PARECER DO EX-MINISTRO DO STF DR. JOSÉ NERI DA SILVEIRA CONTRA A LIMINAR DO SUPREMO

CONSULTA

 

 

joseneriConsulta a União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro sobre a quaestio juris deduzida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, perante o Supremo Tribunal Federal, ação proposta com base em expressa invocação do art. 1º., caput, da Lei n° 9.882/1999, em que se indicam “como preceitos vulnerados o art. 1º., IV (a dignidade da pessoa humana), o art. 5º., II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade) e os arts. 6º., caput, e 196 (direito à saúde), todos da Constituição da República, e como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei n° 2848, de 7.12.40)”.

Restam explicitadas, em síntese, a argüição em referência e a súplica da autora, nestes termos introdutórios da inicial: “A violação dos preceitos fundamentais invocados decorre de uma específica aplicação que tem sido dada aos dispositivos do Código Penal referidos, por diversos juízes e tribunais: a que deles extrai a proibição de efetuar-se a antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de fetos anencefálicos, patologia que torna absolutamente inviável a vida extra-uterina. O pedido, que ao final será especificado de maneira analítica, é para que este Tribunal proceda à interpretação conforme a Constituição de tais normas, pronunciando a inconstitucionalidade da incidência das disposições do Código Penal na hipótese aqui descrita, reconhecendo-se à gestante portadora de feto anencefálico o direito subjetivo de submeter-se ao procedimento médico adequado”.

Ao fim da longa inicial, a CNTS, como “pedido principal”, requer que, procedendo o STF “à interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei n° 2848/40), declare inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado”. Como “pedido alternativo”, a suplicante requer que, se for entendido não caber a ADPF na espécie, “seja a presente recebida como ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que o que se pretende é a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, sem redução de texto, hipótese, portanto, em que não incidiria a jurisprudência consagrada dessa Corte relativamente à inadmissibilidade desse tipo de ação em relação a direito pré-constitucional”, acrescentando, no ponto, a autora: “46. De fato, a lógica dominante na Corte, reiterada na ADIN n° 2, é a de que lei anterior à Constituição e com ela incompatível estaria revogada. Conseqüentemente, não se deve admitir a ação direta de inconstitucionalidade cujo propósito é, em última análise, retirar a norma do sistema. Se a norma já não está em vigor, não haveria sentido em declarar sua inconstitucionalidade. Esse tipo de raciocínio, todavia, não é válido quando o pedido na ação direta é o de interpretação conforme a Constituição. É que, nesse caso, não se postula a retirada da norma do sistema jurídico nem se afirma que ela seja inconstitucional no seu relato abstrato. A norma permanece em vigor, com a interpretação que lhe venha a dar a Corte”.

Na descrição da hipótese, a inicial afirma: “Uma vez diagnosticada a anencefalia não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável. O mesmo, todavia, não ocorre com relação ao quadro clínico da gestante. A permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-útero desses fetos. De fato, a má-formação fetal em exame empresta à gravidez um caráter de risco, notadamente maior do que o inerente a uma gravidez normal. Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz, para o tratamento da paciente (a gestante), já que para reverter a inviabilidade do feto não há solução”.

A partir daí, a Confederação requerente sustenta que “a antecipação do parto em casos de gravidez de feto anencefálico não caracteriza aborto, tal como tipificado no Código Penal. O aborto é descrito pela doutrina especializada como “a interrupção da gravidez com a conseqüente morte do feto (produto da concepção). Vale dizer: a morte deve ser resultado direto dos meios abortivos, sendo imprescindível tanto a comprovação da relação causal como a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Não é o que ocorre na antecipação do parto de um feto anencefálico. Com efeito, a morte do feto nesses casos decorre da má-formação congênita, sendo certa e inevitável ainda que decorridos os 9 meses normais de gestação. Falta à hipótese o suporte fático exigido pelo tipo penal”. Noutro passo, a esse respeito, a autora assere: “38. (…). Vale dizer, não há potencial de vida a ser protegido, de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Com efeito, apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo do aborto. Assim, não há como se imprimir à antecipação do parto nesses casos qualquer repercussão jurídico-penal, de vez que somente a conduta que frustra o surgimento de uma pessoa ou que causa danos à integridade física ou à vida da gestante tipifica o crime de aborto”. Nessa mesma linha, está na inicial (item 26): “A hipótese é de não-subsunção da situação fática relevante aos dispositivos do Código Penal. A gestante portadora de feto anencefálico que opte pela antecipação terapêutica do parto está protegida por direitos constitucionais que imunizam a sua conduta da incidência da legislação ordinária repressiva”.

