(“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – Jo 8,32)
Em novembro de 1993, todo o clero diocesano de Anápolis reuniu-se em Uruaçu (GO) para um retiro pregado pelo bispo Dom José Chaves, amicíssimo de Dom Manoel Pestana Filho, na época nosso bispo diocesano.
Lembro-me de Dom José elogiar o Papa João Paulo II por três obras: A primeira era o novo Código de Direito Canônico (promulgado em 1983). A segunda era o Catecismo da Igreja Católica (editado pela primeira vez em 1992). A terceira era a encíclica “Veritatis splendor” (O esplendor da verdade), publicada em 6 de agosto de 1993 sobre “algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja” (VS 5)
No entanto, Dom José tinha razão. Embora não muito extensa, a “Veritatis splendor” trata de maneira lapidar de um assunto da máxima importância: o que devemos fazer de bom para alcançarmos a vida eterna (cf. Mt 19,16). A partir dessa pergunta do jovem rico a Jesus, o Santo Padre inicia seu discurso sobre a Moral cristã e adverte sobre uma crise gerada por “correntes de pensamento que acabam por desarraigar a liberdade humana da sua relação essencial e constitutiva com a verdade” (VS 4). Segundo o Papa, “a liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu libertador: Ele ‘nos libertou para que permaneçamos livres’ (Gl 5,1)” (VS 86). E prossegue: “Cristo revela antes de mais, que o reconhecimento honesto e franco da verdade é condição para uma autêntica liberdade: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’ (Jo 8,32)” (VS 87).
No futuro, o Papa escreveria obras que ficaram mais famosas, como, por exemplo, a encíclica “Evangelium vitae” (1995) sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana, que contém uma condenação “ex cathedra” (infalível) de todo aborto diretamente provocado, da eutanásia e do suicídio. Mas enquanto essa encíclica restringe-se ao respeito à vida humana, a “Veritatis splendor” trata dos próprios fundamentos da Moral e das doutrinas errôneas que os ameaçam. Nesse sentido, ela pode ser considerada a obra-prima de São João Paulo II. Neste ano de 2018, a encíclica “O esplendor da verdade” completa seu jubileu de prata. Passados vinte e cinco anos, os ensinamentos e advertências nela contidos parecem ter caído no esquecimento, mas permanecem atualíssimos. Vejamos alguns deles.
O ato bom deve ser conforme a verdade
“O agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do homem e exprimem, desta forma, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último, isto é, o próprio Deus: o bem supremo, no qual o homem encontra a sua felicidade plena e perfeita” (VS 72).
Não basta a boa intenção para que um ato seja bom
“De fato, é frequente – escreve o Aquinate [Santo Tomás de Aquino] – que alguém aja com reta intenção mas inutilmente, porque lhe falta a boa vontade: como no caso de alguém que roubasse para alimentar um pobre, a intenção é certamente boa, mas falta a devida retidão da vontade. Consequentemente nenhum mal, mesmo se realizado com reta intenção, pode ser desculpado: ‘Como aqueles que dizem: Façamos o mal, para vir o bem. Desses, é justa a condenação’ (Rm 3,8)” (VS 78).
Não basta a previsão das consequências
A encíclica condena o teleologismo, que se divide em consequencialismo e proporcionalismo. “O primeiro [consequencialismo] pretende deduzir os critérios de retidão de um determinado agir somente a partir do cálculo das consequências que se prevê em derivar da execução de uma opção. O segundo [proporcionalismo], ponderando entre si os valores e bens procurados, centra-se mais na proporção reconhecida entre os efeitos bons e maus, em vista de um ‘maior bem’ ou do ‘menor mal’ efetivamente possível numa situação particular” (VS 75).
“As teorias éticas teleológicas (proporcionalismo, consequencialismo) […] consideram que nunca se poderá formar uma proibição absoluta de comportamentos determinados” (VS 75). “Porém, tais teorias não são fiéis à doutrina da Igreja, já que creem poder justificar como moralmente boas, escolhas deliberadas de comportamentos contrários aos mandamentos da lei divina e natural” (VS 76).
O caso da craniotomia
Há um caso que ilustra bem o que foi dito acima. Antigamente, quando a cesariana era uma operação arriscada, com alta taxa de mortalidade materna, parecia que, diante de uma gestante de bacia estreita com o parto já iniciado, o único meio de salvá-la seria matar o bebê, perfurando-lhe o crânio e aspirando-lhe a massa cerebral. Esse procedimento era chamado craniotomia. O Santo Ofício – hoje Congregação para a Doutrina da Fé – foi então consultado: “Pode-se ensinar com segurança nas escolas católicas que é lícita a operação chamada craniotomia quando, omitindo-a, morreriam a mãe e o filho e, ao invés, executando-a, a mãe seria salva e o bebê morreria?” A resposta, de 28 de maio de 1884, foi: “não se pode ensinar com segurança”.
A pergunta foi feita baseando-se no cálculo das consequências (morte da criança e da mãe ou morte apenas da criança), mas a resposta foi negativa. Por quê?
“As consequências previsíveis pertencem àquelas circunstâncias do ato que, embora podendo modificar a gravidade de um ato mau, não podem, porém, mudar a sua espécie moral” (VS 77). No caso da craniotomia, que é morte direta de um ser humano inocente, nem sequer a previsão de que a vida da mãe seria poupada serve de justificativa.
O caso do cerco de Jerusalém
Da mesma forma, não se pode justificar a atitude, narrada pelo historiador Flávio Josefo, daquela mulher Maria, filha de Eleazar, que, durante o cerco de Jerusalém pelos romanos (70 d.C.), matou, assou e devorou seu filho recém-nascido a fim de saciar a sua fomeO caso da bolsa rota
Analogamente, não se justifica a atitude de médicos que, diante da ruptura precoce da bolsa amniótica, decidem expulsar a criança pré-matura (causando assim a sua morte), alegando que, se não fizerem tal aborto, a mãe morrerá de infecção generalizada (septicemia). Na verdade, a infecção pode ser controlada com antibióticos até a morte natural da criança. Mas ainda que de fato a mãe fosse morrer se o aborto não fosse feito (caso puramente imaginado), tal morte direta de um inocente não seria justificada.
Há atos intrinsecamente maus porque seu objeto é mau
“Ora, a razão atesta que há objetos do ato humano que se configuram como ‘não ordenáveis’ a Deus, porque contradizem radicalmente o bem da pessoa, feita à sua imagem. São atos que, na tradição moral da Igreja, foram denominados “intrinsecamente maus” (intrinsece malum): são-no sempre e por si mesmos, ou seja, independentemente das posteriores intenções de quem age e das circunstâncias. Por isso, sem querer minimamente negar o influxo que têm as circunstâncias e sobretudo as intenções sobre a moralidade, a Igreja ensina que existem atos que, por si e em si mesmos, independentemente das circunstâncias, são sempre gravemente ilícitos, por motivo do seu objeto” (VS 80).
A anticoncepção como ato intrinsecamente mau
“Sobre os atos intrinsecamente maus, e referindo-se às práticas contraceptivas pelas quais o ato conjugal se torna intencionalmente infecundo, Paulo VI ensina: ‘Na verdade, se, por vezes, é lícito tolerar um mal menor com o fim de evitar um mal mais grave ou de promover um bem maior, não é lícito, nem mesmo por razões gravíssimas, praticar o mal para conseguir o bem (cf. Rm 3,8), ou seja, fazer de um ato positivo de vontade o que é intrinsecamente desordenado e, portanto, indigno da pessoa humana, mesmo com o intuito de salvaguardar ou promover bens individuais, familiares ou sociais’ (Humanae vitae, 14)” (VS 80).
Ou seja, a anticoncepção não é lícita em nenhum caso, nem sequer se praticada para evitar uma contenda no casal ou para preservar a paz na família.
Se houvesse exceções para praticar tais atos, que sentido teria o martírio?
“Inumeráveis os mártires que preferiram as perseguições e a morte, a cumprir o gesto idólatra de queimar incenso perante a estátua do Imperador (cf. Ap 13,7-10). […] A Igreja propõe o exemplo de numerosos santos e santas que testemunharam e defenderam a verdade moral até ao martírio ou preferiram a morte a um só pecado mortal” (VS 91). “O martírio desautoriza como ilusório e falso, qualquer ‘significado humano’ que se pretendesse atribuir, mesmo em condições excepcionais, ao ato em si próprio moralmente mau” (VS 92).
Maria, Mãe de misericórdia
Na conclusão da encíclica, o Santo Padre propõe Maria como “sinal luminoso e exemplo fascinante da vida moral” e cita Santo Ambrósio: “O primeiro ardente desejo de aprender dá-o a nobreza do mestre. E quem mais nobre do que a Mãe de Deus? Ou mais esplêndida do que aquela que foi eleita pelo próprio Esplendor?” […] “Também a nós dirige a ordem dada aos servos em Caná da Galileia durante o banquete de núpcias: ‘Fazei o que ele vos disser’ (Jo 2,5)” (VS 120).
Anápolis, 7 de maio de 2018.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis