(é preciso conhecer aquele que está no banco dos réus do Supremo Tribunal Federal)
Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 (ADPF 54) que pretende que seja declarado “atípico” o aborto de bebês anencéfalos. Segundo a autora da ação, a CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde), em tal caso o aborto não seria aborto. Seria a mera expulsão de um ente não-vivo (um cadáver) ou não-humano(uma coisa), cuja presença serviria apenas para incomodar a gestante. Tentemos entender quem é o bebê anencéfalo, que agora ocupa o banco dos réus.
1. Anencefalia: o que é isso?
Literalmente, anencefalia significa ausência do encéfalo. Essa definição é falha, uma vez que o encéfalo compreende, além do cérebro, o cerebelo e o tronco cerebral. Os bebês anencéfalos, embora não tenham cérebro, ou boa parte dele, têm o tronco cerebral funcionando. O tronco cerebral é constituído principalmente pelo bulbo, que é um alongamento da medula espinhal. Controla importantes funções do nosso organismo, entre elas: a respiração, o ritmo dos batimentos cardíacos e certos atos reflexos (como a deglutição, o vômito, a tosse e o piscar dos olhos).
Segundo o Comitê de Bioética do Governo Italiano, “na realidade, define-se com este termo uma má-formação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, na qual se verifica ‘ausência completa ou parcial da calota craniana e dos tecidos que a ela se sobrepõem e grau variado de má-formação e destruição dos esboços do cérebro exposto’”(1).
Grau variado: eis a questão. A anencefalia admite graus. São palavras do Comitê:
“A dificuldade de classificação baseia-se sobre o fato de que a anencefalia não é uma má-formação do tipo tudo ou nada, ou seja, não está ausente ou presente, mas trata-se de uma má-formação que passa, sem solução de continuidade, de quadros menos graves a quadros de indubitável anencefalia. Uma classificação rigorosa é, portanto quase que impossível”(2).
Comparemos a anencefalia com a calvície. Se podemos definir, grosso modo, anencefalia como “ausência de cérebro”, poderíamos definir calvície como “ausência de cabelos”. Mas, o homem calvo não tem realmente cabelos? Nem mesmo um fio de cabelo? Em geral, os calvos têm cabelo, mas em pouca quantidade.
Tentemos então redefinir a calvície. Ela não é mais a “ausência de cabelos”, mas a presença de poucos cabelos. Agora vem a pergunta chave: qual o número máximo de cabelos que alguém pode ter para ser enquadrado na categoria dos calvos? Cem fios? Duzentos fios? Mil fios? Qual o número que divide os calvos dos não-calvos?
Nota-se que a resposta é impossível. Pode-se, porém, recorrer à genética, e dizer que calvo é aquele que apresenta o gene da calvície, mesmo que os cabelos ainda não tenham começado a cair.
Quanto à anencefalia, é impossível recorrer à genética para definir um anencéfalo. Não se conhece um gene responsável pela anencefalia. Ao que tudo indica, ela é uma má-formação adquirida, e não congênita. Assim, como definir a anencefalia? Ausência total do cérebro, ou ausência de uma parte considerável do cérebro? Qual é a máxima parte do cérebro que pode estar presente em um bebê para que ele ainda seja considerado anencéfalo?
Essa pergunta simplesmente não tem resposta. Alguns autores têm proposto o uso do termo “meroanencefalia” para exprimir a ausência parcial do encéfalo(3).
Como a chamada anencefalia admite vários graus, a sobrevivência do bebê anencéfalo pode variar muito. Ele pode morrer ainda no útero materno. Pode viver sete minutos após o nascimento, como Maria Vida, filha de Gabriela Oliveira Cordeiro (Teresópolis -RJ), vinte horas como Thalles, filho de Janaína da Silva César (Brasília – DF), quatro dias, como Pedro, filho de Mara Couto dos Santos Monteiro (Niterói – RJ), ou três meses, como Maria Teresa, filha de Ana Cecília Araújo Nunes (Fortaleza – CE).
O Comitê de Bioética do Governo Italiano informa que “foi relatado um caso único de sobrevivência até 14 meses e dois casos de sobrevivência de 7 a 10 meses, sem recorrer à respiração mecânica“(4).
