A proposta
Em junho de 2004, o Pró-Vida de Anápolis enviou ao deputado Elimar Máximo Damasceno (PRONA/SP) uma sugestão de projeto de lei que dispusesse sobre a proteção integral à criança por nascer: o Estatuto do Nascituro [1].
A deformação da proposta
O deputado submeteu a proposta à Consultoria Legislativa da Câmara. Em setembro de 2004, a Consultoria emitiu um parecer no qual destruía o núcleo da proposta original. O nascituro – segundo a Consultoria – não deveria ser considerado pessoa, mas expectativa de pessoa. Além disso, ele não deveria ter direitos, mas “expectativa de direitos”. E quanto ao artigo 128 do Código Penal, que isenta de pena o aborto em duas hipóteses, ele deveria ser preservado por oferecer “maior proteção ao nascituro” (sic!).
Tendo sido informado do desastroso parecer da Consultoria, o Pró-Vida de Anápolis comunicou ao deputado Elimar que seria melhor manter a versão original.
A tragédia
No dia 01/11/2005 o deputado Osmânio Pereira (PTB/MG) apresentou o projeto, porém, não na versão original, mas naquela deformada pela Consultoria. O projeto, que recebeu o número PL 6150/2005, trazia o nome de “Estatuto do Nascituro”, mas na verdade o que fazia era negar ao nascituro seus direitos e sua personalidade, em oposição frontal ao Pacto de São José da Costa Rica.
Para alegria das crianças, o PL 6150/2050 foi arquivado em 31/01/2007 (fim da legislatura), sem que chegasse a ser apreciado.
Renovação da tragédia
Em 19/03/2007, os deputados Luiz Bassuma (PT/BA) e Miguel Martini (PHS/MG) reapresentaram a mesma proposta deformada, desta vez com o número PL 478/2007. Em 30/3/2007 o projeto foi recebido pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Em 4/6/2007 foi designada como relatora a deputada Solange Almeida (PMDB-RJ).
Uma tentativa de conserto
Em 26/11/2009, a relatora emitiu um parecer favorável ao projeto, mas na forma de um substitutivo. Segundo palavra da própria deputada, o texto foi de tal modo reduzido que perdeu sua “característica de Estatuto”. Os erros mais grosseiros foram corrigidos. Desta vez, afirmava-se que o nascituro tem direitos e não meras “expectativas de direito”. Não se negava mais que o nascituro fosse pessoa, mas tampouco se ousava afirmá-lo. O substitutivo quis deixar de lado a “discussão acerca do momento do início da personalidade jurídica” (sic), o que foi um grande empobrecimento.
Qualquer atentado aos direitos do nascituro seria “punido na forma da lei” (art. 5º). No entanto, a relatora excluiu toda a parte penal do projeto. Desapareceram então os crimes contra o nascituro, assim como o enquadramento do aborto entre os crimes hediondos.
Foram mantidos os direitos do nascituro concebido em decorrência de um estupro (art. 13): assistência pré-natal, acompanhamento psicológico da mãe, encaminhamento para a adoção (caso a mãe o deseje) e pensão alimentícia. Este último direito, porém, foi enfraquecido. Não se diz mais que a pensão será de 1 (um) salário mínimo, nem que ela será oferecida até que a criança complete 18 anos. Além disso, tal benefício só será dado à gestante se ela não dispuser de meios para cuidar da criança. Com todas essas restrições, a ajuda do Estado deixou de ser algo líquido e certo, como estava previsto na versão original.
O substitutivo é posto em pauta
Apesar de tão esvaziado e enfraquecido, o que restou do “Estatuto do Nascituro” foi alvo de veementes ataques dos abortistas. Na acalorada sessão de 19/05/2010 na CSSF, que durou mais de quatro horas, houve tentativa de derrubar a sessão e de adiar (ainda mais) a votação do projeto.
Surpreendente foi a atuação da deputada Fátima Pelaes (PMDB/AP), que declarou publicamente ter sido concebida em decorrência de um abuso sexual sofrido por sua mãe, que cumpria pena em um presídio e já tinha cinco filhas. A deputada, que nunca conheceu seu pai, confessou que outras vezes já defendera o direito ao aborto. “Mas eu precisava ser curada, ser trabalhada, porque eu estava com um trauma”, acrescentou. Naquela sessão, porém, ela estava decidida em votar em favor da vida: “Se nós lutamos pelo direito à vida, temos que lutar desde o nascituro”.
Uma nova deformação
À última hora, no dia 19/5/2010, a deputada fez uma “complementação de voto” a pedido do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP). No artigo 13, o nascituro concebido em decorrência de estupro teria os direitos acima, porém, “ressalvados o disposto no Art. 128 do Código Penal Brasileiro” (sic). Com esse triste enxerto, o artigo 13 passou a dizer que, apesar de o nascituro ter todos esses direitos, o médico que matá-lo será isento de pena.
A votação do substitutivo
“Aqueles que forem favoráveis ao projeto 478, permaneçam como se acham”, disse o presidente da Mesa deputado Manato (PDT/ES). Sete deputados levantaram-se contra o projeto:
ARLINDO CHINAGLIA (PT/SP)
DARCÍSIO PERONDI (PMDB/RS)
DR. ROSINHA (PT/PR)
HENRIQUE FONTANA (PT/RS)
JÔ MORAES (PCdoB/MG)
PEPE VARGAS (PT/RS)
RITA CAMATA (PSDB/ES)
“Aprovado!”, concluiu o presidente.
As reformas necessárias
A vitória do PL 478/2007 na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) foi apenas um primeiro passo de um longo trajeto que precisa de sérias correções. Eis as reformas mais importantes:
1º) O Estatuto do Nascituro deve explicitamente declarar que o nascituro é pessoa desde a concepção, em conformidade com o que diz o Pacto de São José da Costa Rica (art. 1º, n. 2 e art. 3º). Convém lembrar que o Supremo Tribunal Federal considerou, por maioria, que essa Convenção tem status supralegal, “estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna” (RE 349703/RS). Assim, já não tem aplicação a primeira parte do artigo 2º do Código Civil, que diz: “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. O Estatuto do Nascituro precisa corrigir esse erro, dizendo: “a personalidade civil do ser humano começa com a sua concepção”.
Não basta dizer que o nascituro tem direitos. Isso já diz o atual Código Civil em vários lugares (art. 2º parte final, art. 542, art. 1692, art. 1621, art. 1798 e art. 1799, I). Enquanto não for afirmado que o nascituro é pessoa, tais direitos serão interpretados como meras expectativas de direitos, como têm feito até agora tantos doutrinadores.
Note-se que a negação da personalidade do nascituro (art. 2º, CC, parte inicial) foi o argumento chave usado pelo ministro Carlos Ayres Britto, relator da ADI 3510 para defender a destruição de embriões humanos. Ele admitiu expressamente que, se o nascituro fosse pessoa, qualquer permissão para o aborto seria inconstitucional[2].
2º) O Estatuto do Nascituro deve alterar a redação do artigo 128 do Código Penal, que não pune o aborto em duas hipóteses. O aborto diretamente provocado deve ser sempre punido. A morte do nascituro só pode ser tolerada como efeito secundário de uma ação em si boa. Convinha usar a redação proposta pelos bispos do Brasil em agosto de 1998 à Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal do Ministério da Justiça:
Art. 128 – Não constitui crime um procedimento médico, não diretamente abortivo, tendente a salvar a vida da gestante, que tenha como efeito secundário e indesejado, embora previsível, a morte do nascituro.
Parágrafo único: A exclusão de ilicitude referida neste artigo não se aplica:
I – se a morte do nascituro foi diretamente provocada, ainda que tenham sido alegadas razões terapêuticas
II – se era possível salvar a vida da gestante por outros procedimentos que não tivessem como efeito secundário a morte do nascituro.
Note-se que, na proposta dos bispos, desaparecia o aborto como meio, admitindo-se a morte do nascituro apenas como efeito, desde que observadas diversas condições do princípio da ação com duplo efeito. Essa sugestão, que naquela época não foi acolhida pelo governo brasileiro, poderia agora ser inserida no Estatuto do Nascituro, como, aliás, previa a versão original do projeto.
3º) O Estatuto do Nascituro deve incluir o aborto entre os crimes hediondos. De fato, o homicídio qualificado já é crime hediondo (art. 1º, I, Lei 8072/1990). Ora, um dos elementos que torna o homicídio qualificado é o uso de “recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido” (art. 121, §2º, IV, CP). Ora, essa circunstância está sempre presente no aborto, uma vez que a criança é absolutamente indefesa. Não faz sentido discriminá-la simplesmente por ela estar situada dentro do organismo materno.
Outras reformas ainda podem ser feitas. Mas a primeiríssima delas, sem a qual as demais perdem a consistência, é reconhecer sem meias palavras que o nascituro é pessoa. A negação da personalidade do nascituro vem servindo nos EUA para sustentar a terrível sentença Roe versus Wade, com a qual a Suprema Corte em 1973 impôs a legalidade do aborto a todo o território estadunidense.
Anápolis, 17 de junho de 2010.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz