Parecer do Ministério Público Federal, de 10/12/2003 em favor do HC 32159

 

HABEAS CORPUS Nº 32159-RJ

RELATOR: EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ

IMPETRANTE: LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ

IMPETRADO: DESEMBARGADORA RELATORA DA APELAÇÃO NR 2003050052208 DA 2ª CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RJ

PACIENTE: NASCITURO

EMENTA:

1. Interrupção da vida em feto com anomalia cerebral: ilegalidade na decisão judicial que isto autoriza: considerações.

2. Direito à vida: sua compreensão na perspectiva ineliminável da acolhida, do carinho e do amor, não porta o tempo de sua manifestação, dos pais aos filhos em gestação.

3. Deferimento do pedido.

1. A il. Min. Laurita Vaz bem expõe a controvérsia em trecho da decisão concessiva da liminar, verbis:

“Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado por LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ, em favor de NASCITURO, que se encontra no útero da mãe, Sra. Gabriela Oliveira Cordeiro, contra decisão proferida, liminarmente, em sede de apelação, pela Desembargadora da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para autorizar a realização de abortamento do nascituro.

Infere-se dos autos que a Defensoria Pública ingressou com pedido junto à Vara Criminal da Comarca de Teresópolis/RJ, para que fosse autorizado à Sra. Gabriela Oliveira Cordeiro se submeter a intervenção cirúrgica, visando interromper a sua gravidez, tendo em vista a inviabilidade de vida pós-natal do feto que, segundo exames realizados, constatou-se padecer de anencefalia (cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar).

O douto magistrado indeferiu o pedido, nos termos a seguir transcritos:

‘Indefiro o pedido por falta de amparo legal, eis que a hipótese vertente não se encontra inserida no bojo do art. 128 do CP. Julgo, pois, extinto o processo, nos termos da lei processual.’ (fls. 02)

Houve, então, interposição de apelação para o Tribunal a quo, que, em sede liminar, embora de caráter satisfativa, autorizou a realização do aborto (fls. 03/04).

Sustenta o Impetrante, no presente writ, que a decisão ora hostilizada violou os preceitos previstos nos arts. 3º, 5º e 227, da Constituição Federal, bom como o disposto no art. 2º do Código Civil.

Alega, também, que o aborto em questão não se enquadra nas hipóteses dos incisos do artigo 128, do Código Penal, razão pela qual não poderia ter sido autorizado a sua realização, sob pena de ser estar facultando a prática de crime de aborto.

Apresenta, por fim, julgados de diversos Tribunais, todos no sentido único da defesa do nascituro (fls. 05/11).

Requer, pois, a concessão da liminar para ‘cassar a decisão da Desembargadora Gizelda Leitão Teixeira e sustar a realização do aborto na Sra. Gabriela Oliveira Cordeiro’ (fl. 12), até o julgamento do mérito, quando a liminar concedida deverá ser confirmada.” (fls. 21/22)

2. Tendo a 2ª Câmara Criminal, por maioria, julgado e negado provimento a agravo regimental – fls. 52/59 -, interposto pelos advogados Carlos Brasil e Paulo Silveira Martins Leão Jr. – fls. 47/50 – o conhecimento do presente writ é indeclinável.

3. No mérito, somos por sua concessão.

4. O pensamento majoritário, que se perfez no julgamento do agravo, cujos efeitos suspensos foram pela decisão liminar da il. Min. Laurita Vaz – n.º 32159-RJ 3 informações a fls. 31 – apresenta o princípio da razoabilidade a incidir quando presente situação desumana.

