Liley, MD, A Case Against Abortion, Liberal Studies, Whitcombe & Tomb Ltd, 1971).
A criança não depende da mãe intrinsecamente, como o braço depende do restante do organismo. Sua dependência, puramente extrínseca, reduz-se ao lugar para hospedar-se, à alimentação e à respiração. Mas tal dependência permanece depois do nascimento. Pois, se depois de nascer, a mãe não a nutre com seu leite nem a acolhe em sua casa, a criança morrerá inevitavelmente. Para ser coerente consigo mesma, aquela abortista deveria dizer que o recém-nascido também não é pessoa, uma vez que continua a depender totalmente da mãe.
Um outro argumento, totalmente descabido, mas ainda muito usado e repetido, é que a criança é parte do corpo da mãe, uma espécie de apêndice que poderia ser extirpado sem problemas morais. Os defensores dessa tese acabam por inventar uma nova anatomia. Pois no meu tempo de adolescente, aprendi que o corpo humano é composto de cabeça, tronco e membros. Para eles, o corpo humano teria quatro partes: cabeça, tronco, membros e criança. Esta última poderia ser cortada com a mesma facilidade com que se cortam as unhas e os cabelos. Dá para aceitar?
E durante o nascimento?
Se para a Suprema Corte norte-americana, a criança é coisa antes de nascer e pessoa depois de nascer, surge uma questão: e quando a criança está nascendo? Quando ela já saiu parcialmente do organismo materno: ela é coisa ou é pessoa?
A pergunta não é descabida, pois nos Estados Unidos é comum uma prática conhecida como “aborto por nascimento parcial” (partial birth abortion). É praticado quando a criança está com idade gestacional avançada, de seis a nove meses, já virada para baixo, esperando o momento do parto. Com o auxílio de um aparelho de ultra-som, o aborteiro agarra as pernas do bebê com um fórceps. Elas são puxadas para fora através do colo uterino. Quando todo o corpo já saiu (pernas, braços, tronco) e apenas a cabeça está dentro da mãe (um detalhe: a criança está viva!), o aborteiro enfia a ponta de uma tesoura na nuca do bebê. A seguir, abre a tesoura para aumentar a incisão. No buraco aberto, é introduzido um tubo de sucção que aspira o cérebro da criança, causando-lhe a morte. Nesse momento, o crânio se contrai e a cabeça pode passar com mais facilidade pelo colo uterino. Está terminado o aborto. O tecido do cérebro é então usado em implantes para tratamento de doenças neurológicas.
Tal aborto é legal ou não é legal? Quando apenas a cabeça ainda está dentro da mãe, a criança é ou não um cidadão norte-americano? O Congresso dos Estados Unidos, chocado com tal procedimento, apresentou um projeto de lei que proibiria apenas esse tipo de aborto. O projeto já havia sido aprovado nas duas Câmaras quando chegou à mesa do presidente Clinton em abril de 1996. Abortista até a última fibra do sapato, Clinton não sancionou, mas vetou a lei que proibiria tal aborto. Quando Clinton foi reeleito, a lei foi novamente apresentada pelo Congresso, mas o presidente vetou-a pela segunda vez. Ainda hoje tal aborto é permitido e praticado nos Estados Unidos.
Um fato pitoresco
Em 29 de junho de 1998 uma jovem de 17 anos foi submeter-se a um aborto por nascimento parcial na clínica abortista A-Z Women’s Center, em Phoenix, Arizona, EUA. A criança estava na 37ª semana, ou seja, aproximadamente nove meses. O médico John Biskind, puxou a criança pelas pernas e tentou perfurar a nuca para aspirar-lhe o cérebro. Quando tentava matá-la, eis que ela saiu totalmente do ventre materno. O bebê, uma menina, que antes era uma coisa, passou subitamente a ser gente. O médico, que tinha iniciado o assassinato, não pôde terminá-lo. A menina nasceu totalmente (e não parcialmente) com quase três quilos. Apesar da fratura de crânio e das lacerações profundas em seu rosto provocadas pelos instrumentos usados para o aborto, ela sobreviveu. Converteu-se em um símbolo pró-vida e foi adotada por um casal do Texas. (Fonte: ACI Digital Notícias, 11/07/1998)
Pergunto eu: por que os defensores da legalização do aborto não defendem a legalização do infanticídio? Se o aborto traz perigos para a saúde da mãe, o infanticídio, praticado após o nascimento, é totalmente seguro. Por que esse preconceito de lugar?
Terrorismo?
Sempre que apreciamos uma obra de arte, gostamos de mostrá-la aos amigos. Se nossa idéia é boa e defensável, não temos medo de publicá-la. Estranhamente, porém, os defensores do aborto tomam todo cuidado para não mostrar ao público a imagem do que eles defendem. Quantas vezes eu já fui proibido, em debates com os abortistas, de apresentar o pequeno vídeo “A dura realidade”, que mostra cenas cotidianas de aborto em clínicas dos Estados Unidos. Além de censurar nossa liberdade de expressão, acusam a nós, pró-vida, de estarmos usando de “terrorismo” ao mostrarmos crianças esquartejadas e atiradas a uma lata de lixo.
Terrorismo? Quem pratica terrorismo é quem explode a bomba e não aquele que fotografa os cadáveres. Terroristas são aqueles que defendem a morte de inocentes e depois querem esconder o produto da matança. Não sejamos hipócritas. Assim como nós não temos vergonha de mostrar as crianças vivas, salvas do aborto, que os abortistas não se envergonhem de mostrar as crianças mortas em nome de um suposto “direito humano”.
Um caso concreto
Em setembro de 1998 os jornais noticiaram um trágico acontecimento. Uma menina de dez anos, de iniciais C.B.S., moradora do município de Israelândia, GO, havia sido sofrido abuso sexual por dois velhos e estava grávida. Seus pais queriam que ela fizesse aborto. O público ficou extremamente chocado, e com razão, com a monstruosidade de dois velhos abusarem de uma menina. No entanto, a imprensa desviou sistematicamente a atenção do bebê que a menina carregava no útero, e que não tinha culpa alguma de ter um pai estuprador. Inutilmente eu e meus companheiros pró-vida fomos até Israelândia para dissuadir a família de abortar. Até mesmo um casal de Brasília já se havia oferecido para adotar o bebê tão logo ele nascesse. Apesar disso as forças da morte prevaleceram. No dia 3 de outubro de 1998, às 9h 30min, o bebê, que já tinha quatro meses, foi executado no Hospital de Jabaquara, São Paulo. A equipe que fez o aborto disse que usou de uma microcesariana, mas evitou (com razão) contar os detalhes.
Eu, porém, vou contar. Os “médicos” fizeram uma incisão no útero da menina e retiraram a criança ainda vida e presa ao cordão umbilical. Seu coração estava batendo e seus olhinhos fitavam os olhos dos algozes. É bem provável que ela tenha respirado e chorado. Que fizeram então os médicos? Um dos procedimentos seguintes:
– asfixiaram o bebê contra a placenta;
– estrangularam o bebê;
– ou simplesmente cortaram seu cordão umbilical e jogaram-no na lata de lixo mais próxima, até que morresse.
Pergunto: o aborto é ou não é mais monstruoso que o estupro?
Os dois velhos foram presos. Não acompanhei sei julgamento, mas certamente eles não receberam mais do que dez anos de reclusão, que é a pena máxima prevista para o estupro (Código Penal, art. 213). O bebê, porém, sem nenhum direito de defesa, foi condenado sumariamente à pena de morte. Tal assassínio violou frontalmente um princípio consagrado em nossa Constituição de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado” (art. 5º – inciso XLV). Desta vez a pena não apenas passou do pai para o filho, mas foi aumentada: de pena de reclusão para pena de morte.