Há ainda o conhecido caso da menina Manuela Teixeira, de Sobradinho (DF), que teve seu aborto recomendado aos sete meses por uma Promotoria de Justiça do Distrito Federal. O diagnóstico era de acrania (ausência de calota craniana). Se a criança houvesse morrido ao ser expulsa, o aborto teria sido consumado. No entanto, a criança não morreu ao sair da mãe, embora essa fosse a vontade dos médicos. Eis as palavras da mãe Gonçala Teixeira:
“Os médicos acreditavam que o parto induzido iria acelerar a morte do bebê.[sic!] Eles não deixaram nem eu amamentar pois diziam que ele ia morrer logo”(5).
As palavras de Gonçala revelam o dolo do procedimento dos médicos, sua intenção de acelerar a morte da criança, em outras palavras, o “animus necandi“. Manu (ou Manuela) nasceu com 1780 g e não tinha ausência total do crânio, como os médicos previam. Parte do crânio não existia e o cérebro estava exposto.
Contrariando as expectativas, Manu já fez dois aniversários. Suas roupas denunciam as deficiências. Aos dois anos e meio, veste roupas de um bebê de oito meses. Com um desenvolvimento físico inferior ao de sua idade, Manu não fala, não anda e não há comprovação de que ela é capaz de enxergar. As pálpebras da menina permanecem quase o tempo todo fechadas.
Todos os problemas não ofuscam o amor de Gonçala e de Renato pela filha. Hoje o casal se surpreende com cada reação que a criança tem. Gonçala beija, abraça e diz que Manu é sua bonequinha. “Ela adora tomar banho e vibra todas as vezes que damos o leite da tarde’’, conta. Quando chega perto da mãe, a criança move discretamente o rosto e abre a boca, mostrando os dois dentinhos que nasceram. “Sei que ela me reconhece. Se ouve minha voz, começa a se mexer’’, diz (6) .
Manuela só viria a morrer com três anos de nascida, no dia 14 de setembro de 2003. Seus pais sepultaram-na no cemitério de Brazlândia (DF) (7).
Pergunta-se: Manuela era ou não era anencéfala? Seu cérebro rudimentar não foi capaz de mantê-la viva mais do que três anos após o nascimento. Mas ela teve vigor suficiente para sobreviver a uma tentativa de aborto!
Manuela era anencéfala? Ou talvez fosse melhor classificá-la como meroanencéfala (com ausência de parte do encéfalo)?
Como não se sabe ao certo sequer definir o que é um bebê anencéfalo, a ação em curso no Supremo Tribunal Federal (ADPF 54) para declarar legal o aborto de tais bebês deveria ser rejeitada pela simples indeterminação do objeto. Um objeto indeterminado não pode ser apreciado. Por exemplo: julgar se as pessoas calvas têm direito à vida, se os anões devem ser condenados à morte, se os feios devem ser confinados em prisões… Calvos, baixos, feios… são conceitos imprecisos. A simples imprecisão impede que se entre no mérito da causa.
2. O que é “morte encefálica”?
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), autora da ADPF 54, usa como argumento a Lei 9434, de 3/2/1997 (conhecida como Lei dos Transplantes) que “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências”:
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução n.º 1.480 de 08/08/1997, estabeleceu critérios para a caracterização da “morte encefálica”. Em seu segundo “considerando”, a resolução diz que “a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte“. O último dos “considerando” – e isto é muito importante – afirma que “ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros“. O artigo 3º dessa resolução diz textualmente: “a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida“.
Hoje em dia são abundantes na literatura médica as críticas aos critérios adotados para a chamada “morte encefálica”. Segundo vários pesquisadores, tais critérios seriam apenas um prognóstico (o paciente está prestes a morrer), mas não um diagnóstico (o paciente já morreu). Argumentam que o critério da chamada morte encefálica só foi introduzido para justificar a remoção precoce de órgãos vitais para fins de transplante.
No entanto, ainda que consideremos válidos os critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, salta aos olhos que não se pode concluir que o anencéfalo é um ente humano “morto” simplesmente porque não emite ondas cerebrais. Com efeito, ao se referir à morte, a Resolução fala em uma “parada total e irreversível das funções encefálicas”. Ora, só pode parar aquilo que está em movimento. Só pode morrer o que está vivo.
Note-se que o Conselho Federal de Medicina não se refere à ausência de funções encefálicas, mas à sua perda, à sua parada. É, portanto, pressuposto essencial para passar pelo evento denominado morteque o ente humano tenha estado anteriormente vivo.
Se assim não fosse, chegaríamos à absurda conclusão de que um nascituro de menos de seis semanas está “morto” por não emitir ondas cerebrais (8). Se ele não as emite, é pelo simples fato de seu cérebro ainda não ter sido formado. A vida humana, porém, está presente desde a concepção, e é a partir desse momento (e não a partir da emissão de ondas cerebrais) que a lei põe a salvo os direitos do nascituro (art. 2º, Código Civil). É, portanto, um erro grave servir-se da Lei 9434, de 3/2/1997 e da Resolução n.º 1.480 de 08/08/1997 do CFM, para concluir que o anencéfalo está “morto”.
Note-se ainda que tais critérios não são aplicáveis com segurança a crianças “menores de 7 dias e prematuros“. Com maior razão, não se podem aplicar tais critérios à criança que ainda não nasceu.
3. O anencéfalo é um “natimorto cerebral”?
Por incrível que pareça, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou em 08 de setembro de 2004, uma Resolução (9) que permite arrancar os órgãos de recém-nascidos anencéfalos mesmo antes que eles estejam mortos, ou seja, com o tronco cerebral ainda funcionando.
Esta resolução confirma o Parecer n. 24, de 9 de maio de 2003, do conselheiro Marco Antônio Becker (10), que traz a seguinte recomendação: “uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá proceder ao transplante de órgãos do anencéfalo após a sua expulsão ou retirada do útero materno, dada a incompatibilidade vital que o ente apresenta, por não possuir a parte nobre e vital do cérebro, tratando-se de processo irreversível, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante [grifo nosso]”.
Já no início de 2004, o médico Dr. Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, CRM-PI 402, criticava duramente o parecer (agora transformado em resolução):
“Trata-se de decisão ética das mais difíceis na prática clínica considerar como apto para a doação de órgão recém-nascido com o tronco encefálico ‘funcionante’, não importa quanto tempo, portanto, vivo. O próprio CFM, na resolução que dispõe sobre a morte encefálica define alguns pontos que não devem suscitar dúvidas para a sociedade quanto aos critérios de um ente morto. Com esse propósito, convém enfatizar que o anencéfalo, mesmo com a baixa expectativa de vida, detém tronco encefálico, respira após o nascimento, esboça movimentos e, na condição de ser vivente, a ninguém é dado o direito de praticar homicídio, promovendo a retirada de órgãos para serem transplantados (COSTA, Sérgio Ibiapina F. Anencefalia e Transplante. São Paulo: Revista da Associação Médica Brasileira, jan./mar. 2004, v. 50, n. I, p. 10).
Também o Dr. Herbert Praxedes, em 10 de setembro de 2004, escreveu criticando duramente a novíssima resolução do Conselho Federal de Medicina:
“Em 20 de dezembro de 1991 eu e mais 80 professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense enviamos ao Conselho Federal de Medicina um abaixo assinado em que protestávamos contra a pretensão daquele Conselho de propor lei que liberaria o aborto para gestações de fetos que apresentassem alguma má-formação, o que, em bom português, se chama de aborto eugênico. Apesar de nunca termos recebido qualquer resposta do CFM a idéia, ao que parecia, tinha sido abandonada. Engano meu! O CFM, 13 anos depois, volta à carga, desta vez com uma Resolução em que permite, isto é, torna lícita a retirada de órgãos de crianças anencefálicas, nascidas vivas, desde que com a anuência de seus pais. Para a pesquisa em seres humanos a lei declara que há necessidade da assinatura, pelo ser, objeto da pesquisa, de um termo de consentimento Livre e Esclarecido. Será que aos pais aos quais isto venha ser proposto, e que, eventualmente, venham consentir no uso de seus filhos como doadores de órgãos, será dito claramente que essa retirada de órgãos será feita com a criança viva? Que médico se prestará a tão sinistro mister? Será o Beslan brasileiro. Deus nos acuda!” (Dr. Herbert Praxedes – Niterói – RJ, CRMRJ 52.00585-7, Telefone: (21) 2711-7793 – Fax: (21) 2610-7147)
A Resolução n. 1.752/2004 do CFM afirma que “os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais)“. Ora, nas palavras do Dr. Dernival da Silva Brandão (CRM 52 00471.1) (11), essa resolução é uma “excrescência”. De fato, não existe um “natimorto cerebral”. Um bebê é natimorto se nasceu morto. Caso contrário, é um nascido vivo. Não há uma terceira hipótese. A ausência de um cérebro não autoriza a falar de um “natimorto cerebral”, assim como a ausência de um braço não nos permite falar de um “natimorto braquial”, e a ausência de um rim não nos permite falar em “natimorto renal”.