Na inicial da ADPF n° 54, a CNTS, diante da posição adotada quanto à situação do feto anencefálico, sustenta que, na espécie, “o foco da atenção há de voltar-se para o estado da gestante”, com a proteção de direitos fundamentais. Assim, no que concerne à vulneração da dignidade humana da mulher, in casu, observa, no item 30: “Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica”, vedada no art. 5º., III, da Constituição, definida, qual é, pela legislação infraconstitucional (Lei n° 9455/1997, art. 1º.), “a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental”. De outra parte, entende, ainda, a autora que a liberdade “consiste em ninguém ter de submeter-se a qualquer vontade que não a da lei”, não estando vedada no ordenamento jurídico a antecipação terapêutica do parto em hipóteses de gravidez de feto anencefálico, concluindo, a partir daí, verbis (item 33): “O fundamento das decisões judiciais que têm proibido sua realização (…) não é ordem jurídica vigente no Brasil, mas sim outro tipo de consideração. A restrição à liberdade de escolha e à autonomia da vontade da gestante, nesse caso, não se justifica, quer sob o aspecto do direito positivo, quer sob o princípio da ponderação de valores: como já referido, não há bem jurídico em conflito com os direitos aqui descritos.” No que concerne à saúde, a teor dos arts. 6º., caput, e 196 a 200, da Lei Magna, a requerente anota no item 35: “A antecipação do parto em hipótese de gravidez de feto anencefálico é o único procedimento médico cabível para abreviar o risco e a dor da gestante. Impedir a sua realização importa em indevida e injustificável restrição ao direito à saúde”, salientando tratar-se de faculdade da gestante “e não de um procedimento a que deva obrigatoriamente submeter-se”.

Na Consulta, firmada pelo ilustre presidente da União dos Juristas Católicos, Dr. Paulo Silveira Martins Leão Júnior, que veio instruída com cópia dos autos da ADPF n° 54 e de Memorial a ser apresentado aos Senhores Ministros do STF, pela entidade consulente e a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, com respectivos documentos anexos, expõe-se o seguinte:

“Pedimos um parecer de V. Exa. sobre a matéria, sendo que o Memorial em anexo já coloca diversos pontos de questionamento, quanto ao cabimento e ao mérito da ADPF. Aos mesmos cabe aduzir, a meu ver, a invasão de competência constitucional (i) do legislador constituinte originário, no que se refere às cláusulas pétreas protetoras da vida humana, que não podem ser modificadas nem mesmo pelo constituinte derivado (vide art. 60, § 4º., IV) em especial os art. 1º., III, art. 3º., IV e art. 5º., caput, todos da Constituição Federal, devendo ser ressaltado a propósito que para redação dos direitos fundamentais relativos à vida humana certamente contribuiu abaixo assinado subscrito por mais de dois milhões de cidadãos, contrários ao aborto, apresentado aos constituintes; (ii) do Congresso Nacional, quanto a sua competência para legislar sobre matéria penal, certo que há décadas se debate o aborto eugênico no país, o qual vem sendo seguidamente rejeitado pelo Legislativo, que inclusive no momento aprecia projetos de lei sobre a matéria (vide art. 22, I c./c. art. 59, III, CRFB); (iii) do Superior Tribunal de Justiça, de julgar em última instância causas relativas a lei federal (vide art. 105, III, “a” e “c”).

