Sepultura para bebês

(Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito – Cat. 2300)

Em 2019, a 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) negou a uma mãe o direito de ser indenizada por ter o hospital incinerado o corpo de seu filho, morto por aborto espontâneo, sem o consentimento dela. O argumento usado foi o de que o bebê pesava “apenas” 182 gramas, peso este compatível com 19 semanas de vida. Com um tamanho e uma idade tão pequenos, o hospital não era obrigado a elaborar a Declaração de Óbito (DO), nem a devolver o corpo à mãe. Eis um trecho da ementa do acórdão:

DESCARTE DO FETO. POSSIBILIDADE. OBSERVÂNCIA À RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. DEVER DE INDENIZAR. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA[1].

A recusa de lavrar a Declaração de Óbito e de devolver o corpo à mãe, baseada unicamente no tamanho, peso ou idade do bebê, parece enquadrar-se naquilo que o Papa Francisco tem chamado de “cultura do descartável”, que é mais um aspecto da “cultura da morte” denunciada pelo Papa São João Paulo II.

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No entanto, ao contrário do que decidiu o TJDFT, há normas específicas respeitando o desejo dos pais de dar sepultura às suas crianças natimortas.

Que diz o direito?

A Lei de Registros Públicos (Lei 6015/1973) prevê o registro de bebês nascidos mortos (natimortos) e destina a eles um livro particular: o “C Auxiliar”:

Art. 33. Haverá, em cada cartório, os seguintes livros:

[…]

V – “C Auxiliar” – de registro de natimortos;

Art. 53. No caso de ter a criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será não obstante, feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito.

      • 1º No caso de ter a criança nascido morta, será o registro feito no livro “C Auxiliar”, com os elementos que couberem.

[…]

Art. 54. O assento do nascimento deverá conter:

[…]

5º) a declaração de que nasceu morta, ou morreu no ato ou logo depois do parto;

Como se vê, a Lei não faz distinção de idade, peso ou tamanho das crianças natimortas cujo registro é obrigatório. Tal distinção foi feita pela Resolução nº 1.779/2005 do Conselho Federal de Medicina[2]:

Art. 2º – Os médicos, quando do preenchimento da Declaração de Óbito, obedecerão às seguintes normas:

[…]

2) Morte fetal:

Em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a Declaração de Óbito quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 (quinhentos) gramas e/ou estatura igual ou superior a 25 cm.

No entanto, mesmo que o corpo da criança esteja abaixo dessas especificações, nem por isso o desejo dos pais é irrelevante. É o que se lê no manual de instruções para preenchimento da declaração de óbito, do Ministério da Saúde:

Quando não emitir a Declaração de Óbito

A DO não deve ser emitida nas seguintes condições:

      • Óbito fetal, se a gestação teve duração menor que 20 semanas E se o feto tiver peso corporal menor que 500 g E estatura menor que 25 cm:
        • apenas se a família requerer a DO, será facultada ao médico a emissão do documento para fins de sepultamento. Os dados dessa DO devem ser registrados no SIM [Sistema de Informações sobre Mortalidade][3].

Uma resolução da ANVISA (Resolução RDC Nº 306, de 2004), embora considere os cadáveres de tais crianças como “resíduos de serviços de saúde” (RSS), leva em conta o caso em que os familiares fizerem a requisição deles.

7 – GRUPO A3

7.1 – Peças anatômicas (membros) do ser humano; produto de fecundação sem sinais vitais, com peso menor que 500 gramas ou estatura menor que 25 centímetros ou idade gestacional menor que 20 semanas, que não tenham valor científico ou legal e não tenha havido requisição pelo paciente ou seus familiares.

7.1.1 – Após o registro no local de geração, devem ser encaminhados para:

I – Sepultamento em cemitério, desde que haja autorização do órgão competente do Município, do Estado ou do Distrito Federal ou;

II – Tratamento térmico por incineração ou cremação, em equipamento devidamente licenciado para esse fim[4].

Daí se depreende que, mesmo em se tratando de natimortos abaixo dos parâmetros de idade, peso e comprimento:

  1. Não há previsão para o descarte quando tiver havido requisição deles por seus familiares (ao contrário do que decidiu o TJDFT).
  2. Mesmo que os familiares não tenham requisitado os cadáveres, é possível sepultá-los em cemitério, bastando autorização do órgão competente do Município, do Estado ou do Distrito Federal.

Conclusão

“Os corpos dos fieis defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e na esperança da ressurreição. O enterro dos mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2300).

Convém ensinar aos pais que sofreram a dor da morte de um filho em gestação, que eles têm o direito de receber o corpo do bebê e de dar-lhe as honras fúnebres.

Ainda que a Resolução CFM n. 1.779/2005 fale da obrigação de emitir Declaração de Óbito de crianças natimortas “grandes”, não há proibição de emitir tal declaração para as crianças “pequenas”. E o desejo dos pais deve ser respeitado.

De posse da Declaração de Óbito, os pais podem, em conformidade com a Lei de Registros Públicos (art. 77), fazer o sepultamento da criança.

Obstáculos a vencer

A “cultura do descartável” marca sua presença nos ambientes hospitalares, mesmo em instituições católicas. É comum que os profissionais de saúde tentem convencer os pais a não requererem o corpo do bebê natimorto “pequeno”, alegando: 1) que o sepultamento daria um desnecessário trabalho extra; 2) e que seria conveniente enviar o cadáver para o laboratório a fim de submetê-lo a um exame anamatopatológico (de lá ele não voltará) para verificar a causa de sua morte.

Atualmente, os pais que querem sepultar seus bebês devem estar preparados para enfrentar uma forte oposição justamente por parte daqueles que mais deveriam ajudá-los: os médicos e os enfermeiros. Convém, portanto, investir na formação bioética destes últimos.

Anápolis, 3 de abril de 2023

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

[1] TJDFT. Acórdão 1197117. Apelação Cível 0019396-03.2014.8.07.0001. Rel. Carlos Rodrigues. Julg. 21 ago. 2019.

[2] RESOLUÇÃO CFM nº 1.779/2005(Publicada no D.O.U., 05 dez 2005, Seção I, p. 121) Regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da Declaração de Óbito. Revoga a Resolução CFM n. 1601/2000. [https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2005/1779]

[3] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Declaração de Óbito: manual de instruções para preenchimento. Brasília, 2022, [https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/svsa/vigilancia/declaracao-de-obito-manual-de-instrucoes-para-preenchimento.pdf]. p. 17. Grifo nosso.

[4] https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2004/res0306_07_12_2004.html. Grifos nossos.

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