(documento demonstra inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.510-0 DISTRITO FEDERAL
Proposta pelo Procurador Geral da República contra o artigo 5º da Lei nº 11.105 (“Lei da Biossegurança”), de 24 de março de 2005, que permite a destruição de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia.
MEMORIAL
No dia 30 de maio de 2005, o Procurador Geral da República Dr. Cláudio Lemos Fonteles ajuizou a ADI 3510 contra o artigo 5° da Lei de Biossegurança (Lei n.º 11.105/05) que permite a destruição de embriões humanos para fins de pesquisa e terapia, alegando que tal dispositivo contraria a inviolabilidade do direito à vida humana previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal.
O processo foi distribuído para o Ministro Carlos Ayres Britto, o qual, acatando pedido da Procuradoria Geral da República, determinou realização de uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal com autoridades do mundo científico no dia 20 de abril de 2007, sobre a questão do início da vida humana.
No dia 5 de março de 2008, a Suprema Corte iniciou o julgamento. O relator Ministro Carlos Ayres Britto, votou pela improcedência do pedido formulado na ação. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu vista dos autos, tendo como conseqüência a suspensão da votação. No entanto, a Ministra Ellen Gracie, presidente do Tribunal, resolveu antecipar seu voto, acompanhando o relator, ou seja, manifestando-se pela improcedência do pedido.
VOTO DO RELATOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO
O relator alegou em síntese, que a proteção constitucional do direito à vida não atinge o embrião humano fertilizado in vitro. Isso de deve ao silêncio da Constituição Federal sobre o início da vida humana (“silêncio de morte”, segundo trocadilho formulado pelo ministro) e à afirmação contida no artigo 2º (primeira parte) do Código Civil de que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. O nascituro então, conclui o ministro, não é pessoa, mas expectativa de pessoa. Não tem direitos, mas expectativa de direitos. A inviolabilidade do direito à vida só é garantia para o nativivo, ou seja, para aquele que nasceu com vida, pois só este é pessoa.
O Código Civil, em seu artigo 2º (segunda parte) põe a salvo “os direitos do nascituro”, não porque ele seja pessoa, interpreta o relator, mas porque está a caminho de tornar-se pessoa. Trata-se de um transbordamento do princípio da dignidade da pessoa humana, que atinge até quem (ainda) não é pessoa (o nascituro), protegendo seus direitos.
A incriminação do aborto, argumenta o ministro, não significa que a lei reconheça a presença de duas pessoas: a gestante e o nascituro. Se assim fosse, todo e qualquer aborto seria inconstitucional, inclusive o previsto nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal. Para o ministro, a prática do aborto nessas duas hipóteses equivaleria à aplicação da “pena de morte” a uma pessoa pré-natal, o que é proibido pela alínea ado inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal. O ministro, porém, afirma que nenhuma realidade ou forma de vida pré-natal é pessoa. Logo, a lei infraconstitucional pode protegê-la, mas não tem a obrigação de fazê-lo sempre e sem exceções.
O relator chega a essa conclusão jurídica embora reconhecendo explicitamente que “o início da vida humana só pode coincidir com o preciso instante da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozóide masculino”[1]. O zigoto humano, porém, não é pessoa “porque assim é que preceitua o Ordenamento Jurídico Brasileiro”[2].
Além disso, em se tratando de fertilização extracorpórea, diz o relator, o concebido não é nascituro, pelo menos enquanto não for introduzido no útero feminino. Sua destruição não se enquadra no crime de aborto previsto pelo Código Penal. Ele não está a caminho do nascimento, mas confinado in vitro, sem qualquer possibilidade de progressão.
O casal, no entendimento do ministro, ao recorrer à fertilização extracorpórea, não está obrigado a aproveitar todos os óvulos eventualmente fecundados. Os embriões “excedentários” não mantêm com seus genitores o mesmo vínculo de proximidade física e afetividade que costumam ter os embriões fecundados naturalmente. Então, conclui o relator, na impossibilidade de mantê-los congelados indefinidamente, pode-se, com a autorização dos pais, destruí-los para os fins previstos pelo artigo 5º da Lei de Biossegurança.
