O RECÉM-NASCIDO ANENCÉFALO E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

SOCIEDADE E INSTITUIÇÕES

O RECÉM-NASCIDO ANENCÉFALO E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

COMITÊ NACIONAL PARA A BIOÉTICA

TEXTO APROVADO PELO C.N.B. em 21 de junho de 1996

PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DOS MINISTROS

DEPARTAMENTO PARA A INFORMAÇÃO E PUBLICAÇÃO

SUMÁRIO

Apresentação

Premissa

Aspectos Biomédicos da Anencefalia

Problemas correlatos ao recém-nascido anencéfalo e à doação de órgãos

Considerações Éticas

Bibliografia

APRESENTAÇÃO

Embora muito sensível e dividida sobre questões bioéticas, por sinal objetivamente cruciais, como a fecundação assistida, a eutanásia, o estatuto do embrião humano, a opinião pública tem com certeza bem poucas dúvidas no que se refere à liceidade ética da doação de órgãos e de maneira mais geral dos transplantes: prática essa que provavelmente suscita ainda (e pour cause) sentimentos complexos caracterizados por uma estreitíssima alternância entre admiração e temor, mas que mesmo assim parece já ter entrado numa lógica de rotina, de altíssimo nível.Mas com relação aos transplantes, as questões bioéticas continuam a apresentar-se, embora em formas a não envolver (ou a não envolver mais) a atenção neurótica dos meios de comunicação de massa: caso limitado, mas exemplar, justamente aquele da doação de órgãos na infância a partir de bebê anencéfalo. Mesmo assim o Comitê Nacional para a Bioética, profundamente convicto que seja sua função levar muito a sério e dar pronta resposta aos questionamentos bioéticos que emergem da opinião pública, mesmo quando objetivamente superdimensionados, não por isto considera irrelevante tomar posição sobre questões que muitos considerariam marginais, seja por sua eventual sofisticação teórica, seja por sua limitada incidência estatística. Um caso típico é o dos recém-nascidos nos quais se manifestem formas de anencefalia: Patologia esta da qual geralmente se tem conhecimento entre um restrito número de pessoas, especialistas em sua maioria.Mesmo assim o problema bioético das crianças anencéfalas é de grande relevo e deve ser considerado sob diversos aspectos. Além de estimular sérias reflexões sobre a dignidade de pessoa que de qualquer forma a tais crianças deve ser reconhecida, este problema põe em discussão temáticas relativas à oportunidade de sua reanimação, à determinação do momento de sua morte e principalmente à liceidade de fazer uso de seu corpo como fonte de órgãos a serem transplantados. Mas os questionamentos não se limitam a estes. Não esqueçamos, por exemplo, o significado que pode ter um diagnóstico pré-natal de anencefalia do feto para seus pais. Tais problemáticas já chamaram a atenção do CNB durante a elaboração de alguns de seus mais importantes documentos a partir do primeiro, Definição e Constatação da Morte no Homem (aprovado a 15 de fevereiro de 1991); Além deste documento limito-me a lembrar Diagnósticos Pré-Natais (18 de Julho de 1992), Transplante de Órgãos na Infância (21 de Janeiro de 1994), Bioética com a Infância (22 de Janeiro de 1994), até o mais recente, Vir ao Mundo (15 de Dezembro de 1995).O fato do tema da Anencefalia ser continuamente recolocado mesmo de maneira transversal, convenceu afinal os membros do Comitê a organizar, sobre este tema, um grupo específico de trabalho, para a direção do qual foi designado o professor Conrado Manni, para que fosse elaborado um texto sintético mas exaustivo, que pudesse servir como orientação sobre o Estatuto Bioético a ser reconhecido aos bebês anencéfalos, particularmente no que diz respeito à possibilidade de utilizá-los como doadores de órgãos. O grupo do qual participaram os colegas Barni, Benciolini, Coghi, Danesino, Gaddini, Leocata, Loreti Beghè, Sgreccia e Romanini, levou rapidamente ao final os seus trabalhos que foram examinados, discutidos e mais de uma vez ulteriormente discutidos pelo Comitê, reunido em sessão plena. Para elaboração do documento colaboraram também o Prof. Rodolfo Proietti e o Dr. Lorenzo Martinelli do Instituto de Anestesiologia e Reanimação da Universidade Católica do Sagrado Coração de Roma e o Prof. Píer Paolo Mastroiacovo do Instituto de Clinica |Pediátrica da mesma universidade. No dia 21 de Junho de 1996, se deu afinal a aprovação unânime do documento.