O preconceito contra a Igreja
Inúmeras vezes fui alvo de preconceito por parte dos abortistas simplesmente por ser um sacerdote católico. Na mentalidade deles, ao ordenar-me padre, eu teria deixado de ser cidadão brasileiro. Estaria proibido de exercer minha liberdade de expressão, ao defender publicamente a vida. “A Igreja Católica não se deve meter nestes assuntos”, dizem eles.
Neste país todos têm o direito de expressar sua opinião: os sindicatos, as associações de bairros, os clubes recreativos… mas por um preconceito injustificável a Igreja Católica deveria ficar calada ao ver inocentes sendo condenados à morte.
Costumo dizer que para ser contra o aborto não é preciso ser católico. Basta ser gente. Na qualidade de um ser humano que saiu ileso do útero materno, eu tenho o direito e o dever de defender os que ainda não nasceram.
Assim, não é suficiente você dizer: “eu não sou católico; logo posso ser a favor do aborto”. Seria preciso afirmar: “eu não sou gente; por isso sou a favor do aborto”.
Aliás, a tática de acusar a Igreja Católica de retrógrada, fundamentalista… é descrita muito bem pelo Dr. Bernard Nathanson, um ex-abortista, ex-dono da maior clínica de abortos do mundo, em Nova York, autor de cerca de 5000 abortos e um dos maiores responsáveis pela legalização do aborto nos Estados Unidos. Agora, arrependido e convertido, milita no movimento pró-vida norte-americano. São suas as palavras acerca do modo pelo qual obteve que a opinião pública se voltasse para a liberação do aborto:
“Serviram-nos de base duas grandes mentiras: a falsificação de estatísticas e pesquisas que dizíamos haver feito e a escolha de uma vítima que afirmasse que o mal do aborto não se aprovaria na América do Norte. Essa vítima foi a Igreja Católica, ou melhor dizendo, sua hierarquia de bispos e cardeais.
Quando mais tarde os abortistas usavam os mesmos “slogans” e argumentos que eu havia preparado em 1968, ria muito, porque eu havia sido um de seus inventores e sabia muito bem que eram mentiras“
Prossegue adiante o Dr. Bernard Nathanson:
“Conseguimos inculcar a idéia nas pessoas de que a Igreja Católica era a culpada da não aprovação da lei do aborto. Como era importante não criar antagonismos entre os próprios americanos de distintas crenças, isolamos a hierarquia, os bispos e os cardeais como os ‘maus’. Essa tática é tão eficaz que, ainda hoje se emprega em outros países. Aos católicos que se opunham ao aborto se lhes acusava de estar enfeitiçados pela hierarquia e os que o aceitavam se lhes considerava como modernos, liberais e mais esclarecidos“
Como se vê, no Brasil, nem toda semelhança é mera coincidência.
O direito de decidir
Há abortistas que dizem que não são favoráveis ao aborto (imagine!), mas que defendem o direito de a mulher decidir se conserva ou aborta seu filho. O aborto então seria um direito subjetivo da mulher. Mas eu pergunto: de qual mulher? Pois das crianças abortadas, aproximadamente cinqüenta por cento são do sexo feminino. A que direito eles se referem? Ao direito da mulher grande sobre a mulher pequena? Da mulher forte sobre a mulher fraca? Da mulher que grita por seus “direitos reprodutivos” sobre aquela que não tem voz para gritar?
Há ainda o argumento de que, ao se legalizar o aborto, nenhuma mulher seria obrigada a fazê-lo. Faria apenas se quisesse. Estaria assim respeitado o seu livre arbítrio, e o nem o Estado nem a Igreja poderiam interferir.
Este é o mesmo argumento usado pelos defensores da escravidão no século XIX:
— Ninguém está obrigado a ter escravos. Você é contra a escravidão? Não escravize. Mas não queira impor sua moral aos outros, que não compartilham a mesma opinião. Não impeça a escravidão nos casos previstos em lei.