No final de seu voto, o ministro vai além. No caso de um embrião excedentário fertilizado in vitro não existe pessoa humana “nem mesmo como pura potencialidade”[3], uma vez que lhe falta o cérebro. Tal embrião “é algo que jamais será alguém”[4]. Essa conclusão é extraída de um paralelo com a Lei de Transplantes (Lei 9.434/97, art. 3º) que autoriza a retirada “post mortem” de tecidos ou órgãos do corpo humano, uma vez constatada a morte encefálica.
Despojado de personalidade e de proteção jurídica, nada obsta, segundo o ministro, que o embrião congelado seja usado para superar o infortúnio alheio, em benefício da saúde e da ciência.
A PERSONALIDADE DO NASCITURO
A redação controversa do Código Civil de 1916
O nó da argumentação do ministro Carlos Ayres Britto está no não-reconhecimento da personalidade do nascituro.
Na vigência do Código Civil de 1916, o seu artigo 4º trazia a seguinte redação:
“A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.
Esse dispositivo foi causa de incontáveis discórdias entre os civilistas. Se o nascituro não é pessoa, ele não poderia ter direitos. Quando muito, teria expectativa de direitos. No entanto, a lei punha a salvo os direitos (no plural) — atuais, e não em potência — do nascituro. Autores como Franco Montoro, Otávio Ferreira Cardoso e, sobretudo, Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida, fazendo uma interpretação sistemática do Código Civil, afirmavam que o nascituro é propriamente pessoa, não obstante a redação controversa daquele artigo.
O Pacto de São José da Costa Rica
Contudo, a primeira parte desse artigo (“a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida) foi revogada pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.
Trata-se de uma Convenção Americana sobre Direitos Humanos, subscrita em 22 de novembro de 1969. Foi aprovada pelo Congresso Nacional do Brasil em 26 de maio de 1992 (Decreto Legislativo n. 27), tendo o Governo brasileiro determinado sua integral observância em 6 de novembro seguinte (Decreto n. 678).
Com efeito, diz o § 1º, artigo 2º, do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução ao Código Civil: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule matéria de que tratava a lei anterior”.
Diz a referida Convenção em seu artigo 1º, n. 2: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”. (destacou-se)
Diz ainda o inciso I do artigo 4ª da mesma Convenção: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido por lei e, em geral,desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” (destacou-se)
Como se pode verificar, o Pacto de São José da Costa Rica (como é conhecida a Convenção) diz inequivocamente que “pessoa é todo ser humano”, sem fazer qualquer distinção entre o ser humano em sua vida intra e extra-uterina. A expressão “desde o momento da concepção” força-nos a concluir que a palavra “pessoa” se aplica também ao nascituro.
Alguém poderia argumentar que a afirmação “pessoa é todo ser humano” só vale “para os efeitos desta Convenção” (art. 1º, n. 2). E é verdade. Um dos efeitos, porém, primordiais da Convenção é a obrigatoriedade de os Estados-partes reconhecerem a personalidade jurídica de toda pessoa ( = “de todo ser humano”). É o que diz o artigo 3º: “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”.
A partir, portanto, de 6 de novembro de 1992, data em que a Convenção se fez direito interno brasileiro, toda “pessoa” (que, para os efeitos da Convenção, é todo ser humano), passou a ter direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Se, portanto, a primeira parte do artigo 4°, CC/1916 não reconhecia personalidade jurídica ao nascituro, foi revogada por força de uma lei posterior.
Jaques de Camargo Penteado[5] alega que a doutrina da personalidade do nascituro
… culminou com sua consagração no âmbito internacional, tanto que o Pacto de São José de Costa Rica dispõe que ‘pessoa é todo ser humano’ (art. 1º, n.º 2). Além disso, vigora no âmbito interno, posto que adotado pelo Brasil, tanto que já se reflete na jurisprudência nacional.[6]
Ao pé da página, o autor cita uma decisão do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo[7]:
Em boa hora se vem invocando nos Pretórios o Pacto de São José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que se fezdireito interno brasileiro, e que, pois, já não se configura, entre nós, simples meta ou ideal de lege ferenda. É mesmo reclamável seu cumprimento integral, porque essa Convenção foi acolhida sem reservas pelo Estado brasileiro. Parece que ainda não se compreendeu inteiramente o vultoso significado da adoção do Pacto entre nós: bastaria lembrar, a propósito, pela vistosidade de suas conseqüências, que seu art. 2º modificou até mesmo conceito de pessoa versado no art. 4º do Código Civil, já que, atualmente, pessoa, para o direito posto brasileiro, é todo ser humano, sem distinção de sua vida extra ou intra-uterina. Projetos, pois, destinados a viabilizar a prática de aborto direto ou a excluir antijuridicidade para a prática de certos abortamentos voluntários conflitam com a referida Convenção (Habeas Corpus n.º 323.998/6, Tacrim-SP, 11ª Câm., v. un., Rel. Ricardo Dip, j.29.6.1998).
Houve, porém, infelizmente, um grande desconhecimento do alcance do Pacto de São José da Costa Rica em face da legislação brasileira. Depois de sua vigência, nenhum doutrinador poderia dizer (mas muitos continuaram dizendo) que o nascituro é mera “expectativa de pessoa” (spes personae), gozando apenas de “expectativas de direitos”.
O Código Civil de 2002
Ao assinar e ratificar o Pacto de São José da Costa Rica, o Brasil comprometeu-se a
… adotar, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades (art. 2º da Convenção).
Assim, o Congresso Nacional, ao instituir o novo Código Civil, deveria, em cumprimento ao compromisso assumido na Convenção, ter modificado a redação do artigo 4º, a fim de assegurar a todo ente humano, nascido ou nascituro, o reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Lamentavelmente o novo Código Civil (Lei 10.406/2002), sancionado em 10/01/2002 e em vigor desde 11/01/2003, ignorou totalmente tal compromisso internacional e manteve quase integralmente as palavras do Código de 1916:
“Art. 2º – A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Pergunta-se: a partir do dia 11 de janeiro de 2003, quando o novo Código entrou em vigor, terá havido um retrocesso em relação aos direitos humanos? Em particular, em relação ao mais débil dos entes humanos: o nascituro? Terá tido o novo Código força de revogar o estabelecido em uma Convenção Internacional ? Haverá superioridade hierárquica do Pacto de São José da Costa Rica em relação ao novo Código Civil?
A posição hierárquica do Pacto de São José da Costa Rica
Para responder a essa questão, valhamo-nos dos argumentos de Flávia Piovesan. Diz a referida autora:
A Carta de 1988 consagra de forma inédita, ao fim da extensa Declaração de Direitos por ela prevista, que os direitos e garantias expressos na Constituição ‘não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’ (art. 5º, parágrafo 2°).
Note-se que a Constituição de 1967, no art. 153, parágrafo 36, previa: ‘A especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota’. A Carta de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.
Ora, ao prescrever que ‘os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais’, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo de inclusão implica na incorporação pelo texto constitucional destes direitos.
Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a hierarquia de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Esta conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional.[8]
(…)
Em favor da natureza constitucional dos direitos enunciados em tratados internacionais, um outro argumento se acrescenta: a natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais. Este reconhecimento se faz explícito na Carta de 1988, ao invocar a previsão do art. 5º, parágrafo 2º. Vale dizer, se não se tratasse de matéria constitucional, ficaria sem sentido tal previsão.[9]
Até 1977, o Supremo Tribunal Federal afirmava a superioridade dos tratados internacionais sobre as normas ordinárias de direito interno. Citemos novamente Flávia Piovesan:
Observe-se que, anteriormente a 1977, há diversos acórdãos consagrando o primado do Direito Internacional, como é o caso da União Federal c. Cia Rádio Internacional do Brasil (1951), em que o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente que um tratado revogava as leis anteriores (Apelação Cível 9.587). Merece também menção um acórdão do STF, em 1914, no Pedido de Extradição n. 07 de 1913, em que se declarava estar em vigor e aplicável um tratado, apesar de haver uma lei posterior contrária a ele. O acórdão na Apelação Cível n. 7.872 de 1943, com base no voto de Philadelpho de Azevedo, também afirma que a lei não revoga o tratado. Ainda neste sentido está a Lei n. 5.172 de 25/10/66 que estabelece: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha”.[10]
Esse entendimento mudou a partir do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004 em 1977, que adotou a tese da paridade entre o tratado internacional e a lei federal, estando ambos em mesmo nível hierárquico. A este respeito, comenta Valerio de Oliveira Mazzuoli:
A nova posição da Excelsa Corte, entretanto, enraizou-se de tal maneira que o min. Francisco Rezek emitiu pronunciamento de forma assaz contundente, dizendo da ‘prevalência à última palavra do Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não obstante isso importasse o reconhecimento da afronta, pelo país, de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciário não teria como dar remédio (Extradição n° 426, in RTJ 115/973)’.[11]
Para agravar a situação, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento doHabeas Corpus 72.131-RJ (22.11.1995), declarou explicitamente que o Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, VII) não tinha o poder de proibir a prisão civil por dívida do depositário infiel, prevista na Constituição Federal (art. 5º, LXVII), posição essa que foi reiterada em diversos julgados.