Deve ser enfatizado a propósito que a ADPF n° 54 foi ajuizada logo após o Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, Relatora a Ministra LAURITA VAZ, à unanimidade de votos, haver concedido a ordem no HABEAS CORPUS 32159, cassando autorização para aborto de feto anencéfalo (acórdão proferido em 17/02/2004 e transitado em julgado em 28/04/2004). Também no HC 32 757, Relator o Ministro Félix Fischer, fora concedida liminar para impedir o abortamento de outro feto anencéfalo. Havia decisões de 1º e 2º grau nos Estados da Federação a favor e contra autorização de aborto de feto anencéfalo, mas sempre sujeita a matéria a exame da prova, inclusive quanto ao alegado risco à saúde da gestante. Porém, somente após haver sido firmada a jurisprudência pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido contrário à autorização para aborto de feto anencéfalo, e pouco depois disso, é que foi ajuizada a referida ADPF nº 54.

Entendo que o pedido da ADPF nº 54 colide também com os princípios do contraditório, do devido processo legal e da ampla defesa, eis que autoriza a eliminação de uma vida humana sem qualquer análise do Judiciário e baseada tão somente em laudo médico, sabido por todos a quantas falhas e manipulações estão sujeitos tais laudos, de que são exemplos os escândalos envolvendo as verbas públicas do INSS. O “parecer” médico que acompanhou a inicial da ADPF nº 54 não está assinado, tende a induzir a erro o julgador, vez que apresenta como complicações prováveis da gravidez de feto anencéfalo, complicações mais ou menos comuns em qualquer gravidez e que não colocam em risco a vida ou a saúde da gestante, e àquele parece se contrapõem diversos outros pareceres médicos, de que são exemplos os que acompanham o Memorial anexo.”

Passo a examinar a espécie.

PARECER

1. Como consta da inicial, a Confederação autora pretende, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, que o STF proceda à interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei n° 2.848/1940), declarando inconstitucional, “com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em caso de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado”.

2. Põe-se, aqui, desde logo, a indagação: na argüição de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada com o objetivo de obter interpretação conforme a Constituição de normas infraconstitucionais, é admissível a criação de hipótese normativa nova no ordenamento jurídico positivo?

No julgamento da ADIN n° 581 – DF, a 20.8.1992, o Ministro Moreira Alves, acerca da interpretação conforme a Constituição, propôs, com o assentimento da Corte, a orientação que o STF vem seguindo, qual seja, admitida “como constitucional uma das interpretações possíveis da lei impugnada”, o Tribunal está, na realidade, “declarando a inconstitucionalidade das demais”, o que “tem a vantagem de chamar a atenção para a circunstância de que apenas se admite constitucional a interpretação que impede a procedência total da ação direta de inconstitucionalidade”, acrescentando: “Nesse sentido, aliás, conduz-se a Corte Constitucional alemã quando se utiliza da técnica da interpretação conforme a Constituição, declarando a parcial inconstitucionalidade da lei sem redução de seu texto” (RTJ, 144/154). Nesse mesmo julgamento, o Ministro Celso de Mello anotou (RTJ, 144/153-154): “O princípio da interpretação conforme a Constituição, que enseja a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, pressupõe, como requisito essencial de sua aplicação, a existência de “normas polissêmicas ou plurissignificativas” (J.J. Gomes Canotilho, “Direito Constitucional”, pág. 235, 5ª. ed., 1991, Almedina, Coimbra). A incidência desse postulado permite, desse modo, que, reconhecendo-se legitimidade constitucional a uma determinada proposta interpretativa, excluam-se as demais construções exegéticas propiciadas pelo conteúdo normativo do ato questionado. Em suma, o princípio da interpretação conforme a Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a partir de uma concreta incidência, a integridade do ato do Poder Público no sistema de direito positivo. Essa função conservadora da norma permite que se realize, sem redução de texto, o controle de sua constitucionalidade (…)”.

Também, ao pronunciar-se no RE n° 121.336 – CE, acerca do mesmo instituto, ainda registrou o Ministro Moreira Alves (RTJ, 139/635) que a interpretação conforme a Constituição “só se admite quando não altera a mens legis, certo como é que o Poder Judiciário, no exercício do controle da constitucionalidade da lei, só atua como legislador negativo, e não como legislador positivo, o que ocorreria se sua interpretação alterasse o sentido da lei. Como observa Schlaich (Das Bundesverfassungsgericht, pág. 188, München, 1985), com base nas decisões da Corte Constitucional alemã, não se pode, a título de se interpretar uma lei conforme a Constituição, dar-lhe sentido que falseie ou viole o objetivo legislativo em ponto essencial”.

Não é, destarte, a interpretação conforme a Constituição, enquanto mecanismo de controle de constitucionalidade, meio de criar-se norma nova, não comportável no texto infraconstitucional interpretado. Decerto, também, o juiz não poderá, por esse instrumento, alterar o caráter, o conteúdo ou a finalidade da lei. Qual resulta expresso, na decisão do STF, na Representação n° 1417, de 1988, pela interpretação conforme a Constituição, há impossibilidade de se contrariar a vontade inequívoca do legislador. A interpretação fixada pela Corte Constitucional não há de desprezar o sentido da norma, inclusive decorrente de sua gênese legislativa inequívoca, porque não compete a Tribunal dessa natureza atuar como legislador positivo, ou seja, constituir, por via da decisão, regra legislativa nova.

3. Nesse sentido, bem de ver é, assim, a diferença entre a interpretação de norma conforme a Constituição, no sistema de controle concentrado de constitucionalidade, e a interpretação de lei, com eficácia normativa, instituto do regime da Constituição anterior, introduzido pela Emenda Constitucional n° 7, de 13.04.1977, ao conferir ao STF competência com vista a processar e julgar, originariamente, representação do Procurador-Geral da República “para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual” (Emenda Constitucional n° 1/1969, art. 119, I, “i”). Segundo a disciplina regimental expedida pelo STF, na Emenda Regimental n° 7, de 23.8.1978, após o julgamento da representação, o sentido e alcance da lei ou ato normativo federal ou estadual seriam os fixados na interpretação proclamada, implicando sua não-observância negativa de vigência do texto interpretado, cumprindo considerar existente, em princípio, violação a literal disposição de lei para os efeitos do art. 485, V, do CPC, ou negativa de vigência da lei, se federal, aos fins do recurso extraordinário, com apoio no art. 119, III, alínea “a”, da Emenda Constitucional n° 1/1969, consoante examinei a espécie no trabalho intitulado “O Supremo Tribunal Federal e a Interpretação Jurídica com Eficácia Normativa”, inserto em “Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal”, Editora Universidade de Brasília, 1982, págs. 131/153. Cuidava-se, aí, de medida adotada, apenas, em situações especiais em que interesse público superior estivesse a justificar, desde logo, o pronunciamento do Alto Tribunal do País, que detinha, então, a competência não só de guardião da Constituição, mas também da unidade do direito federal infraconstitucional e da uniformidade de sua interpretação. Tal instrumento, que não era de controle de constitucionalidade, veio, todavia, a ser extinto no sistema da Constituição de 1988.

4. Pois bem, o que, efetivamente, em realidade, pretende a Confederação requerente, consoante decorre da inicial da ADPF n° 54, é venha o Supremo Tribunal Federal, adotando mecanismos de controle concentrado de constitucionalidade, a proclamar, erga omnes e com efeito vinculante, que, no conteúdo e alcance dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal (Decreto-Lei n° 2.848/1940), não se compreende a hipótese de interrupção de gravidez, que a autora denomina “antecipação de parto”, quando se tratar, comprovadamente, de feto anencefálico.

Ora, dispõem os artigos referidos do Código Penal, verbis:

1. Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

“Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque.

Pena – detenção de 1 (um) a 3 (três) anos”.

2. Aborto provocado por terceiro

“Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena: reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos”.

3. “Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro.

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

Se os dispositivos em foco cuidam da disciplina legal do crime de aborto e, no art. 128, I e II, do Código Penal, de forma expressa e inequívoca, se alinham as únicas hipóteses em que, embora praticado o aborto por médico, não se lhe impõe a pena respectiva, não há como deixar de conferir à pretensão da autora o evidente intuito de ver instituído, por meio de decisão judicial, em controle concentrado de constitucionalidade, aquilo que o legislador, até hoje, não concedeu, ao não aprovar projetos de lei, no Congresso Nacional, com o objetivo de introduzir, no sistema do Código Penal, a hipótese de não-punição do aborto praticado, quando se comprovarem graves anomalias no feto, em termos a não apresentar condições de sobrevida. Nesse sentido, o Projeto de Lei n° 1956/1996, em tramitação no Congresso Nacional, é exemplo, dentre outros, a confirmar que, somente ao Poder Legislativo, e não ao Poder Judiciário, o qual não tem função de legislador positivo, caberá criar hipótese nova de não-punição do aborto, que consiste na interrupção da gravidez, com morte do feto.

Assim sendo, não é de admitir-se que, por meio de interpretação conforme a Constituição, consoante pretende a autora, no bojo de procedimento de controle concentrado de constitucionalidade de normas, as quais explicitamente regulam instituto jurídico penal, com contornos específicos, se venha a instituir hipótese outra excludente de punição, quando o legislador, de forma inequívoca e estrita, alinha os casos em que o crime em referência não se pune, máxime, na espécie, diante da existência de proposta legislativa em exame no Congresso Nacional. Não tenho como possível, desse modo, o Poder Judiciário fixar juízo, de natureza normativa, antecipando-se à deliberação dos outros Poderes Políticos, a tanto competentes, excluindo em decisão, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, do âmbito de incidência de normas infraconstitucionais anteriores à Constituição vigente, a situação em foco que, de resto, em princípio, está envolta em questões de fato pendentes de comprovação técnica complexa.

5. Não serve, de outra parte, a argüição de descumprimento de preceito fundamental, para ser via de interpretação e definição, em tese, de norma infraconstitucional. Na decisão, a Corte, a teor do art. 10 da Lei n° 9.882/1999, fixa “as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental”, que se aponta como descumprido ou ameaçado de lesão, por ato do Poder Público. À vista dessa compreensão do preceito fundamental, o STF dirá, então, da procedência ou improcedência da argüição de seu descumprimento, fazendo “comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados”.

Releva, aqui, ainda, conotar que a presente argüição (ADPF n° 54), conforme está na inicial, cuja cópia instrui a Consulta, foi ajuizada com base no art. 1º., caput, da Lei n° 9.882/1999, ou seja, como argüição autônoma e não como argüição incidental (item 13 da inicial da ADPF n° 54). Ora, no particular, escreve André Ramos Tavares, em seu “Tratado da Argüição de Preceito Fundamental”, Editora Saraiva, 2001, pág. 314: “O pedido, no caso da argüição autônoma, será o reconhecimento do descumprimento de preceito fundamental. O sentido mediato é a preservação da ordem jurídico-constitucional com a restituição ao estado de coisas anterior. É a desconstituição do ato impugnado”.

Na espécie de que se ocupa a Consulta, não se alude, especificamente, a ato do Poder Público, mas se pretende que o Supremo Tribunal Federal, com

base no art. 1º., caput, da Lei n° 9.882/1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, ut art. 102, § 1º., da Lei Maior, proceda à interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do Código Penal, para os fins inicialmente aludidos. Esse objeto da ADPF n° 54, assim definido na inicial, não logra, pois, condições de ser enquadrado no âmbito do art. 1º., caput, da Lei n° 9.882/1999, invocado como base da argüição autônoma em apreço. Cuida-se, efetivamente, de obter interpretação conforme a Constituição de normas penais, com objetivo real de incluir, entre os casos de exclusão de pena, ut art. 128, I e II, do Código Penal, a hipótese de interrupção de gravidez, quando o feto for portador de anencefalia, devidamente comprovada.

Em conclusão, não é, para tanto, meio adequado a argüição de descumprimento de preceito fundamental prevista no art. 102, § 1º., da Constituição, com a disciplina conceitual do art. 1º., caput, da Lei n° 9.882/1999. Nem cabe, ademais, como restou demonstrado, interpretação conforme a Constituição, de normas infraconstitucionais, que venha a alterar o conteúdo ou a natureza das regras interpretadas, inclusive, com introdução de hipótese normativa nova, máxime em se cogitando de disposições de direito penal, de inequívoco e preciso alcance, em enumeração exaustiva, consoante sucede com regra de exclusão de penas.

Compreendo, destarte, que a argüição de descumprimento de preceito fundamental em exame não possui condições de ser conhecida.

6. De outro lado, também não é de admitir-se o pedido alternativo, em que a autora pleiteia, na hipótese de não caber argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), seja a inicial recebida como ação direta de inconstitucionalidade, porque a pretensão é de interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal (Decreto-Lei n° 2.848, de 7.12.1940) e não de declaração de inconstitucionalidade.

Com efeito, a “interpretação conforme a Constituição”, enquanto técnica de decisão em controle concentrado de constitucionalidade, implica julgamento de procedência parcial da ação, com declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto, das normas questionadas, nos termos expostos no item 2 acima, à vista da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Bem de ver é, pois, que não será admissível, nesse caso, a fungibilidade da argüição de descumprimento de preceito fundamental proposta em ação direta de inconstitucionalidade. O objeto da ação, ademais, tal como definido inicialmente e reafirmado no “pedido alternativo”, é a interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126 e 128, do Código Penal, diploma de 1940, para os fins referidos na inicial. Isso implicaria uma pretensão da autora de obter decisum da Corte Constitucional de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, das normas indicadas do Código Penal de 1940, o que é inviável, em face da tranqüila jurisprudência do STF, confirmada, entre outras, na ADIN n° 2, segundo a qual não cabe ação direta de inconstitucionalidade, relativamente a direito pré-constitucional.

Não remove, além disso, no particular, a dificuldade a assertiva de que as normas anteriores em apreço não são expungidas do ordenamento positivo, mas nele permanecerão com a interpretação que a Corte lhes conferir. De fato, não se trata, aqui, de interpretação de normas infraconstitucionais, à semelhança do que sucedia, no regime anterior, com o uso da representação para interpretação, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual, a teor da Emenda Constitucional n° 7, de 1977, antes aludida (item 3 supra), com eficácia normativa, mas, sim, de interpretação conforme a Constituição, que integra o mecanismo do controle concentrado de constitucionalidade, a adotar-se no âmbito de ação direta de inconstitucionalidade, o que é incabível, concernentemente ao direito anterior a 5.10.1988.

7. De todo o exposto, penso que não é admissível a argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos em que proposta a ação. Por igual, compreendo insuscetível de conhecimento o “pedido alternativo”, em conformidade com o que antes se deduziu.

II

8. Examino, a seguir, em face da Consulta, o mérito da quaestio juris, à vista dos termos sumariados acima.

9. Desde a concepção, há ser humano, amparado pelo direito à vida e com prerrogativa da dignidade humana, qualquer seja o prognóstico de seu futuro, inclusive quanto à duração de sua existência.