No momento de entregá-lo à imprensa, sinto o dever de expressar um agradecimento e formular um desejo. Um agradecimento para aqueles que colaboraram na redação deste documento principalmente para Conrado Manni, sem cuja decisiva contribuição científica e bioética, este documento nunca viria à luz; e o desejo de que este texto seja lido, meditado e amplamente discutido como ele merece.

Roma, 21 de junho de 1996.

O Presidente

Francesco D’ Agostino

PREMISSA

O problema do recém-nascido anencéfalo assumiu nestes últimos anos uma importância cada vez maior sob vários aspectos: médico, técnico, jurídico mas principalmente ético.

Em 1967 foi relatado o primeiro caso de transplante de doador anencéfalo, mas a relação científica não enfrentou de maneira alguma as numerosas questões que tal procedimento levantava, limitando-se a descrever os aspectos técnicos e observando que “os recém-nascidos anencéfalos eram uma escolha razoável como doadores para os transplantes infantis” (1). Hoje em dia o verbete “anencephaly” do Index Medicus, traz dezenas de referências, com notável aumento a partir de 1984; muitas delas analisam também a temática ética que este campo da medicina suscita (2).

Isto significa que, junto com o aumentado interesse científico relativo aos transplantes, suscitado pelo feto anencéfalo, cresceu também uma reflexão ética bastante extensa, reflexão esta que estava faltando no momento em que o problema se apresentou. Um primeiro conjunto de problemas se refere ao tratamento médico do anencéfalo após o nascimento: este aspecto se tornou mais evidente com a disponibilidade cada vez maior de meios de terapia intensiva e com os questionamentos que tal disponibilidade suscita neste caso particular.

Um segundo conjunto de problemas, bem mais amplo e controvertido, compreende os aspectos relativos ao possível uso dos fetos anencéfalos, como doadores de órgãos para transplantes: este aspecto adquiriu grande importância devido aos progressos das técnicas dos transplantes nestes últimos anos; progressos que tornaram possíveis os transplantes também em idade neonatal e tornaram mais aguda a escassez de órgãos para esta específica faixa etária.

As causas de morte cerebral são, por outro lado, bastante raras em idade infantil e a disponibilidade de doadores é limitada aos casos de morte por asfixia perinatal, aos casos de morte súbita neonatal (sudden infant death syndrome) acidentes ou maus tratos (child abuse) (2).

Antes, porém, de adentrar-se nas problemáticas éticas do recém-nascido anencéfalo faz-se necessário um aprimoramento da terminologia: alguns autores têm contestado como errada a simples denominação de anencéfalo, pois ela levaria a considerar esses sujeitos como seres despersonalizados. Analogamente, é impróprio defini-los como doadores de órgãos, porquanto, na idade neonatal e infantil, não se pode falar em doação, ação que supõe capacidade de entender e querer livremente (3). Mesmo aceitando tais observações, os termos em questão serão aqui indiferentemente usados, por motivos de praticidade.

Serão considerados, num primeiro momento, os aspectos biológicos fundamentais, com as margens de incerteza que ainda subsistem, e, num segundo momento, os aspectos antropológicos e éticos relativos à problemática do recém-nascido com má-formação anencefálica.

