Preleção inaugural dos Cursos Jurídicos da Faculdade de Direito da USP de 1965. Publicado na
Revista da Faculdade de Direito, USP, São Paulo, 1965, volume IX, p. 312-330
J. B. de Oliveira e Costa Júnior
Catedrático de Medicina Legal na Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo.
Concedeu-me, o nosso ilustre diretor, Prof. Luís Eulálio de Bueno Vidigal, a honra insigne de, nesta alvorada de novo ano letivo, falar no primeiro encontro do calendário escolar, que, na realidade, representa o início do diálogo e o dia da confraternização cordial e festiva, para a renovação dos propósitos de bem servir, através do trabalho e do amor ao estudo, à pátria comum, a :qual deposita em vós, caros alunos, as mais justas e carinhosas esperanças.
E por isso, é que, as minhas primeiras palavras são de boas vindas e de saudação amiga aos que retornam após o indispensável repouso, e aos recém-chegados, trasbordantes de fé, animados todos, porém, pelo mesmo ideal e pelas mesmas disposições de cumprir com seus deveres específicos, contribuindo, assim, para o engrandecimento da cultura e dos postulados universitários.
A convivência mais afetiva possível, o respeito essencial às inter-relações humanas e a serenidade dos julgamentos deverão nortear a vida universitária, sem os favores indesejáveis, que podem corromper e humilhar a mocidade acadêmica, impedindo-a, até mesmo, de compreender o muito com que o povo contribui para o seu aprimoramento, e de sentir o dever imperioso de ressarcir-lhe pelos benefícios usufruídos.
Dest’arte, a melhor forma de podermos corresponder aos anseios coletivos é, para o professor, o de ensinar e, para o aluno, o de aprender.
A minha parte começo já.
Ouvireis; costumo dizer a meus discípulos, cada um dos mestres asseverar que a disciplina por ele professada é a mais relevante do currículo acadêmico. Advertidos, entretanto, foram para que não acreditassem em tal afirmação porque, de fato, a mais importante, perdoem-me os meus doutos companheiros de Congregação, é a Medicina Legal. E procuro explicar, à minha moda, lembrando que pouco interessaria conhecer os institutos jurídicos quando se ignora o homem – finalidade do próprio direito.
É na cadeira de Medicina Legal que tereis oportunidade de recordar o dinamismo da personalidade humana, a constelação de; fatores determinantes de seus atos e as lesões que comprometem os maiores bens tutelados: a vida e a saúde do ser humano. Essa disciplina, estudando as questões mais elevadas na hierarquia dos valores, apesar de possuir base biopsicológica, transpõe o horizonte predominantemente e experimental para juntar-se, também, à ciência da moral a apreciação dos direitos e deveres dos cidadãos.
Dela depende, muitas vezes, a prova da inocência ou da culpabilidade, a fim de que não venha alguém a curtir o amargor da prisão sem merecê-la, nem a gozar das regalias de uma liberdade indevida.
Justifico, pois, a importância que se lhe empresta; e para comprová-la faço, agora, esta pergunta como tema da aula inaugural:
Por quê, ainda, o abôrto terapêutico?
Todo; conhecimento humano, presumidamente científico, é a resposta verdadeira a uma pergunta que se procura esclarecer, isto é, a explicação do fato através de suas próprias causas, que, no caso em aprêço, pela transcendência de suas implicações, deverá traduzir a conseqüência lógica de fundamentos exatos.
Limitar-me-ei, nestas considerações, apenas ao chamado abôrto terapêutico, que, na prática, pode confundir-se com o abôrto necessário, porque o tempo não me permitiria tratar de todas as outras espécies conhecidas.
Esse evento, motivo de exclusão da pena, está prevista no código vigente com o nome de “abôrto necessário”, e cujo conteúdo em nada foi modificado no anteprojeto, que o denominou de abôrto terapêutico. Digo, inicialmente, que se me fosse permitido, chamá-lo-ia de abôrto desnecessário ou, então, de abôrto anti-terapêutico, o qual, estabelecendo redundância com o aborto criminoso, não teria razão alguma para figurar no Código, motivando a exclusão da responsabilidade criminal.
Se é verdade que entre os antigos a intervenção abortiva foi largamente recomendada ou tolerada para atender a mulher em gestação penosa ou em trabalho de parto difícil, como entre os hebreus ou como foi defendida por Platão e Aristóteles, com as restrições deste último, ligadas à época da animação fetal, não menos exato é assinalar atitude de Hipócrates, o sábio de Cós, que só o admitia após a morte do nascituro, pela impossibilidade de se estabelecer a época dessa animação. E tal repulsa ouvia-se, também, em verso de Ovídio, o sublime poeta elegíaco de Sulmona, quando censurou à Corina, sua mulher, dizendo: “matando o filho no seu ventre, muitas vezes, a mãe também perece” Prosseguindo depois : ” por que, mulheres, sujar as vossas entranhas com o ferro homicida? Por que despojar a vinha fecunda do cacho que amadurece? Por que, com mão cruel, arrancar o fruto antes da maturação?”
Seria fastidioso se procurasse analisar toda a evolução do pensamento médico a respeito desse grave problema. Basta recordadas, entretanto, as manifestações das faculdades médicas de Paris e da Bélgica, as reuniões científicas realizadas em muitos países e a advertência do mestre Carrara, no seu “Programa de Direito Criminal”, considerando, do ponto de vista médico, um “tremendo juízo, todas as vezes que alguém tivesse de decidir entre o sacrifício certo da criatura e o provável desta e de sua mãe…”
O aspecto mais grave ainda é o de, aproveitando-se do dispositivo legal, alguém abusar da prática abortiva para esconder o seu verdadeiro objetivo. É isso o que, realmente, se verifica na prática. E quando imaginamos que vozes de protestos se faziam ouvir, em todos os recantos da terra, após os resultados de processos rumorosos, nos quais os réus foram condenados à pena capital, fico perplexo, como médico que sou, ante o silêncio que envolve a morte do nascituro, principalmente, revendo a atitude das índias de certos agrupamentos que, algum tempo antes do parto, passam em vigília, receosas de que os sonhos agourentos as obriguem sacrificar os recém-nascidos.
Poder-se-á, então, chamar civilizada a sociedade que permite a traição dos mandatos conferidos por meio de um conluio tenebroso, no qual a responsabilidade de alguns se dilui na complacência e na cumplicidade muitos, para a destruição do ser no interior do órgão que deveria representar a garantia e o sacrário de sua própria sobrevivência?
O respeito à vida humana é imperativo do exercício da medicina e das atividades afins, em qualquer fase de sua evolução: desde o início, “Homo est quid futurus est”, na máxima de Tertuliano, até o seu bruxolear, como o sentiu Desgenettes, médico chefe do exército napoleônico, insurgindo-se contra as ordens do gênio da guerra, que determinara a eliminação sumária dos soldados pestiados, a fim de livrá-los das cimitarras turcas. Foi quando proferiu a célebre frase “Mon devoir a moi c’est de conserver”, verdadeiro aforismo da medicina.
Da forma como foi redigido o dispositivo penal, no código vigente e, por sinal, como também consta no anteprojeto, tenho para mim que, se honestidade houvesse na sua observância, teria sido uma norma inteiramente inócua, porque nunca ocorreria tal espécie de aborto; mas o que, realmente, o dispositivo enseja é favorecer e ocultar o verdadeiro abôrto criminoso.
Não nego que, no passado, indicações raríssimas, fossem justificadas do ponto de vista médico, para salvar a vida materna, sem a consideração dos argumentos contrários, de ordens mais ponderáveis, os quais não pretendo aduzir, porque me propus, a mim mesmo, tratar do tema unicamente dentro do âmbito da medicina; porém, na atualidade, insistir-se no mesmo propósito só poderia demonstrar má fé ou ignorância.
Basta que meditemos um pouco nas palavras pronunciadas, em 1948, pelo Prof. Raul Briquet, e que nunca foi ligado a qualquer preceito ou preconceito religioso, quando afirmou que o abôrto terapêutico significava “deficiência de conhecimentos médicos ou inobservância dos princípios básicos da assistência pré-natal”.
Que proporcione o Estado condições necessárias para a gestante chegar ao termo da gravidez, compreendo, mas permitir precipitada e sumariamente o sacrifício do nascituro, isso, não posso tolerar. Se, por analogia, adotássemos esse critério violento, os criminosos, os contraventores ou, até mesmo, os doentes contagiantes deveriam ser eliminados porque a sociedade não conseguiu, até agora, impedir o crime, a contravenção ou a doença.
Há muito que fazer em matéria de assistência à saúde e à maternidade; procurem, portanto, os nossos governantes e legisladores os meios de bem aproveitar os recursos oficiais para fins mais úteis e honestos, do que encobrir as suas omissões com medidas anticientificas e desnecessárias, pois, apesar das deficiências existentes, ainda assim, a medida não se justifica.
Sem pretender separar artificial e casuisticamente os abortos legais dos ilegais, anotando apenas as cifras de abortos provocados, assinalo que tal prática continua alarmante em todos os países.
Para avaliar a sua freqüência, são usados dois métodos indiretos: um, pela pesquisa das complicações pós-operatórias, que é falho dado a eficácia dos antibióticos e o aperfeiçoamento da técnica intervencionista; o outro, o da anamnese, visando registrar as interrupções da gestação, também, de resultados muito aquém da realidade. Todavia, dizem os entendidos que, anualmente, na Alemanha é de 1.300.000 o número de abortos provocados; na França, antes da última guerra, de 1.000.000 e na atualidade, menos de 800.000; na Rússia, até 1936, 75% das gestações eram interrompidas; no Japão, 2.000.000 de abortos em 1957, segundo Kato; nos Estados Unidos, um abôrto para cada 3 gestações, com 2/3 de clandestinos; no Brasil, pelas estatísticas de Correia da Costa, de 1948, proporcionalmente ao seu índice populacional, os dados se aproximam aos da grande nação do hemisfério norte: 412.472 abortos, com a diferença, somente, de que, segundo as estatísticas fornecidas pelos Centros de Saúde de São Paulo, 90%o dos abortos são provocados. E se analisarmos as estatísticas suecas e dinamarquesas, chegaremos a constrangedor resultado, porque o número de abortos supera o de nascimentos. E isso também foi observado em muitas regiões, que admitem o abôrto terapêutico, conforme no-lo revela Jean Graven, a respeito do abuso das indicações médicas no cantão de Genebra.
Parece-me, salvo melhor juízo, que não houve guerra alguma, epidemia nenhuma ou mesmo a soma desses tristes eventos, que registrasse cifra tão elevada de vitimas, em toda a superfície da terra. Mas, acrescentado, se possível, o número de abortos não revelados e mantidos em segredo, os resultados, certamente, seriam bem mais elevados.
É, na verdade, um mar de sangue a inundar a consciência de todos nós, que direta ou indiretamente, temos, por mínima que seja, uma parcela de responsabilidade na história dos acontecimentos humanos.
Nem as leis da contracepção legalizada na Suécia, depois de 17 de junho de 1938, relata Westman (1955) e da Proteção Eugênica, de julho de 1948, no Japão, afirma Honda (1954), impediram as estatísticas assustadoras do evento. Segundo este último autor, em 3.500 famílias, observadas pela Comissão de Pesquisas Demográficas de Mainiche, havia casos de abortos em menor número entre os casais não abstêmios do que entre os casais habituados ao emprego de meios anticoncepcionais.
Deixando de lado as razões que, no passado recente, foram invocadas para a exclusão do crime, baseadas no maior valor do homem nascido, como sustentava Holtzen- dorff; ou no direito decorrente do exercício da profissão médica, como lembravam Binding e Fricke; ou na legítima defesa, como aventavam Marchand, Maxwell e outros, restariam os motivos do conflito da tutela, de bens de suposto valor desigual, para justificar o “estado de necessidade”, aceito por Groizan e Garçom e o da obtenção de um fim juridicamente reconhecido (finalidade de cura), como salientavam Vieyer, Allfeld e Von Listz, únicos que dizem mais de perto com a nossa legislação, por individualizarem o abôrto necessário para salvar a vida da gestante e o abôrto terapêutico, com o fim de preservar-lhe a saúde. Quando um deles não está referido na Parte Especial do Código, figura o outro; ou quando ambos foram omitidos, a jurisprudência reconhece a exclusão do crime, fundada em norma geral.
O nosso Código Penal art. 128 não incrimina o médico que praticar o chamado abôrto necessário se não houver. outro meio de salvar a vida da gestante, e considera em “estado de necessidade”, no art. 20, quem o realiza, visando “salvar de perigo atual, que não procurou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.
O anteprojeto do Código Penal, no art. 127 não incrimina “o abôrto praticado por médico quando é o único recurso para evitar a morte da gestante” e, no art. 26, diz : “em estado de necessidade quem pratica um mal para preservar de perigo certo e atual, que não provocou, nem podia de outro modo evitar, direito seu ou alheio, desde que o mal causado, pela sua natureza e importância, é considerávelmente inferior ao mal evitado, e o agente não era legalmente obrigado a arrostar o perigo”. Não há, pois, diferença alguma de conceito entre essas espécies de abôrto. Diga-se o mesmo a respeito do “estado de necessidade”, acrescido este, porém, no anteprojeto, do reconhecimento de que se trata de um mal, de um perigo certo a evitar e de que esse mal, pela sua natureza e importância, deva ser considerávelmente inferior ao mal evitado.
Todos os aspectos, desses dispositivos, posso assegurar, não encontram apoio na medicina atual: primeiro, porque há outros meios para se tentar salvar a vida da gestante; segundo, porque sendo conjeturais as diagnósticos médicos, nunca haverá certeza absoluta sobre o êxito letal; terceiro, porque a intervenção abortiva acarreta maiores perigos para a vida da gestante do que o prosseguimento da gravidez; e quarto, porque o “mal causado” não é, pela sua natureza e importância, considerávelmente inferior ao suposto mal evitado, conforme veremos mais adiante.
Quanto ao mal não provocado pela gestante, alguns autores dizem tratar-se da gravidez e outros, do perigo, não comum, criado pela gestação. Sem pretender invadir seara alheia, lembro, entretanto, que ninguém pode ignorar os perigos da gravidez, e, desejando-a, assume implicitamente o seu risco, pois, se o não criou, pelo menos, aceitou-lhe as conseqüências.
Vejamos, agora, as indicações mais freqüentes e alegadas para a prática do aborto terapêutico, a fim de certificarmo-nos das suas injustificáveis razões na atualidade.
Nas cardiopatias – Se em 1902 Pinard, o chefe da escola francesa dissera, no Congresso de Ginecologia e Obstetrícia, realizado em Roma, que “as cardiopatias não constituíam indicação para o abôrto terapêutico, sendo importante, nesses casos, evitar o esforço do trabalho de parto”, posteriormente, outros mestres no assunto, manifestaram sua formal reprovação à essa prática cruenta. Assim, sucedeu no XI Congresso de Ginecologia e Obstetrícia dos médicos de língua francesa, em julho de 1939, na cidade de Lausanne, quando Dauwe, professor em Anvers, após 30 anos de exercício profissional, observando 20.000 gestantes cardíacas, afirmou nunca lhe haver ocorrido a necessidade de valer-se dessa prática. Contrários, também, foram os tratadistas Dexeus Font (1949) e Botella Llusiá (1955).
Watt e colaboradores, em 1954, asseveraram que gestantes portadoras de estenose mitral, com sinais de descompensação, podiam atravessar, satisfatoriamente, todo o período da gestação, se convenientemente tratadas.
A opinião de Eastman, mestre inglês e intervencionista conhecido, foi de que, a doença cardíaca reumática, com antecedentes de descompensação, principal indicação no passado, raramente se agrava pela gestação. E acrescentou, ainda, que a palavra “raramente” devia ser substituída por “nunca”.
Na hipertensão arterial -Essa síndrome patológica, como manifestação de toxemia gravídica, só ocorre depois do 6° mês da gravidez. quando. portanto, a fase adiantada da evolução fetal contra-indica a técnica abortiva. E tal circunstância não é desconhecida nem em países que admitem livremente o abôrto, como na Rússia, onde a jurisprudência soviética considera homicídio uma vez ultrapassado esse prazo.
A hipertensão de origem renal ou de outras causas é um processo patológico que se desenvolve em mulher idosa ou, pelo menos, acima dos 50 anos; portanto, quase sempre, sem possibilidade de conceber.
Nos casos de hipertensão essencial muito grave, associada à prenhez, dar-se-á indubitavelmente a morte natural do produto da concepção, com retorno à normalidade da saúde materna; nos casos de gravidade menor, o tratamento adequado tornará, certamente, possível a gestação até a fase da viabilidade fetal e, em face disso, a proscrição dessa violenta medida é norma obrigatória.
Eastman, penitenciando-se dos antigos exageros, afirmou que em 9 dentre 10 mulheres submetidas em 1930 à prática abortiva teriam, hoje, suas gestações sem ameaças de espécie alguma.
Na tuberculose pulmonar – No Congresso de Roma, já referido, as divergências acerca da necessidade do abôrto nos casos de tuberculose pulmonar, foram principalmente grandes entre Pinard e o chefe da escola alemã, Schauta. O mestre francês dizia não haver substrato para se avaliar as condições em que a gestação agravava a tuberculose, razão pela qual achava improcedente a indicação da técnica abortiva; entretanto, o renome de Schauta e o prestígio da escola alemã fizeram com que se difundisse, ainda mais, o emprego do abôrto, tanto em pacientes portadoras de tuberculose como de outras moléstias. Todavia, presentemente, os fatos vieram confirmar o ponto de vista de Pinard, porque ninguém poderá, hoje, desconhecer que o aumento da pressão abdominal, causado pelo crescimento do útero, exerce ação favorável na evolução do processo patológico, devendo, porém, nesses casos, o médico tomar os cuidados devendo, porém, nesses casos, o médico tomar os cuidados necessários para que, durante o trabalho de parto, não sobrevenha a descompressão brusca, capaz de provocar a disseminação do germe, indicando, então, o pneumoperitônio, o qual continuará o efeito benéfico da gravidez.
No IV Congresso Internacional Para o Combate à Tuberculose, realizado em Lausanne, Forssener, médico sueco, apresentou magnifico estudo comparativo, baseado em… 30.000 casos de mulheres tuberculosas, divididas em dois grupos: um, de pacientes em estado de gestação e, outro, de tuberculosas não grávidas, com as seguintes conclusões:
1ª) o agravamento decorre da moléstia e não da gravidez;
2ª) o abôrto terapêutico não tem indicação porque acarretará mais malefícios do que benefícios.
A mesma coisa disse Ramsen, em 1935, no Congresso Alemão de Tisiologia de Bad Kreusnach: “O abôrto deverá ser definitivamente riscado, visto que os seus perigos são maiores do que os da gravidez”.
Schaeffer, Douglas e Dreispon, em 1955, após meticulosa observação de tuberculosas grávidas, durante vinte anos no New York Lying-in Hospital, divulgaram as seguintes e eloqüentes conclusões, que encerram indubitavelmente qualquer discussão sobre tal assunto:
Resultados dos casos observados |
Com abôrto terapêutico |
Sem aborto terapêutico |
melhorados |
13% |
56% |
inalterados |
47% |
38% |
agravados |
33% |
3% |
mortes |
7% |
3% |
Como, pois, conciliar o aborto terapêutico com a legislação penal ante esses resultados, quando o previsto legalmente é para salvar a vida ou, segundo outros códigos, também. preservar a saúde da gestante, e não para aumentar o índice de mortalidade ou a percentagem dos malefícios.
Nas perturbações mentais – A Comissão Oficial Sueca, incumbida de opinar em todos os casos de abôrto solicitado, estabeleceu que, em relação às doenças mentais, a licença só deveria ser concedida com a finalidade de impedir o suicídio ou o agravamento do mal. Pois bem, Ekblad, em 1955, publicou excelente trabalho sobre essas razões. fundamentado em 759 casos de pedidos recusados até o ano de 1949, sem que houvesse um só evento dessa natureza; e depois daquele ano, também, não ocorreu nenhum caso de suicídio por tal motivação.
Meerwein, não infenso á prática do abôrto terapêutico, em 1962, destaca a infreqüência do suicídio após gravidez não desejada. Não é tudo. As estatísticas demonstraram não ter havido maior incidência de suicídio, em gestantes doentes mentais, nos países abstencionistas do que no Japão, na Suécia ou na Dinamarca, que permitem livremente o abôrto.
E, segundo Ekblad, ocorria o agravamento do estado mental, acompanhado de arrependimento das pacientes, em 36% dos casos de abôrto terapêutico.
Fondeur, em 1957, depois de pesquisa cuidadosa, concluiu que “as doentes psicopatas, no ciclo grávido-puerperal, eram idênticas a quaisquer outras da mesma idade, não grávidas, admitidas no hospital pela mesma doença, bem como, com referência á instabilidade mental anterior.
O Prof. Javert, no mesmo ano, afirmou : “It has always been difficult for the author to understand how removal of the pregnancy”. Afiançou ainda: A craniotomia e a lobotomia praticadas na mãe afiguram-se mais lógicas do que o abôrto terapêutico.
E nos países onde não se admite essa indicação para o abôrto terapêutico, o agravamento do estado mental não é maior do que nos países intervencionistas.
Nos vômitos incoercíveis – Para que se tenha uma noção exata dos abusos praticados no passado, acerca da indicação abortiva nos casos de vômitos incoercíveis, basta a seguinte opinião de Eugene Vincent, proferida em 1910: “Declaro que durante minha larga prática obstétrica, na :Vlaternidade e em toda a cidade de Lyon, não vi um só caso que haja determinado a morte da gestante”.
Nesse mesmo ano, Dauchez escrevia : “Na Clínica da Faculdade, vi o Prof. Depaul provocar abôrto, por vômitos incoercíveis duas vezes, e nas duas vezes as pacientes faleceram”.
Eastman, na atualidade, declara que a hiperemese gravídica é, hoje, um processo patológico quase esquecido. E entre nós, o Prof. Briquet, entusiasta do abôrto terapêutico, afirmou ser uma “indicação raríssima, que não prevalece se a gestante recebeu tratamento bem orientado durante três a quatro semanas”.
Por que, então, o abôrto terapêutico?
Consideremos, agora, os elementos da exclusão do crime :
1° – Para salvar a vida da gestante – Conforme já assinalei a respeito das gestantes tuberculosas, o índice de mortalidade das doentes, submetidas à prática abortiva, foi de 123,3 vezes maior do que o das pacientes não operadas..
Antes do advento dos antibióticos, de efeitos mais seguros, a mortalidade, segundo as conclusões do Congresso Pan-Ucraniano, reunido em Hiew, em 1927, oscilava entre 0,28 a 0,70%, e, isso mesmo, em gestantes muito mais resistentes porque não eram portadoras de qualquer processo patológico. E, presentemente, apesar dos antibióticos modernos, as cifras de mortalidade são muito maiores entre as gestantes submetidas à prática abortiva.
Heffermann e Lynch, em 1953, nos Estados Unidos, analisando os índices de mortalidade materna, em 3.000.000 de gestantes, distribuídas em dois grupos de hospitais, dos que permitiam o abôrto terapêutico e dos que não o toleravam, totalizando 152 hospitais norte-americanos, verificaram que não havia número maior de óbitos no segundo grupo. Essa importantíssima pesquisa veio confirmar, de forma irretorquível, a improcedência da indicação, ante as normas preventivas atuais e o tratamento médico bem executado.
Berthelsen e Ostergaard, em 1958, publicaram os resultados baseados em 23.666 casos de abortos provocados, compreendidos entre os anos de 1953 e 1957, com 0,7 por mil de mortalidade e 32,5 por mil de complicações.
