Testamento pessoal

(um testamento sobre a “pessoa”)

“Os mortos fecham os olhos para abrirem os olhos dos vivos” – dizia Dom Manoel Pestana Filho. A morte súbita e prematura de Dom Dilmo Franco de Campos, bispo auxiliar de Anápolis, com apenas 52 anos, serve-nos de sinal de que nossos dias estão contados. E enquanto temos tempo, devemos fazer o bem a todos (cf. Gl 6,10).

Antes que eu seja chamado para comparecer ao tribunal de Cristo para ser julgado (cf. 2Cor 5,10), deixo aqui meu testamento pessoal. Chama-se pessoal porque se refere ao atributo de pessoa, que eu desejaria que fosse reconhecido para cada indivíduo humano, desde a concepção até a sua morte. Desejaria que tal reconhecimento se desse em quatro âmbitos: na Filosofia, no Magistério da Igreja, no Direito brasileiro e no Direito Canônico.

  1. Na Filosofia

A definição clássica de pessoa é a de Severino Boécio (480-524), retomada por Santo Tomás de Aquino (1225-1274): pessoa é a substância indivídua de natureza racional. Um cão é uma substância indivídua, mas, por não ter natureza racional, não é pessoa. O homem, graças à sua alma racional, tem natureza racional: é pessoa.

                 S. Tomás de Aquino

Os grandes doutores do século XIII, como Santo Alberto Magno (1206-1280) e Santo Tomás de Aquino, negaram que o indivíduo humano recém-concebido fosse pessoa. Segundo eles, a alma racional, que caracteriza a pessoa humana, seria criada e infundida por Deus quarenta dias após a concepção (para o embrião masculino) ou 90 dias após a concepção (para o embrião feminino). Defendiam a tese da animação mediata ou retardada e não a da animação imediata, defendida por Lactâncio (260-330 aprox.), S. Clemente de Alexandria (150-215 aprox.), S. Gregório de Nissa (335-394) e S. Máximo Confessor (580-662), segundo a qual a criação e infusão da alma racional se dá no mesmo momento em que o embrião é concebido.

O que levou S. Tomás e S. Alberto a negarem a presença da alma racional no embrião humano recém-concebido foi:

a) a crença errônea, derivada de Aristóteles, de que o embrião recém-concebido era uma “massa informe”[1], sem a organicidade exigida para presença de uma alma racional;

b) o desconhecimento dos argumentos dos Padres da Igreja (sobretudo São Máximo Confessor) em favor da animação imediata.

Convém ressaltar que, mesmo defendendo a animação retardada, S. Tomás e S. Alberto nunca admitiram o aborto de um embrião ainda não animado por uma alma racional. Matar o embrião em tal estágio da gravidez seria um pecado gravíssimo não contra a vida de uma pessoa, mas contra a dignidade da procriação.

Espero ter demonstrado, em minha tese doutoral em Bioética[2], que a animação retardada se mostrou incompatível com os dados atuais da embriologia e com o respeito ao princípio de causalidade. Um embrião com uma alma puramente “vegetativa” não poderia, por si só, desenvolver-se até tornar-se apto à infusão de uma alma sensitiva e, depois, de uma alma racional. A alma vegetativa responderia pelas funções de nutrição e crescimento, mas não poderia produzir órgãos responsáveis pela sensibilidade (nervos) ou pela locomoção (músculos e ossos), que são próprios da alma sensitiva. Uma alma inferior não seria capaz de produzir os órgãos de uma alma superior[3] pelo simples motivo de que a perfeição do efeito não pode superar a perfeição da causa. A formação do embrião “não animado” exigia uma alma racional – a do pai – agindo através de uma potência formativa (“vis formativa”) presente no sêmen, que se supunha acompanhar o embrião até 40 ou 90 dias após a concepção, quando então ele se tornaria apto para receber uma alma racional. Hoje se sabe que, após a fecundação do óvulo (concepção), os espermatozoides restantes morrem logo em seguida. Não se pode mais recorrer à “vis formativa” para explicar a disposição do corpo do embrião para receber a alma racional. Hoje, S. Tomás e S. Alberto teriam que admitir, na falta de uma causa eficiente externa, a presença da alma racional no próprio embrião desde o momento da concepção, respondendo pelo desabrochar das funções sensitiva e racional ao longo do desenvolvimento embrionário. Em outras palavras, se os doutores do século XIII vivessem hoje, diriam que o embrião humano recém-concebido é pessoa, uma substância indivídua de natureza racional.

  1. No Magistério da Igreja

O Catecismo da Igreja Católica ensina:

               Cátedra de São Pedro

A vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento da sua existência, devem ser reconhecidos a todo o ser humano os direitos da pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida (n. 2270).

Este é o preceito moral: o indivíduo humano deve ser tratado como pessoa desde o momento da concepção. Mas a Igreja ainda não definiu se há uma pessoa desde o momento da concepção. A instrução “Donum vitae” chega a perguntar: “como um indivíduo humano não seria pessoa humana?”[4]. Mas a pergunta fica em suspenso. De fato, a animação imediata de todo indivíduo humano é uma verdade filosófica. E sobre verdades filosóficas a Igreja não costuma pronunciar-se. Porém, nada impede, em princípio, que tal verdade seja também teológica, isto é, que seja derivada do dogma da Encarnação de Cristo. De fato, a Igreja sempre ensinou que o corpo de Cristo foi animado por uma alma racional desde o primeiro instante de sua concepção, no seio da Virgem Maria. Ora, é Cristo que “manifesta plenamente o homem ao próprio homem”[5]. A animação imediata do corpo de Cristo pode então servir de modelo para a animação imediata de todos os homens, uma vez que o Verbo se fez em tudo semelhante a nós, menos no pecado (cf. Hb 4,15) Esse é o raciocínio teológico de São Máximo Confessor[6]. Quem sabe, portanto, o Magistério da Igreja poderia definir como verdade de fé que a alma racional de cada homem é criada e infundida por Deus desde o momento da concepção? Assim ficaria fora de discussão que todo indivíduo humano é pessoa a partir da concepção.

  1. No Direito brasileiro
              Congresso Nacional Brasileiro

Diz o artigo 2º do atual Código Civil, de 2002: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Logo, o nascituro ainda não é pessoa. Será pessoa, isto é, sujeito de direitos, se nascer com vida.

Continua o mesmo artigo: “mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Logo, o nascituro tem direitos; portanto, é pessoa desde a concepção.

Essa contradição já existia no artigo 4º do antigo Código Civil de 1916, correspondente ao atual artigo 2º. É verdade que, mesmo diante dessa redação contraditória, um bom número de civilistas defende que o nascituro é pessoa. Sejam citados: Franco Montoro, Otávio Ferreira Cardoso e Silmara Juny de Abreu Chinelato e Almeida.

Mas também é verdade que o Supremo Tribunal Federal que, como se costuma dizer, “tem o direito de errar por último”, valeu-se dessa redação controvertida para dizer que o nascituro não é pessoa e que tem apenas expectativa de direitos. Eis a ementa de um lamentável acórdão da Suprema Corte, de 1983, em que o ministro relator Francisco Rezek foi vencido por seus colegas:

CIVIL. NASCITURO. PROTEÇÃO DE SEU DIREITO, NA VERDADE PROTEÇÃO DE EXPECTATIVA, QUE SE TORNARÁ DIREITO, SE ELE NASCER VIVO.[7]

Se o nascituro é pessoa desde a concepção, todo o edifício abortista desaba. Ronald Dworkin, grande defensor do direito ao aborto nos EUA, confessava que se o nascituro (que ele chamava “feto”) fosse pessoa, não seria admissível o aborto como meio para salvar a vida da gestante e muito menos quando a gravidez resultasse de estupro. Vejamos sua argumentação;

Em termos morais e jurídicos, é inadmissível que um terceiro, como um médico, mate uma pessoa inocente mesmo quando for para salvar a vida de outra.

[…]

Do ponto de vista de que o feto é uma pessoa, uma exceção para o estupro é ainda mais difícil de justificar do que uma exceção para proteger a vida da mãe. Por que se deve privar um feto de seu direito a viver e obrigá-lo a pagar com a própria vida [por] um erro cometido por outra pessoa?[8]

Em 18/07/2019, a deputada Chris Tonietto (PL/RJ) apresentou um projeto de lei, o PL 4150/2019, que corrige o artigo 2º do Código Civil para estabelecer que “a personalidade civil do ser humano começa desde a sua concepção”. Tal projeto não muda o nosso ordenamento jurídico. Apenas adequa a legislação civil ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que faz parte do direito interno brasileiro e goza de status supralegal, “estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna[9], conforme entendimento da Suprema Corte. Vejamos o que dizem alguns artigos dessa preciosa Convenção:

Art. 1º, n. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Pergunta-se: essa Convenção assegurou ou não o direito ao reconhecimento da personalidade de todo ser humano? A resposta é afirmativa, e é dada pelo artigo 3º: “Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”. Note-se que artigo 3º não faz exceção alguma a esse direito. O reconhecimento da personalidade jurídica é, portanto, um direito de toda pessoa. Mas, o que é pessoa? Segundo o artigo 1º, n. 2, “para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano”, sem distinção de vida intra ou extrauterina. Logo, “todo ser humano tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”, e o Código Civil, que é hierarquicamente inferior à Convenção, precisa ser corrigido para reconhecer a personalidade do ser humano concebido, mas ainda não nascido.

O PL 4150/2019, se aprovado, corrigirá o Código Civil, que é uma lei infraconstitucional. Mas seria ótimo se a própria Constituição reconhecesse que todos nós somos pessoas desde a concepção. O substitutivo da PEC 181/2015, do relator Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), aprovado na Comissão Especial em 08/11/2017, pretendia alterar um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, elencados no artigo 1º da Constituição Federal. Atualmente o inciso III do artigo 1º diz que um desses fundamentos é “dignidade da pessoa humana”. O substitutivo aprovado declarava que um dos fundamentos de nosso país é “dignidade da pessoa humana, desde a concepção”. Em 05/04/2022, a Presidência da Câmara determinou a criação de uma nova Comissão Especial, mas até hoje não houve nenhuma deliberação sobre o tema. Queira Deus que o PL 4150/2019 e a PEC 181/2015 sejam aprovados a fim de que não haja dúvidas de que somos pessoas desde a concepção perante o direito brasileiro.

  1. No Direito Canônico

Por estranho que pareça, o Código de Direito Canônico afirma que o homem se torna pessoa pelo Batismo:

Cân. 96 — Pelo batismo o homem é incorporado à Igreja de Cristo e nela constituído pessoa, com os deveres e os direitos próprios dos cristãos, tendo-se presente a condição deles, enquanto se encontram na comunhão eclesiástica, a não ser que se oponha uma sanção legitimamente infligida.

A redação não é feliz, porque, juridicamente, pessoa é o sujeito de direitos e deveres. E os não batizados também gozam de direitos previstos pelo próprio Código. O canonista Amadeo de Fuenmaior comenta:

O cânon não afirma que os não batizados são privados de todo direito diante da Igreja (cf. a título de exemplo, o cânon 1476, que reconhece ao não batizado o direito de ser autor nos procedimentos judiciais eclesiásticos […])[10]

E o canonista Pe. Jesus Hortal assim comenta:

Cremos que teria sido preferível distinguir entre pessoa e fiel, numa distinção paralela à que se costuma fazer, nas legislações civis, entre pessoa e cidadão de uma nação.

Os não cristãos têm direito, por exemplo, em face da Igreja, a que ela lhes anuncie o Evangelho e a pedir justiça perante os tribunais eclesiásticos nas causas em que estes são competentes[11].

As crianças não batizadas têm direitos, a começar pelo direito à vida. Tanto é assim que cânon 1398 pune com excomunhão latae sententiae o crime do aborto, que é sempre cometido contra tais crianças.

Seria, portanto, oportuno que no Código de Direito Canônico fosse corrigida a redação do cânon 96 para afirmar que todo homem é pessoa desde que é concebido, e que se torna cristão quando é batizado.

Anápolis, 7 de outubro de 2024.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Vice-presidente do Pró-Vida de Anápolis.

[1] ARISTÓTELES, De historia animalium”, IX, 3, 583 b

[2] Pe. Luiz Carlos Lodi da CRUZ. A alma do embrião humano: a questão da animação e o fundamento ontológico da dignidade de pessoa do embrião. Anápolis: Múltipla, 2013

[3] Cf. S.J. HEANEY, “Aquinas and the presence of the human rational soul in the early embryo”, The Thomist 56 (1)1992, p. 26

[4] CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Donum vitae, 1987, I.1

[5] CONC. VAT. II, Gaudium et Spes, n. 22.

[6] Cf. S. MÁXIMO, Ambigua, 42, PG 1341 B-C.

[7] Recurso Extraordinário 99038/MG – Rel. Francisco Rezek, Julgamento: 18 out. 1983, Segunda Turma, DJ 05 out.1984, p.16.452.

[8] Ronald DWORKIN. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 131-132.

[9] Recurso Extraordinário 349703/RS, Rel. Ayres Britto, julgado pelo Pleno em 03 dez 2008, publicado no DJE em 05 junho 2009.

[10] CODICE DI DIRITTO CANONICO e leggi complementari commentato. 2 ed. Roma: Coletti a San Pietro, 2007, p. 121.

[11] CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. 23. ed. São Paulo: Loyola, 2015, p. 69.

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