5. De se ler na ementa da il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, verbis:

“(…) Desumana porque ignora totalmente o sofrimento suportado por uma jovem de apenas 18 anos (e seu marido), que tem plena ciência de carregar no ventre um ser condenado à morte, não havendo a menor possibilidade de sobrevivência, após o parto.” (vide: fls. 52)

6. E mais adiante, ainda na ementa, verbis:

“(…) Não lograram os agravantes trazer qualquer argumento que evidenciasse equívoco na fundamentação da decisão guerreada. Invocam genericamente a Constituição como garantidora do direito à vida, nada mais. Ignoram completamente o desespero da mãe por saber frustrada a chegada de um filho, pois é positivado nos autos por laudo médico (fls. 13) que o feto apresenta ‘malformação grave do sistema nervoso central (cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar) que é incompatível com a vida pós-natal’. Ora, versando os autos sobre questão científica, não cabem aqui divagações sobre o tema. Cabe sim ao Judiciário decidir e decidir sem medo de contrariar os que pensam diferente, pois o casal recorreu ao Judiciário buscando obter a interrupção legal da gestação. Não agiram na clandestinidade, demonstrando respeito pelas instituições e pela ordem jurídica vigente. Não podem e não merecem permanecer com este sofrimento de saber que o filho tão desejado não sobreviverá tão logo venha ao mundo por padecer de patologia incontornável. Argumento algum foi invocado para justificar a reforma da decisão autorizadora da interrupção da gravidez. Os agravantes somente invocaram os velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida de quem já está inexoravelmente condenado à morte, ignorando-se por completo o sofrimento, a angústia dos pais e o risco de vida que corre a mãe, abatida por intensa depressão, a esta altura intensificada pela constatação dolorosa de que recorrer à Justiça nem sempre significa solução rápida para problemas cruciais.”

(vide: fls. 53/4, grifamos)

7. O tema não é simples, mas a argumentação da il. Des. Gizelda Leitão Teixeira não é correta, data venia.

8. De plano, não é fato que o jovem casal está em quadro de profunda angústia.

9. A matéria jornalística, lida a fls. 61, deixa por bem claro que, verbis:

“Depois da decisão, no entanto, a mãe desistiu de realizar o aborto, e vai prosseguir com a gravidez.”

10. A própria Promotora de Justiça, tão enfática no pugnar pela autorização do aborto – fls. 35/38 -, mudou de postura e, verbis:

“Ela vai chamar-se Vida ou Soraya, disse a promotora criminal de Teresópolis, Soraya Taveira Gaya, que recorreu da decisão do juiz da Vara Criminal, Paulo Rodolfo Maxiliano de Gomes Tostes, que indeferiu o pedido inicial do aborto. Os pais da criança evitam falar no assunto. “Pareciam aliviados com a decisão da Justiça, mas alegaram motivos pessoais para fazer outra opção”, explicou a promotora Soraya.” (vide: fls. 61)

11. Não é correto, como faz a il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, dizer da invocação constitucional “como garantidora do direito à vida, nada mais”.

12. Ora, o direito à vida é tudo, por isso que nada mais se considera, quando ele é questionado, caindo, então, no vazio tal questionamento.

13. Não são, assim, “velhos e surrados os argumentos de defesa pura e simples da vida” como estabeleceu a il. Desembargadora.

14. Qualquer argumento em favor da vida jamais será velho e surrado.

15. O que é preciso compreender-se – e agora sim surge a incidência do princípio da razoabilidade – é que vida intra-uterina existe.

16. É que, mesmo nesse estágio, sentimentos de acolhida, carinho, amor passam, por certo, do pai e da mãe, mormente desta, para o feto.

17. Se ele está fisicamente deformado – por mais feio que possa parecer – isto jamais impedirá que a acolhida, o carinho, o amor flua à vida, que existe, e enquanto existir possa.

18. Isso, graças a Deus, está além da ciência.

19. Foi isso que gerou a mudança nos planos do casal, para acolher, pelo tempo que possível for, a menina que geraram.

20. Pelo deferimento do pleito cassada a decisão assumida no agravo regimental, prejudicado o julgamento da Apelação nº 5208-3 (fls. 43/46), ajuizada pela representante do Ministério Público que, como vimos, mudou de idéia após a subscrição do recurso, visto que o tema versado no agravo regimental confunde-se, em sua totalidade, com o apelo ajuizado.

Brasília, 10 de dezembro de 2003.

Cláudia Sampaio Marques
Subprocuradora-Geral da República

Claudio Lemos Fonteles
Procurador-Geral da República

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