ASPECTOS BIOMÉDICOS DA ANENCEFALIA

Definição: Literalmente, anencefalia significa ausência do encéfalo. Na realidade, define-se com este termo uma má-formação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, na qual se verifica “ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de má-formação e destruição dos esboços do cérebro exposto” (4) Verifica-se portanto ausência dos hemisférios cerebrais e dos tecidos cranianos que os encerram com presença do tronco encefálico e de porções variáveis do diencéfalo. A ausência dos hemisférios e do cerebelo pode ser variável, como variável pode ser o defeito da calota craniana. A superfície nervosa é coberta por um tecido esponjoso, constituído de tecido exposto degenerado.

Este é o quadro de referência geral da má-formação anencefálica; não se deve, todavia, pensar que esta malformação seja rigorosamente definível. O autor de um texto qualificado sobre anencefalia, estranha, com razão, a variedade de denominações e de classificações que existem na literatura sobre o assunto (4).

A dificuldade de classificação baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma malformação do tipo tudo ou nada, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de uma malformação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível (5).

Algumas más-formações do sistema nervoso central são próximas da anencefalia por alguns aspectos, mas não podem ser confundidas com ela. Entre elas lembramos:

– A síndrome da banda amniótica (na qual a anencefalia pode associar-se a amputações, mas raramente a malformações de órgãos internos);

– A iniencefalia, na qual temos malformações graves da coluna cervical e malformações múltiplas;

– A encefalocele, um defeito do tubo neural no qual uma parte do encéfalo, mais ou menos gravemente mal formado, forma uma hérnia a partir de um defeito de fechamento do crânio (6).

Junto com tais malformações deve ser lembrada também a hidrocefalia, cujas formas mais graves podem ter significado funcional análogo ao da anencefalia (7); por este motivo, também esta má-formação é freqüentemente citada no debate sobre o feto anencéfalo (8).

Malformações associadas: são numerosas as malformações associadas a esta patologia:

– graves e freqüentes as malformações de órgãos cranianos, como olho, ouvido e hipófise.

– menos freqüentes as malformações do aparelho cardiocirculatório (2,8%) em comparação a 0,4% da população em geral e do aparelho genito-urinário (de 4 a 26%) (9,36) em comparação a 8,4% da população em geral.Tal incidência, embora deva ser levada em consideração e ela seja, até ao momento presente, de avaliação não definitiva, fez com que se concluísse que rins, fígado e coração, mesmo geralmente de dimensões mais reduzidas em relação ao peso corpóreo e acometidos por uma percentagem maior de más-formações, são, na maioria dos fetos anencéfalos nascidos vivos, aptos pelo menos no começo a serem transplantados (10,91,36).

Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico Italiano Más-formações Congênitas) em 55 autópsias realizadas em recém-nascidos anencéfalos, 20 recém-nascidos apresentavam uma malformação associada, e entre eles 7 apresentavam uma cardiopatia. O peso médio era de 1.982 g para recém-nascidos sem malformações, 1670 para recém-nascidos com malformações extracardíacas e 1355 g para recém-nascidos com cardiopatia.

Etiologia: não é conhecida, mas pensa-se numa origem multifatorial na qual fatores genéticos e ambientais desenvolvam um papel proeminente; Não se trata de uma má-formação comum nas infecções virais e na patologia cromossômica. Prevalência: A prevalência da anencefalia, embora variável devido aos critérios de diagnósticos e às medidas de “screening” pré-natal, é da ordem de grandeza de 0,3-1 por mil nascidos (11,12,13), considerando seja os nascidos mortos como os nascidos vivos. Este dado apresenta uma diminuição de cerca de 5% por ano e de 2,7% dos anencéfalos nascidos vivos. Pode-se prever, como conseqüência dos sempre mais amplos planos de “screening” pré-natal, que a prevalência dos defeitos do tubo neural ao nascimento será cada vez mais reduzida.