Discordo tanto dos escravocratas quanto dos abortistas. Protesto contra a escravidão, ainda que facultativa. Com mais razão ainda, protesto contra o aborto, ainda que facultativo. Pois a escravidão é um atentado contra a liberdade, ao passo que o aborto é um crime contra a VIDA!
E assim como defendo que a lei proíba expressamente a escravidão, e puna os que escravizarem, defendo que a lei continue proibindo expressamente o aborto e punindo aqueles que abortarem.
Uma questão de fé?
É muito comum que as pessoas que me entrevistam perguntem se a Igreja Católica crê que a vida do indivíduo humano começa com a concepção. Respondo que não. A Igreja não “crê” nisso, pois isso não é uma questão de fé. Trata-se de um fato que nós colhemos da Biologia. E contra fatos não há argumentos.
Cito as contundentes palavras da Declaração da Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires sobre o aborto provocado, de 28 de julho de 1994:
“A VIDA HUMANA COMEÇA COM A FECUNDAÇÃO, isto é um fato científico com demonstração experimental; não se trata de um argumento metafísico ou de uma hipótese teológica. No momento da concepção, a união do pró-núcleo feminino e masculino dão lugar a um novo ser com sua individualidade cromossômica e com a carga genética de seus progenitores. Se não se interrompe sua evolução, chegará ao nascimento“.
E em caso de estupro?
Punir a criança com a morte por causa do estupro de seu pai é uma injustiça monstruosa. Mais monstruosa que o próprio estupro!
O estuprador pelo menos poupou a vida da mulher (se não ela não estaria grávida). Será justo que a mãe faça com o bebê o que nem o estuprador ousou fazer com ela: matá-la?
Como vimos, o ser humano é o mesmo, antes ou depois do nascimento, dentro ou fora do útero. Se legalizássemos o aborto em caso de estupro, teríamos, para conservar a coerência, que autorizar a morte de todos os adultos concebidos em um estupro.
A simpatia que o público sente pelo aborto em tal caso não tem explicação lógica, mas puramente psicológica. Sem se dar conta, transfere-se a hediondez do crime para a criança inocente.
Em meu trabalho pró-vida, já conheci muitas vítimas de estupro que engravidaram e deram à luz. Maria Aparecida e Maria Luciene são apenas duas delas, com seus filhos Renato (que hoje já é universitário) e Bruna, respectivamente. Todas elas são unânimes em dizer que estariam morrendo de remorsos se tivessem abortado. Choram só de pensar que alguma vez cogitaram em abortar seu filho. E, para decepção dos penalistas que defendem o aborto em tal caso, a convivência com a criança não perpetua a lembrança do estupro, mas serve de um doce remédio para a violência sofrida. Não conheço nenhum caso em que uma vítima de estupro, após dar a luz, não se apaixonasse pela criança. Digo mais: se no futuro, a mulher se casa e tem outros filhos, o filho do estupro costuma ser o preferido. Tal fato tem uma explicação simples: as mães se apegam de modo especial aos filhos que lhe deram maior trabalho.
E para salvar a vida da gestante?
O aborto é uma prática tão selvagem, que é difícil imaginar que possa trazer algum benefício para a gestante. E realmente não traz. Cito esta frase lapidar da Declaração da Academia de Medicina do Paraguai, de 4 de julho de 1996: “Em casos extremos, o aborto é um agravante, e não uma solução para o problema“.
Houve tempo em que os médicos, não tanto por falta de recursos, mas por ignorância, praticavam aborto com o intuito de salvar gestantes vítimas de tuberculose pulmonar, cardiopatias, vômitos incoercíveis, hipertensão arterial e perturbações mentais. Tal aborto, chamado “terapêutico”, foi duramente criticado pelo médico legal Costa Júnior em uma aula inaugural na USP