Um parecer do procurador de justiça do Rio Grande do Sul Dr. Sérgio Guimarães Britto contrário ao abortamento de uma criança anencéfala. Notar as referências à menina anencéfala Marcela de Jesus Ferreira, nascida em Patrocínio Paulista (SP) em 20/11/2006, e ainda viva por ocasião da emissão desse parecer, em 01/11/2007.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1ª CÂMARA CRIMINAL
ORIGEM: SANTA MARIA
APELAÇÃO CRIME Nº 70.021.944.020
APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
APELADA: S. D. V.
RELATOR: DES. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA
Parecer do Ministério Público
1. S. D. V., através de seus advogados, requereu autorização judicial para interrupção de gravidez na 1a Vara Criminal da comarca de Santa Maria, alegando que o feto tem anencefalia e que “é desumano permitir que uma mulher tenha que aguardar cinco meses gerando um feto que nascerá morto, ou viverá alguns minutos, talvez uma hora na melhor das hipóteses”.
O Dr. Promotor de Justiça manifestou-se pelo indeferimento do pedido (fls. 20 a 22).
O Dr. Juiz de Direito julgou procedente o pedido (fls. 23 a 28).
Houve apelação do Parquet (fl. 29), tendo o Magistrado recebido a irresignação e concedido efeito suspensivo pelo prazo de 30 dias (fls. 30 a 31).
Foram apresentadas razões pelo Dr. Promotor de Justiça (fls. 32 a 36) e contra-razões pela defesa técnica (fls. 40 a 50).
2. O decisório deve ser reformado, pois carece de fomento jurídico e autoriza, na verdade, o assassínio de uma vida humana, função que não cabe ao Poder Judiciário num Estado Democrático de Direito.
Todavia, em razão do tema ser melindroso e com várias nuanças jurídicas, filosóficas, científicas e espirituais, não cabe analisá-lo perfunctoriamente e numa singela visão maniqueísta.
Em primeiro lugar, é preciso dizer com toda a ênfase, que o nosso sistema jurídico não contempla a autorização do aborto eugenésico, que é o caso dos autos.
Com efeito, o Código Penal trata apenas do aborto necessário, também chamado de terapêutico, e do sentimental (art. 128 do Estatuto Repressivo).
Conseqüentemente, com a devida vênia dos que pensam o contrário, “a autorização para a realização do aborto eugenésico, fundamentado na anencefalia do feto, não é contemplada pelo direito infraconstitucional como uma das hipóteses de aborto legal, razão pela qual seu deferimento resultaria em afronta à Lei Maior” (2a Câmara Criminal do TJSP, in REVISTA DOS TRIBUNAIS, 806/540).
Decidir em contrário colocaria o Poder Judiciário na condição de fixar juízo de natureza normativa, substituindo indevidamente os Poderes Legislativo e Executivo.
Nessa linha, o Código Penal já sofreu diversas modificações ao longo dos tempos, mas o legislador nacional não se aventurou a tocar na questão ora em foco apesar dos avanços radiológicos e clínicos que permitem descobrir doenças do feto, pelo receio de se chegar a uma idéia de raça eugênica ou de corpos perfeitos.
Não é anacronismo, mas simplesmente o conceito de que há que se evitar a padronização de corpos.
No final do século XX, várias crianças nasceram com deformações terríveis causadas pela ingestão pelas mães de um remédio chamado Talidomida, algumas sem braços, outras sem pernas, e ainda várias com problemas em todos os membros, mas chegaram à idade adulta e até constituíram famílias. Será que aquelas mães, se pudessem visualizar o estado dos fetos dentro do útero, teriam a fortaleza moral de querer continuar com a gravidez?
Vivemos numa época em que todos querem utilizar atalhos em suas vidas, sem se darem conta que os desafios e os problemas fazem parte da nossa missão terrena, para que consigamos evoluir como espíritos.
O ego predomina, a busca pelo prazer e pelo sucesso não tem limites, e nesse rumo, tudo é transitório e fugaz, inexistindo cuidado com as repercussões futuras dos atos no presente.
Assim, vem o conceito de que pode o anencéfalo, mesmo que vivo e humano, ser descartado antes do nascimento como um objeto, simplesmente porque vai viver pouco, dar trabalho e gerar custos, sem poucos benefícios.