O novo Código Civil, à semelhança do anterior, reconhece vários direitos ao nascituro, entre eles: o de receber doação mediante representante legal (art. 542), o de receber um curador (art. 1779) e o de ser beneficiado por herança (art. 1798). Mas persiste com a redação obsoleta e contraditória de que a personalidade civil só começa com o nascimento com vida (art. 2º).
Até pouquíssimo tempo, o Supremo Tribunal Federal vinha-se demonstrando propenso a declarar que uma nova lei ordinária tem o condão de afastar a aplicação de um tratado anteriormente celebrado.
Com todo o respeito devido à Suprema Corte, prevalecendo esse entendimento, seria razoável que o Brasil não mais assinasse tratados internacionais. Pois os compromissos solenemente assumidos perante as nações sempre poderão ser descumpridos por uma simples lei ordinária. Um exemplo ilustrativo é a obrigação assumida pelo Brasil no Pacto de São José da Costa Rica de não restabelecer a pena de morte:
“Art. 4 – III – Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido.”
Tal dispositivo é totalmente inócuo, uma vez que, se o legislador nacional decidir instituir a pena de morte,[12] sua vontade prevalecerá sobre o anterior compromisso internacional. Para que servem então os tratados e convenções?
A peculiaridade do direito do nascituro à personalidade
No caso do direito do nascituro à personalidade jurídica, há uma peculiaridade. A Convenção dá a tal direito tamanha importância, que ele não pode ser suspenso nem sequer em caso de guerra, perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência e a segurança do Estado-Parte:
Art. 27
1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado-Parte, este poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados as exigências da situação, suspendem as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.
2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes artigos: 3 (Direito ao Reconhecimento da Personalidade Jurídica), 4 (Direito a Vida), 5 (Direito a Integridade Pessoal), 6 (Proibição da Escravidão e Servidão), 9 (Principio da Legalidade e da Retroatividade), 12 (Liberdade de Consciência e de Religião), 17 (Proteção da Família), 18 (Direito ao Nome), 19 (Direitos da Criança), 20 (Direito a Nacionalidade) e 23 (Direitos Políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos. (destacou-se)
No entanto, paradoxalmente, uma simples lei ordinária ousou abolir o reconhecimento da personalidade do nascituro.
Poderia algum Estado opor alguma exceção aos direitos consagrados na Convenção, suprimi-los ou limitá-los? Em outras palavras: teria o legislador ordinário poder para negar a personalidade ao nascituro, embora esta tenha sido reconhecida pelo Pacto Internacional?
Vale citar aqui a resposta magistral de Ricardo Henry Marques Dip[13]:
Não se justifica, para mais, diante da ratificação do Pacto de São José pelo Estado brasileiro, nenhuma prática estatal de auxílio ao abortamento direto, nem a omissão do Governo na ajuda material e psicológica às mulheres que engravidam vítimas de estupro, a fim de que evitem a prática do delito de aborto, embora, in casu, não–punível.
Não parece nunca demasiado, a propósito, considerar o preceito do artigo 29 do Pacto de São José:
‘Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a. Permitir a alguns dos Estados–partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá–los em maior medida que a prevista nela’.[14]
A Emenda Constitucional 45/2004 e seus efeitos
A Emenda Constitucional n.° 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou ao artigo 5° da Carta Magna o parágrafo terceiro:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
O objetivo do constituinte derivado foi acabar com a celeuma acerca do nível hierárquico dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. No entanto, o tiro poderia ter saído pela culatra, conforme previu Valério de Almeida Mazzuoli quando a PEC 2.920/2000 (que deu origem à EC 45/04) ainda estava em tramitação:
A celeuma que esta emenda causará, se aprovada, será enorme, principalmente porque se sabe que o Brasil já cumpriu quase todos os seus compromissos internacionais relativos a direitos humanos, faltando poucos instrumentos de âmbito global a serem ratificados. Dessa forma, se aprovada a Emenda, não se saberá mais em qual status normativo estarão todos os tratados de direitos humanos já ratificados e em vigor no Brasil, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e vários outros.[15]
Após a promulgação da Emenda, de fato a divergência ficou instaurada. Alguns defensores do status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos lamentaram a inserção do parágrafo 3° ao artigo 5°, uma vez que teria reduzido ao nível de lei ordinária os tratados celebrados antes de 31 de dezembro de 2004.[16]Só os tratados posteriores a essa data poderiam adquirir nível constitucional, e ainda assim, só depois de um dificultoso processo, com a aprovação de três quintos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional.