Teffcoate, como consta da Excerpta Médica” de 1960 acha que a mortalidade no abôrto terapêutico não vai além de 1 por mil, entretanto, logo a seguir diz, que, nos casos de operações abortivas, a mortalidade é de 1,7 a 3,5 por mil.
Bichers, em 1963, afirmou, que, nos casos de abôrto terapêutico, a morte da gestante pode dar-se apesar dos cuidados médicos e da existência de centros cirúrgicos de alto padrão, informando, ainda, que, na Dinamarca ocorreu a morte da gestante em 2 por mil dos casos; sobrevieram graves seqüelas em 3,2%; e a esterilidade materna em 17,5%.
Quanto à pretensa tutela da saúde, não contemplada no Código Penal brasileiro, a realidade é muito diversa da elaborada pela imaginação dos arautos do abôrto terapêutico.
No mesmo Congresso Pan-Ucraniano, onde apareceu a experiência russa, com todos os requintes da técnica e da tolerância, os protestos contra a medida intervencionista foram numerosos, e mais expressivos ainda os dados estatísticos sobre o agravamento da gestante. Assim, congressistas assinalaram complicações inflamatórias, logo após a intervenção, em 10% das pacientes, e entre os processos patológicos ulteriores registraram metrite, amenorréia, salpingite, abôrto espontâneo em gestações seguintes, prenhez extra-uterina freqüente, esterilidade, transtornos mentais e complicações nos partos subseqüentes.
Entre as conclusões dessa assembléia cientifica foi aprovada, sem qualquer manifestação em contrário, uma nos seguintes termos : “O abôrto legal não presta serviços no que diz respeito à saúde da mulher”. E para demonstrar a sua repulsa, Gerinschtein afirmou enfaticamente: “quando praticamos 140.000 abortos, isto significa que fizemos 140.000 inválidas”.
Esse Congresso aprovou, também, a seguinte resolução:… “é absolutamente necessário defender grande parte da população contra a crença de que o abôrto é uma intervenção banal, dando-lhe a conhecer as suas conseqüências prejudiciais…”
Não apenas isso. A Academia de Medicina de França, em resposta a uma pergunta do Ministro da Saúde Pública, concluíu de forma unânime que : “Os resultados práticos da experiência soviética sobre a legislação do abôrto, como nos foram dados pelo Congresso Pan-Ucraniano de 1927, não podem, sob nenhum título, constituir argumento em favor dessa legislação”.
E para completar, lembro que Bell, Jones, Catteigini e muitos outros mostraram, estatisticamente, a maior sobrevivência das multíparas em relação às paucíparas, e destas comparadas às nulíparas, declarando ainda que os meios anticoncepcionais e, principalmente, o abôrto, são causas de inúmeras doenças que provocam invalidez e, até mesmo, a morte.
2° – Inexistência de outro meio para salvar a vida da gestante – Ante os processos atuais da terapêutica e da assistência pré-natal, o abôrto não é o único recurso; pelo contrário, é o pior meio, ou melhor, não é meio algum para se preservar a vida ou a saúde da gestante. Por que invocá-lo, então? Seria o tradicionalismo, a ignorância ou o interesse em atender-se a costumes injustificáveis? Por indicação médica, estou certo, não o é, presentemente. Demonstrem, pois, os legisladores coragem suficiente para fundamentar seus verdadeiros motivos, e não envolvam a Medicina no protecionismo ao crime desejado. Digam, sem subterfúgios, o que os soviéticos, os suecos, os dinamarqueses e outros já disseram. Assumam integralmente a responsabilidade de seus atos.
Tomaso Napolitano, professor de Instituições Jurídicas da Europa Oriental, no Instituto Universitário Oriental de Nápoles, afirmou em 1963, comentando o novo Código Penal Russo que, nesse particular, o Estado Soviético, passou por 3 períodos: o primeiro, de sua doutrina materialista, vendo apenas no nascituro um “spes vitae” não passível de tutela; de preocupação em defender a saúde da mãe pobre, que não podia praticar o abôrto nas mesmas condições das mulheres ricas; de defesa dos interesses do grupo étnico; e de igualdade de todas as classes, porque o abôrto nas operárias estava ocasionando 50% de mortes e 40% de esterilidade; o segundo período, da política demográfica de Stalin, com a proibição do abôrto, salvo o terapêutico ou o eugênico, porque a nação precisava precaver-se contra o cêrco militar estabelecido pelos, assim chamados, estados capitalistas; e, finalmente, o período atual, iniciado na era kruschevniana, também, de natureza política, reconhecendo o afastamento da ameaça do alegado cêrco, substituído pelo equilíbrio de forças e afirmando o erro da política demográfica de Stalin, com a simples ab-rogação do art. 140 do Código Penal, através do primeiro Ukaze de 5 de agosto de 1954, e restabelecendo a licitude do abôrto, através das normas explícitas no seg4undo Ukaze de 23 de novembro de 1956.
Pelo texto do Código Penal brasileiro, o legislador exige que o perigo “seja atual e inevitável por outro modo”, e, no anteprojeto, “que o perigo seja certo e inevitável por outro meio”; porém, todos nós sabemos que os diagnósticos não possuem o caráter de certeza mas, sim, de maior ou menor probabilidade e que, além disso, o perigo de morte ronda muito mais os casos de aborto terapêutico do que os de gestação não interrompida, conforme reconhecem os próprios intervencionistas. Como, pois, aplicar o dispositivo legal?
Eastman, professor de Obstetrícia da “Johns Hopkins University School of Medicine” afirmou, em 1954: “It is clear that their opinion is veering rapidly toward greater conservation”.
Nas estatísticas de Keith, verificadas no Los Angeles County Hospital, durante vinte anos, de 133 indicações em 14.124 casos de 1931 a 1935, baixou para 12 em 34.369 casos, o que representa decréscimo de 1 sobre 106 para 2 sobre 864 casos e, isso mesmo, entre obstétras que praticaram o abôrto tendo em vista o agravamento da saúde e não, propriamente, a preservação da vida.
3° – O estado de necessidade não procurado por sua vontade – Levando-se em conta apenas esse aspecto, a lei restringe de tal modo a possibilidade do fato que ele chega a constituir uma raríssima ocorrência, desde que afastemos os casos nos quais a mulher conhecia o seu estado de saúde, anterior ao casamento ou à gestação, pois, nesses, se ela não procurou diretamente o perigo, pelo menos, conhecendo essa contingência, aceitou o risco. Isto, entretanto, apenas para argumentar, porque o abôrto terapêutico não é o único meio para preservar a vida da gestante, sendo mesmo mais perigoso do que o prosseguimento da gravidez, razão pela qual não poderia, também, o anteprojeto ser aplicado quando fala em um “mal considerávelmente inferior ao mal evitado”.
Para confirmar, sob outro aspecto, a intenção não manifestada no texto legal, basta verificarmos que, nos países cujas leis não incriminam o abôrto econômico, eugênico, etc., desaparece, naturalmente, dos códigos a exclusão do abôrto terapêutico ou necessário. Quando surgem restrições aquelas modalidades, reaparece a exclusão do abôrto terapêutico, o que é perfeitamente compreensível porque, na verdade, tal justificativa parece, somente, encobrir os verdadeiros motivos do abôrto provocado. Sirva de exemplo o que ocorreu na Rússia com a ab-rogação do art. 140 do Código Penal; na Bulgária com a reforma de 1956; na Dinamarca com a Lei n ° 161, de 18 de maio de 1937; na Suécia com a Lei de 17 de junho de 1938 e no Japão com a Lei de julho de 1948.
Refere Nils Beckmann que o número de ações penais por abôrto ilegal foi muito reduzido na Suécia, o que não é de estranhar, porque nesse como nos outros países, que assim o admitem, o ilegal é apenas o abôrto não autorizado e não praticado em hospitais credenciados. Em contrapartida verifica-se nos países onde não há, também, lei de caráter tão amplo, e nem explícita, no código, tal exclusão, a jurisprudência aceita o “estado de necessidade”, contido na norma geral.
Por quê, então, o abôrto terapêutico?
Por tudo isso que acabo de dizer, considero