É quase um jogo de azar: o feto gerado só merece cuidados e atenção se for perfeito, tiver saúde, e perspectiva de vida duradoura.
Se isso não é eugenia, o que é?
O fato de que a anencefalia seria fatal em 100% dos casos não deve ser o fator que permite o desencadeamento da interrupção da gravidez.
O importante, como destacado em estudo estatístico citado na fl. 31 dos autos da AC n° 70012840971, é que entre 40 e 60% nascem vivos, somente 8% sobrevive mais de 1 semana, e os restantes entre 1 e 3 meses.
Como tratarei adiante, há no Brasil uma criança que irá completar em novembro de 2007 um ano de vida.
Apesar do defeito congênito, portanto, o anencéfalo é um ser humano que está a pulsar dentro do corpo da mãe e que pode viver minutos, horas, dias, meses ou até anos.
Segundo o Comitê de Bioética da Presidência do Conselho de Ministros da República da Itália, em relatório aprovado em 21/06/96, foi observado um caso de sobrevivência de até 14 meses “e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer à respiração mecânica” (“Il neonato anencefalico e la donazioni di organi”, p. 9, in www.providaanapolis.org.br/cnbport.htm e www.providafamilia.org.br).
Como então deferir o aborto, se o Código Civil, no seu art. 2o, rege que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”?
PONTES DE MIRANDA tem lapidar lição a respeito da questão: “quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar a viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto prazo em que viveu. O Código Civil desconhece monstros, monstra. Quem nasce de mulher é ser humano. Não cogita do hermafrodita, no tocante à personalidade (C. Crome, System, I, 206)” (“Tratado de Direito Privado”, RJ, Ed. Borsoi, 1954, Parte Geral, Tomo I, § 5o, n° 4, p. 163).
Em diferente sentido, o Prof. Dr. JOSÉ ROQUE JUNGES (in “Dicionário de Filosofia do Direito”, Ed. Unisinos, pp. 19-23, verbete Aborto) acentua o valor ético da discussão a respeito do aborto, tendo como norte o princípio da dignidade da pessoa humana. Suas precisas considerações dizem respeito ao aborto de forma geral, mas se adeqüam com precisão à discussão em testilha:
“O jurista italiano D´Agostino propõe o paradigma relacional como ponto de partida e vê o Direito como um sistema objetivo de defesa das expectativas irrenunciáveis da pessoa humana em sua realidade de sujeito em relação. Para esse paradigma é juridicamente ilícita toda modalidade de relação que altere a simetria da reciprocidade, dando a um elo da relação poderes e privilégios indevidos que não sejam reconhecidos à outra parte. Assim, existe um critério específico para definir a justiça como eqüidade. Assumindo o paradigma relacional, o aborto aparece sob uma nova luz, porque se deixa de acentuar os direitos de um ou outro pólo (feto e mulher) da relação, mas entender os pólos da relação. Desta forma, a autonomia de um dos pólos é completada e corrigida pela responsabilidade frente ao outro pólo.
Mas alguém poderia dizer que não existe uma relação estabelecida com o embrião. Aqui é necessário introduzir a questão do estatuto do embrião. Como mostra muito bem Bourguet, essa questão desdobra-se em duas, uma que deve ser respondida pela biologia e a outra pela ética: o embrião é um indivíduo biológico da espécie humana?; se ele é um indivíduo, então se coloca a segunda pergunta: ele merece o respeito devido a uma pessoa humana?
Para Bourguet, as tentativas de negar a individualidade biológica do embrião são discutíveis, porque tentam aplicar à realidade embrionária os critérios da individualidade adulta e porque usam parâmetros morfológicos ultrapassados para definir a individualidade diante dos avanços da genética. A individualidade não se funda na operação do observador.
Isso seria reduzir a individualidade a uma estrutura dada e fixa ou a uma aparência definida. Essa é uma concepção fixista da individualidade que reconhece a identidade com os sinais. A identidade é fruto de uma autoconstrução que é necessário apreender, não se fixando nos sinais externos de alguns dos estados sucessivos do desenvolvimento embrionário. Hoje não se pode mais definir a individualidade por critérios morfológicos como faziam os antigos, que avaliavam a identidade do embrião comparando-o com as formas humanas adultas. A partir dos avanços da genética, a individualidade biológica é definida pela individualidade do genoma. Bourguet desconstrói essa objeção, mostrando que a individualidade do embrião inicial não desaparece, porque a divisão não acontece como na meiose das células germinativas, mas algumas células do aglomerado inicial que são totipotentes desprendem-se, formando um novo ser. A primeira individualidade permanece, surgindo no decorrer do desenvolvimento embrionário uma segunda individualidade possibilitada pela totipotência das células iniciais.
Uma vez definida a individualidade biológica do embrião, Bourguet pergunta se ele merece o respeito que se deve a uma pessoa. Não se trata de uma pergunta ontológica se o embrião é ou não pessoa humana, mas de uma questão ética, isto é, se é aplicável a ele a categoria moral de respeito que se identifica, a partir de Kant, com a categoria moral de pessoa. Portanto, a questão não é ontológica, mas ética. Bourguet fundamentará sua argumentação principalmente em Levinas e Kant.
A personalidade do embrião pode ser definida a partir de regras coletivas (ordem jurídica/leis políticas) ou na perspectiva do agente moral (ordem ética). A dificuldade da primeira é que o embrião não é um alter ego participante do contrato social que eu possa experimentar como espelho de mim mesmo. Não existe simetria, mas assimetria. Nesse sentido, o enfoque adequado para compreender o estatuto do embrião não é tanto jurídico, mas ético, sendo, por isso, necessário compreender-se nessa definição como um agente moral em relação a ele. Em outras palavras, trata-se de assumir o paradigma relacional como ponto de partida e modo de compreensão do estatuto do embrião.
Para Levinas, só o primado da ética pode captar o outro enquanto tal. Acolher o outro como outro é despossuir o ego do poder de pôr condições ou de tentar definir o outro. O outro só pode estar presente da suspensão da economia do interesse próprio, pois o outro não é, no fundo, um outro eu, no sentido de uma pura representação de mim. A ética parte dessa assimetria inicial que precede a simetria que o Direito assume. A ética adia a representação do outro, porque o objeto representado é uma obra do pensamento.
Para Kant, a humanidade é o critério que tem a evidência da objetividade da natureza para garantir a moralidade do respeito. Assim o respeito à dignidade humana, coextensivo a todo aquele que é humano, torna-se um imperativo categórico, isto é, incondicional, não sendo permitido impor condições para o respeito a todo aquele que faz parte da humanidade, então não é permitido impor condições de humanidade para respeitar o embrião.
Essa argumentação filosófica fundada em Kant e Levinas mostra que o posicionamento diante do embrião e em relação ao aborto não é uma questão de dogmas religiosos ou de sacralidade ou não da vida humana, como pensa Mori e outros, mas de pressupostos filosóficos e antropológicos. Por isso, um cientista como Testard, que não parte de uma mentalidade religiosa, pode afirmar: Eu sou ateu e não creio que o embrião seja sagrado, mas para mim, ele merece respeito e não pode ser considerado como um material à imagem dum embrião de rato ( La Vie , nº 3072/15 julliet 2004, p. 24)”(grifei).
Não se pode exigir, pois, a forma humana perfeita como requisito da personalidade civil.
CLÓVIS BEVILÁQUA aponta que “há monstros e aleijões viáveis, como há formas teratológicas inadequadas à vida. O direito romano recusava a capacidade jurídica aos que ‘contra formam humani generis, converso more, procreantur'(D. 1, 5, fr. 14). Mas essa doutrina deve ser afastada. É humano todo ser, que é dado à luz por mulher, e como tal, para os efeitos do Direito, é homem” (“Código Civil dos Estados do Brasil Comentado”, 11a ed., 1956, p. 145).
E o que é o feto anencéfalo? É ser humano não coisa, pois há normal desenvolvimento dos seus sistemas corporais, possuindo olhos, ouvidos, nariz, boca, mãos, pés, órgãos, sangue, coração. Apenas a calota craniana é que vai se apresentar abaulada, em virtude da ausência do cérebro.
A Lei Maior, por seu turno, estabelece ser inviolável o direito à vida (art. 5o, I) e no art. 227, determina absoluta prioridade ao direito à vida.
No caso vertente, ao se negar o aborto, não se está atentando contra a dignidade da pessoa da apelada, ou violando sua liberdade ou autonomia de vontade e nem mesmo o seu direito à saúde, mas protegendo o bem jurídico vida do nascituro, considerado como inalienável, indisponível e irrenunciável.
A propósito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra que “cada pessoa tem direito à vida…” e, no mesmo diapasão, a Declaração Universal dos Direitos da Criança apregoa que a criança deve ter “adequada proteção legal tanto antes como depois do nascimento”.
Como inserir nesse quadro, a inaudita Resolução n° 1.752/04, de 13/09/04, do Conselho Federal de Medicina que, simplesmente, permite arrancar os órgãos de recém-nascidos encefálicos mesmo antes que eles estejam mortos, ou seja, com o tronco cerebral ainda funcionando?
A violação da Carta Magna e do Código Civil é flagrante.
O Conselho baseou-se num parecer do oftalmologista gaúcho Marco Antônio Becker que, mesmo absolutamente fora da sua especialidade médica, aventurou-se a fazer a seguinte “recomendação” (sic): “uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá proceder ao transplante de órgãos do anencéfalo após a sua expulsão ou retirada do útero materno, dada a incompatibilidade vital que o ente apresenta, por não possuir a parte nobre e vital do cérebro, tratando-se de processo irreversível, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante”, isso porque “os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais)” (DJU de 13/09/04, p. 140).
Em outras palavras, autoriza o homicídio de recém nascidos anencéfalos…
Em primeiro lugar, acontece que não existe um “natimorto cerebral”. Um bebê é natimorto, se nasceu morto. Se nasceu respirando, nasceu vivo.
A propósito, “convém enfatizar que o anencéfalo, mesmo com baixa expectativa de vida, detém tronco encefálico, respira após o nascimento, esboça movimentos e, na condição de ser vivente, a ninguém é dado o direito de praticar homicídio, promovendo a retirada de órgãos para serem transplantados” (SÉRGIO I. F. COSTA, “Anencefalia e Transplante”, Revista da Associação Médica Brasileira, v. 50, n.1., p. 10).
A doutrina estrangeira, igualmente, destaca que “o anencéfalo não é de fato ausente de cérebro, uma vez que a função do tronco cerebral está presente durante o curto período de sobrevida. Muito pouco se conhece sobre a função neurológica do recém-nascido anencéfalo. Um recente estudo em profundidade indica que eles estão funcionalmente mais próximos dos recém-nascidos normais do que de adultos em estado vegetativo crônico” (EUGENE F. DIAMOND, in “Management of Pregnancy With na Anencephalic Baby”, disponível em www.asfhelp.com/asf/management_of_a_pregnancy).
Analisando os bebês anencéfalos, ARTHUR C. GUYTON esclarece que “tais crianças são capazes de executar essencialmente todas as funções de alimentação, como sucção, expulsão de comida desagradável da boca, e levar as mãos à boca para sugar seus dedos. Além disso, elas podem bocejar e estirar-se. Eles podem chorar e seguir objetos com os olhos e movimentos de sua cabeça. Pressionando-se, também, parte anterior de suas pernas, faremos com que eles passem a uma posição sentada” (“Tratado de Fisiologia Médica”, Ed. Interamericana, RJ, p. 619, citado por JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, in “Consulta sobre a Permissão do Aborto de Fetos Anencéfalos, 11/08/04, disponível na Biblioteca on-line do STF).
Por sua vez, o mesmo Comitê de Bioética do Governo Italiano, concluiu que “o anencéfalo é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade. A supressão de um ser vivente não é justificável mesmo quando proposta para salvar outros seres humanos de uma morte certa” (ob. cit., p. 26 e www.providaanapolis.org.br/quemeoan.htm).
Em segundo, a Lei dos Transplantes (Lei n° 9.434/97), permite a retirada de órgãos apenas no caso de morte encefálica (art. 3o, caput, § 1o e 3o, e art. 13), não cogitando de morte cerebral, ou seja, a parada apenas do cérebro. Assim, o transplante só será possível no caso de paralização de todo o encéfalo, isto é, cérebro, cerebelo e tronco encefálico.
Quem obedecer a Resolução do CFM – que na opinião de DERNIVAL DA SILVA BRANDÃO, é uma “excrescência” (“Aborto: O Direito do Nascituro à Vida”, Ed. Agir) – está, pura e simplesmente, incorrendo em conduta tipificada na Lei dos Transplantes, com penalidade superior ao homicídio simples do Código Penal:
“Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei:
[…]
§ 4o. Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte:
Pena: reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa”
Por outro lado, não há qualquer informação médica nos autos que diga, concretamente, que a recorrente esteja sofrendo perigo de vida, ou que a gestação esteja fugindo completamente da normalidade, causando problemas de saúde. O Relatório de Ultra-sonografia Obstrétrica (fl. 12) e o Parecer Médico do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal de Santa Maria (fl. 19) não apontam a situação física real da paciente e eventuais seqüelas que pudesse estar sofrendo, a indicar a solução drástica encontrada a que chegou o juízo.
Gravidez não é doença. Toda gravidez envolve riscos, que hoje em dia são minimizados e tratados pela Medicina com grande eficiência.
Ao meu sentir, tudo indica que se buscou de modo imediato o abortamento, sem que fossem apresentadas à paciente outras perspectivas de ação. Tudo foi pragmaticamente tratado: por os médicos considerarem que não haveria “desenvolvimento adequado do cérebro fetal”, afirmaram tratar-se a interrupção da gravidez um “direito” da paciente.
Ora, se consideram o aborto efetivamente um direito da mãe, por que não o fazem, ante o art. 128, I, do Código Penal?
Conforme o relato da Dra. MARIA REGINA FAY DE AZAMBUJA que consta no artigo “O Aborto sob a Perspectiva da Bioética”, o Comitê de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, na dúvida como se teria de agir com uma paciente portadora de feto anencefálico, acabou deixando a decisão para o médico assistente da gestante, que “baseado no seu sentimento do que representava os melhores interesses da paciente, decide interromper a gravidez” (REVISTA DOS TRIBUNAIS, 807/482).
De outra banda, a decisão do Magistrado levou em conta que seria “absolutamente indigno com a pessoa humana exigir que a gestante leve adiante uma gravidez cujo resultado, segundo o parecer dos especialistas técnicos no assunto, já é certo: a impossibilidade de vida extra-uterina do feto”.
Diante dessa maquiavélica afirmação, vem a calhar a pergunta da colega Procuradora de Justiça MARIA REGINA FAY DE AZAMBUJA: “o aborto, nesses casos, visa a impedir que as crianças entrem numa vida não-humana ou busca evitar a pesada carga de sacrifício para a família e a sociedade? A presença de uma malformação diminui a essência ontológica do nascituro?” (REVISTA DOS TRIBUNAIS, 807/480).
Na verdade, a partir do conhecimento da situação, a parturiente passa a ser acossada pelos profissionais da área da saúde para que faça o aborto, pois o feto não é um ser humano e não é conveniente, pelo tempo perdido e pelo dinheiro investido, insistir com uma gravidez que não trará uma criança saudável. A insistência é tal, que qualquer outra solução parece odiosa e cruel, ainda mais que há o respaldo pseudo-científico de algumas associações médicas, a considerarem que “o defeito genético e a malformação do feto justificam o aborto”.
O aborto eugênico, visando evitar o nascimento da criança defeituosa, passa a ser a opção mais fácil, rápida e indolor. É não querer ver, é tapar os olhos com as mãos, como se tudo aquilo não passasse de um sonho ruim, de uma fantasia, que a criança gerada não está gravemente doente e que ela nem precisa de amor.
Sobre isso, o já citado EUGENE F. DIAMOND, Professor de Pediatria da Loyola University Stritch School of Medicine, comenta o seguinte: “O reconhecimento da anencefalia ‘in utero’, ou na enfermaria após o nascimento, é inquestionavelmente traumático para os pais. Embora o período de tempo entre o reconhecimento e a morte da criança seja geralmente breve quando a diagnose é feita pós-parto, a necessidade de apoio e aconselhamento é muito mais prolongada. Embora as estratégias convencionais envolvam manter o bebê anencéfalo separado dos pais, há uma séria questão quanto aos benefícios derivados de uma estratégia de negação. A experiência com fornecimento de apoio aos pais das crianças com defeitos graves, tende geralmente a indicar que há efeitos salutares de os pais afirmarem seu parentesco com a criança, dando um nome ao bebê, e abraçando-o antes da morte. O processo de luto quando assumido, ao invés de suprimido, pode ser uma parte integral da aceitação e cura definitivas” (ibidem).
O trauma psicológico decorrente do aborto premeditado, segundo estudo da Universidade Oslo, pode durar 5 anos (Revista Acadêmica On line BMC, em 13/12/05).
A doutrina nacional também converge neste ponto. A Dra. MARIA JOSÉ MIRANDA PEREIRA, Promotora de Justiça do Distrito Federal, (in “ABORTO”, Revista Jurídica Consulex, Ano VIII, n° 176, 15 de maio/2004, pág. 37), explicou: “A má formação fetal não acarreta qualquer risco à gestante além daqueles inerentes a outras gestações em que a criança é sadia, conforme resposta oficial do Conselho Federal de Medicina a um questionamento do Ministério Público. Confirma a Associação Nacional dos Ginecologistas/Obstetras que o defeito físico do feto NÃO implica por si só risco para a gestante. Vejam explicações inquestionáveis dos médicos João Evangelista dos Santos Alves e Dernival da Silva Brandão, autores do Livro Aborto: o Direito à Vida (Rio de Janeiro, Agir, 1982), laureado pela Academia Nacional de Medicina”. Mais adiante, acentuou: “Também é falso que a mãe sentirá repugnância pelo filho deficiente, ao nascer. É próprio do amor materno compadecer-se daquele que está desfigurado pela doença e ameaçado de morte iminente. Ao contrário, se a gestante, pressionada por outros que lhe dizem que seu filho é uma ‘coisa’ ou um ‘monstro’, acaba consentindo no aborto, carregará pelo resto da vida o terrível quadro clínico conhecido como síndrome pós-aborto, que inclui: depressão, medo, choro, remorso, tendência ao suicídio, noutras palavras, aniquilação da psique da mulher”.
Ainda no tocante ao sofrimento vivido pela gestante, reproduzo a carta de Ana Lúcia dos Santos Alonso Guimarães, publicada no jornal “O Globo” de 09/07/04, justificando a sua decisão de levar a gravidez até o fim: “Lamentável o comentário do Ministro Marco Aurélio do STF, afirmando que a gestante convive com a triste realidade do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Fui mãe de uma criança com anencefalia e posso afirmar que durante nove meses de gestação convivi com um ser vivo, que se mexia, que reagia aos estímulos externos como qualquer criança no útero. Afirmo também que não existe dano à integridade moral e psicológica da mãe. O problema é que estamos vivendo numa sociedade hedonista e queremos extirpar tudo que nos cause o mínimo incômodo. Pensemos pois na decisão tomada, porque se estamos autorizando a morte dos que não conseguirão fazer história de vida, cedo ou tarde autorizaremos a antecipação do fim da vida dos que não conseguem se lembrar da sua história, como os portadores do mal de Alzheimer”…
Com efeito, o utilitarismo econômico parece estar cada vez mais contaminando as relações sociais, e já não se busca a convivência harmoniosa com o outro, mas sim espera-se resultados. O bebê cuja vida o Ministério Público busca proteger não está sendo tratado pelos advogados e pelo Julgador monocrático como um ser humano, mas como um produto, um objeto que se pode descartar sem pudores, diante de um “defeito de fabricação”…
Afora todos estes tópicos que não permitem atender o pleito de expedição de alvará, existe mais um que deve ser levado em conta.
A apelante já está com mais de 5 meses de gravidez (21 semanas), o que contra-indica qualquer intervenção médica para interrompê-la.
Cuida-se da hipótese denominada de aborto tardio (feto com mais de 5 meses), e que nos Estados Unidos, é expressamente vedada por recente lei.
De fato, no ponto de vista obstétrico, como ensina o Professor gaúcho FRANCISCO SILVEIRA BENFICA, o aborto só deve se dar “até vinte semanas de gestação”, porque depois desse tempo o feto poderá nascer com vida (“Medicina Legal Aplicada ao Direito”, Ed. Unisinos, p. 88). Tal concepção é unânime na doutrina médica (FERNANDO FREITAS, “Violência Sexual contra a Mulher – Aborto previsto por Lei”, in MEDEIROS E ALBUQUERQUE, “Direito de Família e Interdisciplinaridade”, Curitiba, Juruá, 2001, p. 176).
Qualquer intervenção depois desse tempo, já se caracteriza como parto prematuro, com a possibilidade do feto nascer respirando, com vida portanto, mesmo que o seu prognóstico, especialmente no caso vertente, seja de falecimento em horas, dias ou poucos meses.
Outrossim, cabe ressaltar que o STJ, a quem compete unificar o direito nacional, não autoriza o aborto na hipótese do nascituro ter anencefalia. A ementa oficial, muito elucidativa, na parte que interessa, teve a seguinte redação:
“HABEAS CORPUS. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.
1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.
2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.
3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal.
4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.
5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental” (HC n° 32.159-RJ, 5a T, Relatora Ministra LAURITA VAZ, DJU de 22/03/04, p. 339).
No âmbito estadual, em recente decisão, esta Colenda Câmara denegou habeas em se que buscava a autorização para a interrupção de uma gravidez, com a seguinte ementa:
“HABEAS CORPUS. ANENCEFALIA. ANTECIPAÇÃO DE PARTO. ABORTO. Pedido indeferido em primeiro grau. Admissão do ‘habeas corpus’ em função de precedente do STJ. Ausência de previsão legal. Risco de vida para a gestante não demonstrado. Eventual abalo psicológico não se constitui em excludente da criminalidade. ORDEM DENEGADA. POR MAIORIA” (Habeas Corpus Nº 70020596730, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. IVAN LEOMAR BRUXEL, julgado em 25/07/2007).
Do brilhante voto condutor, algumas considerações do eminente Relator, Des. IVAN LEOMAR BRUXEL:
” (…) Ainda que a vida seja curta, e mesmo que seja desprovida de ciência das coisas que possam acontecer, pela ausência de pensamento ou comando sobre as funções vitais do organismo, ainda assim esta vida deficiente e breve merece a proteção legal.
Ou será que chegaremos ao ponto em que a ciência e a tecnologia terão condições de detectar até que ponto um feto terá o desenvolvimento mental pleno, parcial ou nenhum, e neste caso também será possível a simples eliminação antecipada, para evitar o sofrimento futuro?
(…)
A evolução tecnológica, as novas técnicas, permitem ver o que há algum tempo não era possível perceber, e a natureza já não corre solta, seja para a concepção, seja para terminar com a vida. De um lado, estudos e estudos para prolongar a vida. Mas, por paradoxal que seja, também estudos que recomendam dizer não à vida, evitando o nascimento.
(…)
E tanto analisado, evidentemente sem qualquer pretensão de ser dono da verdade, concluo que é autorizada a manutenção mecânica da vida, para extração de órgãos destinados a transplantes, mas ainda não é autorizada a antecipação de parto, para antecipar a morte.
Portanto, a pretensão não encontra amparo no sistema do Código Penal, pois a ausência de punição encontra expressa previsão, e não pode ser ampliada. Não está demonstrado o risco concreto para a gestante”.
Por fim, não posso deixar de mencionar a história de MARCELA DE JESUS FERREIRA, criança brasileira, nascida no dia 20/11/2006 em Patrocínio Paulista-SP , que na data de hoje completa 345 dias de uma abençoada vida. (Anexo ao parecer notícias colhidas na internet, de mês a mês, que contam um pouco da história desta brasileira que come, respira, chora, emite sons e gosta de ficar sentada, e que tal qual a criança no ventre de S. D. V., foi desacreditada pelos médicos, que friamente sugeriram a interrupção de gravidez à sua mãe).
Será que a morte assim tão certa de um anencéfalo é tão certa assim? Não podemos esquecer que as ciências médicas vêm evoluindo e derrubando mitos que se apresentavam como verdades inerradáveis, ao longo da história.
Ao meu sentir, os já insólidos argumentos dos causídicos que representam a apelada e do Magistrado caem por terra, bem diante dos pezinhos de Marcela.
Pode a decisão ser mantida e podem meus argumentos esvoaçarem-se, mas ninguém poderá convencer Cacilda Galante Ferreira, também mãe de outras duas meninas, de 14 e 18 anos, que sua pequena filha Marcela não é humana, não vive, não merece ter o mais simples e fundamental direito de respirar. Destaco a foto de Marcela nos colos de sua mãe e sua irmã, extraída do site www.providaanapolis.org.br.
Como pode o Poder Judiciário autorizar a morte do mais indefeso ser humano?…
Em suma, a pretensão contraria a Carta da República e a legislação infraconstitucional.
3. PELO EXPOSTO, opino pelo improvimento do recurso.
Porto Alegre, 1º de novembro de 2007
SÉRGIO GUIMARÃES BRITTO
Procurad