Mazzuoli continuou sustentando que
… o novo § 3°, introduzido pela Emenda Constitucional 45/2004 (…), não afeta os tratados internacionais sobre direitos humanos já ratificados anteriormente pelo Brasil, valendo tão somente para os tratados ratificados depois de sua entrada em vigor e, ainda assim, para atribuir-lhes equivalência de emenda constitucional, e não para dar o status de ‘norma constitucional’ que eles já detêm (uma vez que ampliam o núcleo material mínimo da Constituição, ou seja, o seu ‘bloco de constitucionalidade’).[17]
Esse também foi o entendimento de Flávia Piovesan. Segundo ela, o parágrafo 3º serviu para criar duas categorias de tratados de direitos humanos: osapenas materialmente constitucionais (por força do art. 5º, §2°, CF) e os materialmente e formalmente constitucionais (por força do art. 5°, §3°, CF). Estes últimos, “equivalentes a emendas constitucionais” não são suscetíveis de denúncia, ao passo que os primeiros podem ser denunciados:
Desde logo, há que se afastar o entendimento de que, em face do § 3º do art. 5º, todos os tratados de direitos humanos já ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obtido o quorum de três quintos demandado pelo aludido parágrafo. Reitere-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais. O quorum qualificado está tão-somente a reforçar tal natureza constitucional, ao adicionar um lastro de formalmente constitucional. (…) Vale dizer que com o advento do § 3º do art. 5º surgem duas categorias de tratados de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frise-se: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força de § 2º do art. 5º. Para além de serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do § 3º do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.
Ainda que todos os tratados de direitos humanos sejam recepcionados em grau constitucional, por veicularem matéria e substância essencialmente constitucional, importa realçar a diversidade de regimes jurídicos que se aplica aos tratados apenas materialmente constitucionais e aos tratados que, além de materialmente constitucionais, também são formalmente constitucionais. E a diversidade de regimes jurídicos atém-se à denúncia, que é o ato unilateral pelo qual um Estado se retira de um tratado. Enquanto os tratados materialmente constitucionais podem ser suscetíveis de denúncia, os tratados material e formalmente constitucionais não podem ser denunciados.[18]
Afortunadamente, Francisco Rezek, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, que sempre defendeu a tese da supremacia da Constituição Federal sobre os tratados internacionais de direitos humanos, mudou de posicionamento a partir da Emenda Constitucional 45/04:
No desfecho do extenso rol de direitos e garantias individuais do art. 5º da Constituição um segundo parágrafo estabelece, desde 1988, que aquela lista não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios consagrados na carta, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Sobre esta última categoria nada se ouviu nos anos seguintes do Supremo Tribunal Federal, cuja maioria era entretanto pouco receptiva à idéia de que a norma assecuratória de algum outro direito, quando expressa em tratado, tivesse nível constitucional. Isso resultava provavelmente da consideração de que, assim postas as coisas, a carta estaria dando ao Executivo e ao Congresso, este no quorum simples da aprovação de tratados, o poder de aditar à lei fundamental; quem sabe mesmo o de mais tarde expurgá-la mediante a denúncia do tratado, já então — o que parece impalatável — até pela vontade singular do governo, habilitado que se encontra, em princípio, à denúncia de compromissos internacionais. As perspectivas da jurisprudência, nesse domínio, pareciam sombrias quando se levavam em conta algumas decisões majoritárias que o Supremo tomou na época a propósito da prisão do depositário infiel (ou daqueles devedores que o legislador ordinário brasileiro entendeu de assimilar ao depositário infiel), frente ao texto da Convenção de São José da Costa Rica.
A questão não subsiste a partir de agora, resolvida que foi pelo aditamento do terceiro parágrafo ao mesmo artigo constitucional: os tratados sobre direitos humanos que o Congresso aprove com o rito da emenda à carta — em cada casa dois turnos de sufrágio e o voto de três quintos do total de seus membros — integrarão em seguida a ordem jurídica no nível das normas da própria Constituição. (…)
Uma última dúvida diz respeito ao passado, a algum eventual direito que um dia se tenha descrito em tratado de que o Brasil seja parte — e que já não se encontre no rol do art. 5°. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia entre os constitucionalistas, mas é sensato crer que ao promulgar esse parágrafo na Emenda constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional. Essa é uma equação jurídica da mesma natureza daquela que explica que nosso Código Tributário, promulgado a seu tempo como lei ordinária, tenha-se promovido a lei complementar à Constituição desde o momento em que a carta disse que as normas gerais de direito tributário deveriam estar expressas em diploma dessa estatura.[19]
Segundo Rezek, portanto, por força da EC 45/04 houve uma espécie de “recepção” dos tratados anteriormente celebrados, promovidos ao nível constitucional, entre os quais o Pacto de São José da Costa Rica, que assegura o reconhecimento da personalidade do nascituro.
O voto do Ministro Celso de Mello no HC 87.585-8 TO
No dia 12 de março de 2008, o Ministro Celso de Mello proferiu um voto no julgamento do Habeas Corpus 87.585-8 Tocantins, que marca uma mudança de posição do Supremo Tribunal Federal acerca dos tratados internacionais de direitos humanos, em particular, do Pacto de São José da Costa Rica.
Seu extenso voto de 54 páginas cita inúmeros autores, inclusive Flávia Piovesan, Valério de Almeida Mazzuoli e Francisco Rezek, já citados acima. O cerne do problema, diz o Ministro é o seguinte:
A questão básica suscitada na presente causa consiste em saber se ainda subsiste, no direito positivo brasileiro, no plano infraconstitucional da legislação interna, a prisão civil do depositário infiel, considerado o que dispõem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de São José da Costa Rica (Art. 7º, § 7º) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 11).[20]
Sobre esse tema, o Ministro admite ter mudado de entendimento:
Após longa reflexão sobre o tema em causa, Senhora Presidente –notadamente a partir da decisão plenária desta Corte na ADI 1.480-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 179/493-496) -, julguei necessário reavaliar certas formulações e premissas teóricas que me conduziram, então, naquela oportunidade, a conferir, aos tratados internacionais em geral (qualquer que fosse a matéria neles veiculada), posição juridicamenteequivalente à das leis ordinárias.[21]
Cita o Ministro Gilmar Mendes, que defende a “supralegalidade” dos tratados e convenções de direitos humanos, ou seja, uma posição inferior à da Constituição, mas superior à da legislação ordinária:
“Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de ‘supralegalidade’ aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais,também seriam dotados de um atributo de ‘supralegalidade’.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especialreservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.”
Cita ainda o voto do ex-Ministro Sepúlveda Pertence (RHC 79.785/RJ) no sentido de admitir a prevalência dos tratados internacionais de direitos humanos sobre legislação interna infraconstitucional do Estado Brasileiro[22]. No entanto, Celso de Mello vai além e admite que a posição de tais tratados não é apenas “supralegal” mas propriamente constitucional, conforme orientação doutrinária de Flávia Piovesan, Valério de Almeida Mazzuoli e Francisco Rezek, entre outros:
Após muita reflexão sobre esse tema, e não obstante anteriores julgamentos desta Corte de que participei como Relator (RTJ 174/463-465 – RTJ 179/493-496), inclino-me a acolher essa orientação, que atribui natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos…[23]
Essa mudança de pensamento já havia sido tomada pelo Ministro Ilmar Galvão, em conforme afirma Celso de Mello:
Não foi por outra razão que o eminente Ministro ILMAR GALVÃO, no presente caso, reconsiderando o seu anterior entendimento, tal como eu próprio ora faço neste julgamento, destacou, em momento que precedeu a promulgação da EC nº 45/2004, que o § 2º do art. 5º da Constituição -verdadeira cláusula geral de recepção – autoriza o reconhecimento de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem hierarquia constitucional, em face da relevantíss