Segundo os dados do IPIMC (Inquérito Policêntrico Italiano de Más-formações Congênitas) que se referem a 1.793.000 nascidos, observados no período de 1978-1994 em cerca de 100 hospitais italianos, verificaram-se 185 casos de recém-nascidos anencéfalos dos quais 120 nascidos vivos (68 falecidos dentro das 24 horas) e 65 nascidos mortos.

Nos últimos 5-6 anos a prevalência da anencefalia é de cerca de 0,5-1 por 10.000 nascidos.Reportando esses dados ao total dos nascimentos na Itália (cerca de 520.000 por ano) pode-se prever o nascimento anual de 25 a 50 recém-nascidos anencéfalos.

Diagnóstico: o diagnóstico pré-natal é possível graças ao “screening” da alfa fetoproteína materna e a ultra-sonografia.Os dois métodos associados demonstraram sobre “screening” de larga escala, uma sensibilidade entre 80 a 100% (14,15,16,17). De notar que muitas legislações permitem a interrupção da gravidez na presença de malformações graves do feto. Uma recente pesquisa revelou que no caso da anencefalia a interrupção voluntária da gravidez acontece em cerca de 80% dos casos (96).

O diagnóstico é feito muitas vezes antes da vigésima semana de gestação (18).

Aspectos funcionais: O feto anencéfalo é gravemente deficiente no plano neurológico. Faltam as funções que dependem do córtex. Faltam, portanto não somente os fenômenos da vida psíquica, mas também a sensibilidade (19,20), a mobilidade (21), a integração de quase todas as funções corpóreas (22). Geralmente é mantido um controle mais ou menos eficaz da função respiratória e circulatória, funções que dependem das estruturas localizadas no tronco encefálico.

Sobrevivência: com os atuais tratamentos a sobrevivência do anencéfalo é muito reduzida. São relatadas percentagens de nascidos vivos entre 40 – 60% (23-24) enquanto depois do nascimento somente 8% sobrevive mais de uma semana e 1% entre 1 e 3 meses (26 e 26). Foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses (8) e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer à respiração mecânica (97).

O registro da British Columbia no período 1952-1981 registrou 450 anencéfalos, dos quais 60% nascidos mortos e 40% nascidos vivos. Dos 180 nascidos vivos, 58% não sobreviveram além das 24 horas. A mortalidade até 72 horas foi de 86% e de 98% até uma semana (25).

Apesar de uma expectativa de vida tão reduzida não é sempre possível definir a iminência do óbito (27) e a duração da vida pode ser influenciada em muito pelos tratamentos intensivos.

Somente em pequena parte se assiste a uma progressiva degeneração do tecido nervoso, visto que a lesão aparece geralmente estabilizada no momento do nascimento. Um risco elevado se dá no momento do parto, devido ao trauma que o tecido nervoso resíduo sofre não sendo protegido pelas estruturas ósseas. Sucessivamente a morte ocorre principalmente por insuficiência respiratória causada pela insuficiência das estruturas nervosas de controle ou pela displasia pulmonar e em pequena parte por anomalias múltiplas de tipo endócrino (hipófise, supra-renais) (4,28,29).

Recentemente, surgiu nos EUA um caso médico-legal (conhecido como o caso do Bebê K) conseqüente ao nascimento com parto cesariano de uma recém-nascida anencéfala cuja condição era conhecida desde a vida intra-uterina. A mãe se opôs à interrupção da ventilação mecânica que fora instituída depois do nascimento.A Corte Distrital sentenciou, baseada no “Emergency Treatment Act” que o tratamento respiratório com ventilador não era nem “inútil”, nem “desumano”, e portanto conforme a lei americana. A pretensão do hospital em recusar este tipo de tratamento não era portanto legítima, porquanto a legislação americana não prevê algum tipo de exceção com relação ao tratamento de pacientes com anencefalia (98).