No caso, o Conselho Federal de Medicina extrapolou da atribuição que lhe conferiu a Lei dos Transplantes (Lei 9434/1997). Em nenhum momento a lei utiliza a expressão “morte cerebral” (nem “morte cortical”), o que daria a entender que a simples parada de funcionamento do cérebro (ou do córtex cerebral) seria um sinal suficiente de morte. A lei sempre fala em “morte encefálica” (12), o que significa quetodo o encéfalo (incluindo aí o tronco cerebral) deve parar de funcionar para que um paciente seja considerado morto.
Na Resolução 1.752/2004, o CFM mudou, a seu bel-prazer, o conceito de morte: de morte encefálica para morte cerebral (ou cortical), contrariando o estabelecido em lei. Tal resolução, que na verdade autoriza um homicídio de recém-nascidos anencéfalos, não tem qualquer valor jurídico, pois nem sequer serve para completar algo deixado em branco por uma lei. O médico que resolver extrair órgãos vitais de um anencéfalo recém-nascido para fins de transplante, ainda que tenha a anuência dos pais, responderá por crime de homicídio. Aliás, a própria Lei de Transplantes impõe sanções para a remoção de órgãos e tecidos em desacordo com essa lei. Vejamos a gravidade da pena imposta para o caso:
Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei:
[…]
§ 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte:
Pena – reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa.
Note-se que essa punição é mais severa que a prevista para o homicídio simples no artigo 121 do Código Penal: reclusão de 06 (seis) a 20 (anos). Além de a pena mínima de reclusão ser maior (oito anos em vez de seis anos), aplica-se também a pena de multa. E mais: não é preciso que o agente queira a morte da vítima. Basta que a morte resulte de sua conduta para que o crime esteja configurado!
4. Os sinais de vida de um anencéfalo
Vale a pena transcrever aqui um trecho de um manual de “Neurologia Infantil” de autoria de ARON DIAMENT (13) e SAUL CYPEL (14), descrevendo a anencefalia:
A MF (15) consiste na ausência ou formação defeituosa dos hemisférios cerebrais pelo não fechamento do neuroporo anterior […]. Geralmente, a criança nasce fora do termo, às vezes com poliidrâmnios (16) e seu período de vida é curto: dias ou até poucas semanas, como já vimos em alguns casos (17) […]. Responde a estímulos auditivos, vestibulares e dolorosos. Apresenta quase todos os reflexos primitivos dos RN (18). Além de elevar o tronco, a partir da posição em decúbito dorsal, quando estendemos ou comprimimos os membros inferiores contra o plano da superfície em que está sendo examinada (manobra de Gamstorp) (19).
Sobre o anencéfalo recém-nascido, assim se pronuncia Eugene F. Diamond, M.D, Professor da “Pediatrics Loyola University Stritch School of Medicine”:
O anencéfalo não é de fato ausente de cérebro, uma vez que a função do tronco cerebral está presente durante o curto período de sobrevida. Muito pouco se conhece sobre a função neurológica no recém-nascido anencéfalo. Um recente estudo em profundidade indica que eles estão funcionalmente mais próximos dos recém-nascidos normais do que de adultos em estado vegetativo crônico (20) [grifo nosso].
Acerca da consciência do anencéfalo, vale a pena transcrever o seguinte trecho do já citado documento do Comitê de Bioética do Governo Italiano:
O encéfalo do recém-nascido parece hoje comparável cada vez menos a um cérebro adulto em miniatura, principalmente pelas funções da consciência e do contato com o ambiente, e cada vez mais comparável a um órgão em formação com potencialidades variáveis. A perda ou a falta de uma parte do cérebro durante a fase de desenvolvimento não é comparável à perda da mesma parte depois que o desenvolvimento tenha-se acabado completamente.
Essas considerações têm particular relevo na avaliação das capacidades do anencéfalo.
Não se trata, obviamente, da possibilidade por parte do tronco de suprir as funções do córtex faltante, mas de admitir que a neuroplasticidade do tronco poderia ser suficiente para garantir ao anencéfalo, pelo menos, nas formas menos graves, uma certa primitiva possibilidade de consciência. Deveria, portanto, ser rejeitado o argumento que o anencéfalo enquanto privado dos hemisférios cerebrais não está em condições, por definição, de ter consciência e provar sofrimentos (21) [grifo nosso].
No mesmo sentido posiciona-se Dr. Rodolfo Acatauassú Nunes, Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Cirurgia Geral – setor Torácico pela UFRJ e Livre-Docente em Cirurgia Torácica pela UFERJ:
A questão dessas crianças manterem ou não algum tipo de relacionamento com o mundo exterior ou experimentarem sensações, mesmo na ausência total ou na presença de apenas resquícios dos hemisférios cerebrais, tem sido objeto de controvérsia pela possibilidade da ocorrência de um certo grau de neuroplasticidade vertical a partir de estruturas encefálicas remanescentes. Este fenômeno é tanto mais importante quanto mais precoce ocorre a malformação – no caso da anencefalia, ainda no primeiro mês -, já que as possibilidades de um rearranjo no encéfalo em formação são bastante diferentes de um encéfalo adulto, onde existem maiores limitações (SHEWMON, 1988 e SHEWMON e col. 1989). Através deste mecanismo poderiam ser explicadas certas descrições de mães que, acompanhando crianças com anencefalia, dizem perceber algum tipo de interacão com seus filhos durante a gestação ou após o parto, e que classicamente têm sido atribuídas a meros reflexos.
Um produto desta controvérsia foi a rápida mudança de posição do Conselho de Ética da Associação Médica Americana (AMA) em 1995, quanto à autorização ética da retirada de órgãos de uma criança nascida viva com anencefalia (FIRSHEIN, 1995). Na ocasião, a autorização baseava-se na assertiva que essas crianças nunca experimentaram e nunca experimentariam uma consciência. Entretanto, pouco tempo depois, e pela primeira vez em sua história, a AMA reconsiderou sua posição, voltando a proibir a doação de órgãos fora dos padrões aceitos internacionalmente para a morte encefálica, posição que persiste até hoje. Na ocasião de sua reconsideração conclamou à comunidade científica a realizar mais estudos a fim de esclarecer o verdadeiro estado da consciência nesses indivíduos (PLOWS, 1996). Também recentemente alguns autores trabalhando com Ultrasonografia 4D (ANDONOTOPO e col, 2005) e Ressonância Nuclear Magnética (CALZOLARI, 2004) têm lançado apelos para a realização de mais estudos nos fetos e crianças vivas com anencefalia com o intuito de melhor compreender a neurofisiologia desta afecção. Quem sabe o cerebelo, porção do encéfalo anteriormente ligada quase exclusivamente ao equilíbrio e agora também relacionada à cognição e emoção humana (SCHMAHMANN, 2002), poderia ter algum papel na criança com anencefalia? Alguns estudos têm mostrado a possibilidade de um razoável grau de desenvolvimento cerebelar em certas crianças com anencefalia (LOMHOLT e col., 2004 e VUKELIC e col., 2001) (22).
Podemos terminar este item transcrevendo a conclusão do Comitê de Bioética do Governo Italiano, totalmente oposta à Resolução 1.752/2004 do CFM brasileiro:
O anencéfalo é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade.
A supressão de um ser vivente não é justificável mesmo quando proposta para salvar outros seres de uma morte certa (23).
5. O aborto ajudaria a gestante?
Constitui simplismo dizer que a antecipação da morte do bebê anencéfalo, por si só, traria um alívio para a mãe. Lamentavelmente, o que costuma ocorrer é que, após um exame médico, a mãe se vê literalmente coagida a abortar. Dizem-lhe que ela não tem um filho, mas um monstro; que a criatura que ela carrega é repugnante; que não faz sentido esperar o nascimento, pois a morte é iminente; que a indicação “médica” para o caso é a “interrupção da gestação”.
Com essa enxurrada de frases chocantes, o entendimento e a liberdade da gestante ficam seriamente comprometidos. Muito melhor seria se a equipe de saúde fosse treinada para demonstrar àquela mãe o quanto sua criança, por ser gravemente doente, precisa ser amada, e o quanto cada instante é precioso na transmissão do amor, uma vez que a expectativa de vida é pequena.
Sobre isso, assim fala o já citado Prof. Eugene F. Diamond:
O reconhecimento da anencefalia “in utero” ou na enfermaria após o nascimento é inquestionavelmente traumático para os pais. Embora o período de tempo entre o reconhecimento e a morte da criança seja geralmente breve quando a diagnose é feita pós-parto, a necessidade de apoio e aconselhamento é muito mais prolongada. Embora as estratégias convencionais envolvam manter o bebê anencéfalo separado dos pais, há uma séria questão quanto aos benefícios derivados de uma estratégia de negação. A experiência com fornecimento de apoio aos pais das crianças com defeitos graves tende geralmente a indicar que há efeitos salutares de os pais afirmarem seu parentesco com a criança dando um nome ao bebê e abraçando-o antes da morte. O processo de luto quando assumido, ao invés de suprimido, pode ser uma parte integral da aceitação e cura definitivas (24) [grifo nosso].