“Desci do muro” após um “soco no estômago”

(testemunho de uma antiga repórter do jornal O Popular)

Anuncio Direitos do nascituro OAB 01.11.2018No dia 1º de novembro de 2018, uma quinta-feira, fui às pressas à sede da OAB Goiás, em Goiânia, a fim de dar uma palestra sobre “Os direitos do nascituro” em um evento promovido pela Comissão Especial de Liberdade Religiosa. Tive que começar cedo (às 16 horas) para não chegar atrasado à aula do curso de extensão em Bioética na Faculdade Católica de Anápolis. Embora minha fala nada tivesse de excepcional, é impressionante como a Providência Divina serviu-se de minhas palavras para tocar o coração de uma advogada, Waldineia Ladislau, que durante muitos anos havia sido jornalista da coluna “Direito e Justiça” do jornal O Popular.

Em 2005

Em 11 de outubro de 2005, eu era estudante de Direito da UFG e deparei-me com a notícia de que uma criança – que depois seria chamada Geovana – estava para ser abortada pelo único motivo de ser deficiente. Era portadora da síndrome de “body stalk” (cordão umbilical curto). A sentença de morte havia sido dada pelo juiz da 1ª vara criminal de Goiânia. Sabendo que tal aborto era crime – e que não deixaria de ser crime por causa da “autorização” de um juiz – resolvi impetrar, com base na lei e na Constituição, um habeas corpus em favor do bebê. Os funcionários da escrivania, porém, não permitiram que eu fotocopiasse os autos do processo. Não tive escolha a não ser redigir a petição a mão em folha avulsa, no próprio balcão da escrivania, e protocolá-la junto ao Tribunal com pedido de liminar para sustar a sentença que autorizara o abortamento. Fiz isso por dever de consciência, mas temia que o aborto já houvesse sido realizado ou que a liminar chegasse tarde, como tantas outras vezes já ocorrera.

Em 15 de outubro de 2005, um sábado, uma notícia do jornal O Popular (Goiânia), da jornalista Waldineia Ladislau, confirmou minha suspeita:

 OPopular15.10.2005

O desembargador Aluísio Ataídes de Sousa, em decisão de gabinete, suspendeu ontem alvará judicial que autorizou aborto de feto com síndrome de Body Stalk, em gestante de 19 anos. A decisão, entretanto, perdeu objeto, pois o procedimento já foi realizado.Diante da notícia do aborto já consumado, dei o caso por encerrado. Vários dias depois, porém, eu saberia que tal notícia não era verdadeira. Provavelmente ela havia sido passada à jornalista pela Assessoria de Imprensa do Tribunal de Justiça, mas era falsa. A verdade é que a liminar havia chegado a tempo de salvar Geovana da morte. Ela estava para ser abortada no dia 14 de outubro de 2005, quando chegou ao Hospital Materno Infantil (Goiânia) a decisão liminar do Desembargador Aluízo Ataíde de Souza sustando o aborto e cassando a sentença que o autorizara.

Se eu soubesse que Geovana estava viva no ventre materno e que seus pais haviam voltado com ela para Morrinhos (GO), sem dúvida teria ido visitá-los, acompanhá-los durante a gestação, exortá-los a amarem sua filha até o último momento, oferecer-lhes assistência durante o parto (como fez nossa instituição com tantas outras gestantes) e, em se tratando de uma criança com risco de morte iminente, batizá-la logo após o nascimento. E se ela falecesse, para mim seria uma honra fazer suas cerimônias fúnebres e acompanhar a família até o cemitério.

habeas corpus serve apenas como medida de emergência para salvar o bebê de um ato de desespero dos pais, mas não substitui o cuidado pastoral junto à família.

Quando eu soube de tudo, Geovana Gomes Lomeu já havia nascido por parto normal no Hospital Municipal de Morrinhos em 22 de outubro de 2005, às 12 horas e morrido às 13h40min, sem que ninguém se lembrasse de batizá-la. De qualquer forma, ela recebeu um nome e foi sepultada no Cemitério São Miguel, destino bem melhor que o de ser jogada fora e misturada ao lixo hospitalar.

A história acima eu narrei brevemente na palestra de 1º de novembro de 2018, na sede da OAB Goiás. O público não era numeroso, mas lá estava Sra. Waldineia Ladislau assistindo silenciosamente. Deixemos agora que ela própria descreva a experiência pela qual passou naquele dia. O artigo a seguir foi publicado por ela no dia 27 de dezembro de 2018, no mesmo jornalA dignidade humana

“Criou-se a ilusão de que é melhor fugir da dor em qualquer situação, a qualquer preço”

 

Waldineia LadislauEra repórter do POPULAR em 2006, quando a Justiça de Goiânia começou a autorizar o aborto de fetos anencefálicos (quando o cérebro não é formado no bebê). O argumento para autorização era o fato de que bebês nestas condições sobrevivem poucas horas, não justificando, portanto, o prolongamento do sofrimento da mãe em se levar a gravidez até o final.

O meu ponto de vista sobre o tema, até algumas semanas, era completamente em cima do muro, para ser franca. Entretanto, após reunião especial da Comissão de Direitos Religiosos da Ordem dos Advogados do Brasil, seção de Goiás, no dia 1º de novembro, que abordou o tema “Direitos do Nascituro”; finalmente desci do muro.

Um dos palestrantes, o padre Lodi, advogado com doutorado em bioética, que luta há décadas contra o aborto, falou algo que me fez pensar. Referindo-se a um caso concreto, ele disse que o bebê viveu pouco mais de uma hora, e morreu, mas não foi jogado num saco de lixo e descartado como material hospitalar.

A afirmação foi um soco no estômago. De tanto ouvir o discurso de que um bebê até nascer é apenas um feto, acho que não tinha me dado conta, até então, que os fetos abortados são seres humanos. A única diferença é que são mortos cedo demais. Os bebês ainda em desenvolvimento abortados são jogados fora junto com ataduras sujas, pústulas espremidas e qualquer outro material biológico ensacado num hospital. São seres humanos descartados como lixo.

Os bebês anencefálicos que têm a chance de nascer recebem nome e são devidamente enterrados, têm uma história: nome dos pais, avós, data do nascimento e hora da morte. Isso é dar dignidade à pessoa humana. O doutor Lodi também explicou porque o nascituro deve ser considerado pessoa, juridicamente, o que daria outro artigo, diante da quantidade de argumentos que comprovam o início dos direitos do nascituro na legislação brasileira e internacional desde a concepção.

Nos casos específicos de bebês com essa anomalia, a Justiça tem mantido o entendimento de que a mãe é quem tem de ser poupada emocionalmente. Vivemos num tempo em que fazemos de tudo para sermos poupados de dissabores. Criou-se a ilusão de que é melhor fugir da dor em qualquer situação, a qualquer preço. Certamente não é fácil para uma mãe deparar-se com tal situação, é duríssimo, mas dar dignidade ao filho que não viverá, pode ser uma forma de consolo.

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Anápolis, 04 de janeiro de 2019.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

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