De qualquer forma, mesmo com dados de sobrevivência variáveis, também na dependência do grau de tratamento intensivo, e da época da coleta das casuísticas, a anencefalia é uma condição letal e normalmente nenhum recém-nascido sobrevive além dos três dias (6).

PROBLEMAS CORRELATOS AO RECÉM-NASCIDO ANENCÉFALO E À DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

O CNB em outro documento já enfrentou os complexos problemas bioéticos que surgem com relação aos transplantes infantis (cf. Trapianti di Organi nell’ infanzia, aprovado aos 21 de janeiro de 1994). Já foi levantado que a necessidade de pequenos órgãos para fins de transplante é muito superior à oferta. A maior parte dos pacientes na lista de espera de transplante morre antes que seja encontrado um doador (30). Os órgãos em idade infantil são necessários para os transplantes em pequenos pacientes (síndrome da parte esquerda do coração hipoplásico, atresia biliar), e eles são de grande interesse também pelas características de sobrevivência e de possibilidade de crescimento de seu potencial funcional.

Avanços promissores se apresentam, também, para o uso destes pequenos órgãos em sede heterotópica, com função auxiliar e não substitutiva, permanente ou transitória (30).

Para o futuro levanta-se a hipótese de se usar linhas celulares no lugar de órgãos completos para tratamento de neoplasias do sistema hematopoético, de déficit enzimáticos, imunológicos e endócrinos.

Não obstante os múltiplos aspectos e resultados encorajadores, o tema dos transplantes infantis é ainda objeto de discussão crítica, seja por suas indicações, seja por suas técnicas e resultados, independentemente portanto dos aspectos éticos (27,31,32,33). Nesta avaliação se deve também levar em conta que se trata de uma cirurgia de elevadíssimo nível técnico organizativo que muito dificilmente estará à disposição de um número elevado de pacientes.(Para uma revisão da matéria da retirada de órgãos de doador anencéfalo, veja (34) ).

Bastante controvertido é o papel que a eventual disponibilidade de órgãos de fetos anencéfalos poderia assumir para satisfazer as exigências de pequenos pacientes que necessitem de transplantes.

Mesmo partindo de considerações numéricas análogas autores diferentes chegam a conclusões completamente opostas sobre o número de fetos disponíveis teoricamente nos EUA a cada ano: de 1800 fetos vivos (35) a 400 disponíveis para o transplante até a poucas unidades de transplantes realmente viáveis (27,89). A diferença de avaliação baseia-se sobre a diferente consideração do número dos prematuros, das malformações associadas, das dificuldades para se encontrar um receptor adequado, da sobrevivência a longo prazo e de muitos outros fatores. Para uma extensa análise desses dados veja (8).

Mesmo que essa controvérsia não seja de particular relevância ética, todavia, é importante observar como a potencialidade do uso de fetos anencéfalos tenha sido avaliada de maneiras muito diferentes: de único recurso para uma situação de grande necessidade de órgãos à medida de efeito não relevante sobre o problema das graves malformações infantis, em grau de resolver somente pouquíssimas situações particulares.

O problema do tratamento do recém-nascido anencéfalo

Prescindindo da possibilidade de utilizar os órgãos de recém-nascidos anencéfalos para fins de transplante, o problema médico fundamental é aquele de estabelecer qual tratamento deve ser aplicado depois do nascimento, uma vez estabelecido o diagnóstico e confirmado que não existe a possibilidade de sobrevivência a longo prazo.

A disponibilidade de recursos de terapia intensiva para sustentar as funções vitais levanta a pergunta se tais recursos devam ser utilizados. Geralmente existe concordância que nesses casos devem ser usados somente os meios ordinários de tratamento, levando em consideração que nenhum tratamento, por mais agressivo que seja, hoje em dia, pode modificar o decurso da doença que é sempre fatal e que tem como causa justamente a ausência daquelas estruturas que o tratamento intensivo deveria momentaneamente substituir (37,38, 39). Tais estruturas não têm nenhuma possibilidade de recuperação e estaríamos, portanto, num caso de insistência terapêutica sem nenhuma finalidade e possibilidade benéfica e, portanto sem razão de ser.

O sujeito anencéfalo e a possibilidade da doação de órgãos

Enfrentando, ao invés, os problemas relativos ao anencéfalo como possível doador, podemos evidenciar numerosas questões e três diferentes posições conceituais, no que diz respeito ao recém-nascido anencéfalo.

Ponto de partida comum é que a técnica dos transplantes pode aliviar os sofrimentos e permitir a sobrevivência de um grande número de doentes e que todo esforço deve ser envidado para prover a necessidade de órgãos. As diferenças de posições evidenciam-se no momento de estabelecer os limites éticos pelos quais este esforço deve ser delimitado. Uma primeira consideração é que a retirada dos órgãos complexos (fígado, rim e principalmente o coração), deva ser realizada em condições de relativa compensação hemodinâmica, ou seja, num momento em que o coração ainda pulsa de maneira válida e em grau de assegurar aos órgãos interessados uma perfusão suficiente.

Em outras palavras, esperar a morte do anencéfalo segundo os critérios cardiorrespiratórios e só depois dela retirar os órgãos não é compatível com a preservação das funções destes mesmos órgãos, que já não seriam mais aptos para serem transplantados. É problema análogo ao apresentado pelo doador adulto, para o qual foi aprofundado o problema da morte cerebral. Em vários países, ocorreu uma diferente tradução legislativa mesmo se em geral quase todas as legislações respeitam o princípio da necessidade da completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo. A verificação deste estado é realizada de maneiras diferentes, mesmo se com a única finalidade de demonstrar a presença da mesma condição.No caso do recém-nascido anencéfalo a demonstração da morte cerebral apresenta grandes dificuldades ligadas ao conhecimento ainda imperfeito da neurofisiologia neonatal em sentido geral e também à própria condição de malformação do sujeito (37).

O exame do EEG é impossível pela própria ausência anatômica das estruturas que dão origem aos potenciais elétricos (córtex). Além disto, a presença de ondas EEG no recém-nascido e na criança não exclui o diagnóstico de morte cerebral (40). A medição do fluxo cerebral, embora difícil, não é significativa por causa das graves más-formações vasculares cerebrais. Da mesma forma a demonstração de fluxo cerebral não exclui na infância o diagnóstico de morte cerebral (41).

Os reflexos do tronco são variáveis por causa das malformações a cargo de numerosos nervos cranianos.

O exame clínico que visa verificar o comprometimento do tronco encefálico é, portanto de duvidosa confiabilidade, seja pela dificuldade de evocar os reflexos do tronco, seja de interpretar as respostas obtidas. Junto com isto apareceu um aspecto ainda mais fundamental na fisiopatologia do sistema nervoso central em idade neonatal. Um forte debate está surgindo sobre as potencialidades do encéfalo em idade neonatal. Uma grande capacidade de adaptação, mesmo em condições patológicas graves, é reconhecida nos primeiros dias de vida, nos quais particularmente ativos e válidos parecem os fenômenos de neuroplasticidade (42,43). Ampla bibliografia em (8).

O encéfalo do recém-nascido parece hoje comparável cada vez menos a um cérebro adulto em miniatura, principalmente pelas funções da consciência e do contato com o ambiente, e cada vez mais comparável a um órgão em formação com potencialidades variáveis (8). A perda ou a falta de uma parte do cérebro durante a fase de desenvolvimento não é comparável à perda da mesma parte depois que o desenvolvimento tenha-se acabado completamente (8).

Essas considerações têm particular relevo na avaliação das capacidades do anencéfalo.

Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencéfalo, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência.Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento que o anencéfalo enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por definição, de ter consciência e provar sofrimentos (8,44).

Para superar as dificuldades legislativas atualmente presentes, evidenciaram-se três diferentes classificações do problema do anencéfalo:

a) Classificar à parte os sujeitos anencéfalos

A primeira posição põe em evidência o fato de que o anencéfalo tem a particularidade de não possuir o córtex cerebral, de não ser dotado das estruturas anatômicas próprias que presidem as funções superiores. Tais funções são consideradas, por alguns, características da humanidade e esta grave má-formação significaria para o anencéfalo um status particular (31); Não teria sentido, portanto, falar de “morte cerebral”, mas dever-se-ia falar de “ausência cerebral”. Ou seja, uma condição totalmente peculiar, segundo as intenções de quem a propõe, a qual deveria obter um reconhecimento legislativo apropriado.O anencéfalo não é, portanto, um sujeito “brain dead”, mas um caso particular de morte cerebral denominado “brain absence” (45, 46, 47, 90).

Um indivíduo nestas condições incapaz de pensamento e de sensibilidade não tem interesse algum a defender e, portanto não é titular de direitos e não precisa das tutelas aplicadas a qualquer outro sujeito (48).

Tal posição se presta a numerosas críticas, seja do ponto de vista médico como do ponto de vista moral.Ela é oriunda de um evidente intuito utilitarístico (3). Antes de mais nada vimos que a má-formação não é um fenômeno definido, mas um “continuum” de gravidade para o qual se deveria por limites convencionais. Isto criaria, com certeza, dificuldade de diagnóstico e possibilidade de erro (49, 52, 89), muito embora a possibilidade de erro não seja de per si um elemento suficiente para proibir uma determinada prática médica.

Uma segunda objeção diz respeito à possibilidade de sofrimento, que não pode ser excluída baseada nas considerações neurofisiológicas às quais acenamos e baseada nos atuais conhecimentos (44,53).

A objeção de fundo, todavia, é que esses sujeitos são utilizados sem que para eles advenha um bem, aliás, com possível prejuízo, tendo como finalidade um benefício para outrem. Eles não têm condição de expressar um consentimento de alguma maneira e sua condição não é diferente daquela de muitos outros doentes em graves condições.

A posição apresentada permitiria separar a condição de alguns sujeitos particulares com a finalidade de torná-los doadores de órgãos baseado na avaliação de sua qualidade de vida. Está ausente um equilíbrio entre vantagem para um sujeito e desvantagem para o mesmo e para os outros, só existe um desequilíbrio entre desvantagem para um indivíduo e vantagem para o outro (36).

Aceitar esta posição significaria, além do mais, criar uma área de incerteza para a qual poderiam entrar numerosas outras condições, entre elas o estado vegetativo permanente (46). Este argumento, ou seja, a criação de um “slippery slope”, um declive escorregadio capaz de levar muito mais além das intenções originárias, é salientado por numerosos autores (3,31,36,48,51). Existe, ao contrário, a necessidade de definir o fenômeno da morte, através de uma série de regras válidas em todos os casos, que não permitam exceções para condições patológicas particulares. Também para a aceitação da doação de órgãos por parte dos cidadãos, uma política de clareza e essencialidade das regras é considerada por muitos autores mais promissora (27).

A definição de morte deve permanecer distinta da necessidade do transplante, mesmo se as necessidades e possibilidades dos transplantes devem constituir um estímulo para o aprofundamento científico e clínico. A opinião pública deve ter a certeza de que a morte é verificada com critérios objetivos e não equívocos e que tais critérios não são modificados pela necessidade ou desnecessidade de encontrar órgãos para o transplante.

É este um direito fundamental de cada um, antes ainda de ser um fundamento para uma sábia política do transplante.

b) Rever o atual conceito de morte cerebral, introduzindo outros critérios de julgamento.

Uma segunda posição, mais radical e extensiva do que a anterior, é aquela que propõe o abandono do critério de morte de todo encéfalo, considerando suficiente a morte do córtex cerebral (54,55). Nesta definição de morte se dá, portanto a máxima importância para a ausência da autoconsciência e da possibilidade de relacionamento, típica do homem e menor importância às funções vegetativas, que não são consideradas características da humanidade (27, 35, 56, 57, 58, 60, 61).