Diego León Rábago, in “La Bioética para el Derecho”, México, ed. Faculdade de Direito, Universidade de Guanajuato, 1ª. ed., 1998, pág. 207, explica demonstrar a genética suficientemente que, desde o momento mesmo em que surge à vida o zigoto, já há um ser humano. Keith L. Moore, citado por Rábago, define o zigoto como a célula resultante da fecundação de um óvulo pelo espermatozóide e acrescenta que um zigoto é “o começo de um novo ser humano”. Rábago, no ponto, ainda esclarece que não se devem confundir as células germinativas, óvulo e espermatozóide, com o zigoto. Aquelas são originadoras, este é o originado. Noutro passo, complementa que, com o surgimento do zigoto, se inicia o processo contínuo do desenvolvimento do ser humano, o qual abrange sua integração orgânica e seu crescimento, conforme as determinações de seu código genético. Por virtude do fenômeno vital da divisão, crescimento e diferenciação celulares, o zigoto se converterá em preembrião, em embrião, em feto, em criança, em jovem, em adulto e em velho. Como sinala, ademais, Rábago, enquanto tudo isso sucede por determinação do código genético, contido já no zigoto, as transformações que se operam são morfológicas, porém não essenciais. Existe uma identidade absoluta entre o zigoto e o preembrião, o embrião, o feto, a criança, o adulto e o velho. Trata-se do mesmo ser que passa por diversas etapas de desenvolvimento (op. cit., págs. 207 e 208).

Nesse mesmo sentido, a geneticista Eliane S. Azevêdo, in “A bioética no século XXI”, organizadores Volnei Garrafa e Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, editora UnB, 2000, pág. 87, esclarece que existe identidade genética absoluta em todas as células somáticas do organismo humano e entre estas e a célula somática inicial, o zigoto. O zigoto “tem o projeto e a auto-suficiência para, interagindo com o ambiente, construir uma pessoa humana geneticamente única”. A seguir, observa a citada geneticista (op. cit., pág. 88): “não obstante o grande número de multiplicação celular experimentado por nosso organismo desde o estágio unicelular pós-fertilização, até a morte por extrema idade, o DNA de todos as células permanece o mesmo”.

Assim, diante das informações também da Genética, quanto à natureza do zigoto e do desenvolvimento do organismo celular, não há deixar de acolher o entendimento de que, desde o instante da concepção, existe vida humana, dotada das virtualidades e potencialidades da pessoa humana.

Pois bem, essa conclusão não se pode alterar, se e quando, no curso do desenvolvimento do ser humano, ainda na fase fetal, ocorra anomalia ou malformação a comprometer o funcionamento de órgão ou de sistema próprio da natureza desse ente, que, não obstante isso, continua mantendo a vida, no ventre materno, com a deficiência que o acomete.

10. Com efeito, Pontes de Miranda, expressando a doutrina em curso no sistema jurídico brasileiro, anotou (“Tratado de Direito Privado”, Rio de Janeiro, Editor Borsoi, 1954, Parte Geral, Tomo I, § 50, n° 4, pág. 163): “Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (= sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar de viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto trato de tempo em que viveu. O Código Civil desconhece monstros, monstra. Quem nasce de mulher é ser humano. Não cogita do hermafrodita, no tocante à personalidade (C. Crome, System, I, 206).”

Estava no Código Civil de 1916, art. 4º.: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Preceitua, no mesmo sentido, o novo Código Civil, Lei n° 10.406/2002, em seu art. 2°: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Clóvis Bevilaqua, à sua vez, já escrevera (in Código Civil dos Estados do Brasil Comentado, 11ª. ed., 1956, pág. 145), a respeito do art. 4º. do CCB de 1916: “2 – A personalidade civil do homem começa com o nascimento, diz concisamente o Código. Basta que a criança dê sinais inequívocos de vida, para ter adquirido a capacidade civil. Entre os sinais apreciáveis estão os vagidos e os movimentos característicos do ser vivo; mas, particularmente, perante a fisiologia, é a inalação do ar cuja penetração, nos pulmões, vai determinar a circulação do sangue no novo organismo, o que denota ter o recém-nascido iniciado a sua vida independente. Realizado o nascimento, pouco importa que, momentos depois, venha a morrer o recém-nascido. A capacidade jurídica já estava firmada, direitos já podiam ter sido adquiridos que se transmitiram ao herdeiro do falecido. Não há, também, distinguir, se o parto foi realizado naturalmente, ou se exigiu intervenção da obstetrícia.” Noutro passo, acrescenta (op. cit., pág. 145): “O Código afastou as questões antiquad

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