Tratar-se-ia, portanto, de redefinir a morte cerebral trocando a necessidade da completa e definitiva suspensão das funções de todo o encéfalo com a suficiência da morte só do córtex cerebral e isto para todos os casos e não somente para o anencéfalo. Sobre este problema, na realidade, o Comitê Nacional para a Bioética já expressou o próprio parecer, sustentando que “não se pode aprovar esta opinião (ou seja, definição de morte cortical) porque permanecendo íntegros os centros do paleoencéfalo (tronco), permanecem ativas as capacidades de regulação (central) homeoestáticas do organismo e a capacidade de realizar de modo integrado as funções vitais incluindo a respiração autônoma”.

No caso particular do anencéfalo, a liceidade da retirada de órgãos é também justificada pela brevíssima expectativa de vida desses sujeitos (27).Segundo alguns autores, a inevitabilidade da piora das condições clínicas do sujeito anencéfalo e a iminência da morte justificaria a retirada dos órgãos ante-mortem (85,86).

Esta posição atribui grande importância a integração neurológica das várias funções de maneira que mesmo com a presença da respiração e da circulação, mas com a ausência de uma integração superior, o sujeito é considerado falecido (62).

Esta argumentação é sujeita a numerosas críticas e, neste caso, é muitíssimo válido o risco de estender o julgamento de morte a sujeitos que não tenham destruição anatômica mas a incapacidade funcional do córtex cerebral. Um problema imenso se abriria e deste problema o anencéfalo constituiria só uma pequena parte.

Arriscar-se-ia a autorização da retirada de órgãos de sujeitos viventes, baseada nas considerações relativas a sua integração neurológica e a sua expectativa de vida (pessoas próximas da morte) (27,89). Repare-se que, por absurdo, uma vez aceito o princípio de que é lícito interromper a vida de um indivíduo, mesmo se em particulares condições físicas, em prol de outrem, poderiam entrar nesta categoria numerosos sujeitos (pensemos nos condenados à pena capital), e, entre eles, até os mesmos sujeitos acometidos por doenças graves e na lista da espera de transplantes (89).

A primeira posição apresentada constitui, como é evidente, uma tentativa de tipo jurídico para aplicar somente ao anencéfalo o critério de morte cerebral como morte (ausência) somente do córtex e evitando enfrentar os problemas que a extensão desse critério a todos os sujeitos inevitavelmente causaria. A avaliação dos problemas relativos à declaração de morte na presença de atividade do tronco cerebral extrapola a finalidade deste documento. Somente uma observação: à avaliação científica da morte cortical (avaliação que mesmo pelo que diz respeito ao problema do anencéfalo fornece elementos inequívocos), deve ser associada também uma avaliação de tipo antropológico. A morte verificada somente pela falta de atividade do córtex cerebral, seja no adulto ou no recém-nascido anencéfalo, contradiz, pela presença da respiração espontânea e dos reflexos dos nervos cranianos, a própria idéia de morte como nos foi transmitida há milênios.

Estes sujeitos não estão mortos, apesar de uma lei poder declará-los mortos, e não parecem mortos para qualquer pessoa que se aproxime do seu leito (36). Houve, talvez por provocação, quem perguntasse aos adeptos desta tese, se eles estariam prontos para enterrar estes indivíduos, baseando-se no fato de que os consideravam mortos (63). Seria provavelmente impossível aceitar esta posição por parte da humanidade senão a custo de um ceticismo generalizado sobre a avaliação da morte e sobre a inviolabilidade do sujeito humano vivente, muito embora sem esperança de vida, mesmo com a finalidade de se obter vantagem para outro indivíduo (46,64).Alguns autores (65) falaram também de iatrogênese ét

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