No dia 05 de março de 2012, a Câmara Municipal de Anápolis (GO) aprovou em segundo turno a Proposta de Emenda n. 13/2012, do vereador Pedro Mariano (PP), que suprime o parágrafo único do inciso X do artigo 228 da Lei Orgânica do Município de Anápolis. A votação foi unânime e o plenário estava literalmente lotado de cidadãos. A proposta já havia sido aprovada em primeiro turno, também por unanimidade, no dia 22 de fevereiro de 2012.
O estranho dispositivo, retirado definitivamente da Lei Orgânica, dizia o seguinte:
Art. 228, X, parágrafo único: Caberá à rede pública de saúde, pelo seu corpo clínico, prestar o atendimento médico para prática do aborto, nos casos previstos no Código Penal.
Imagine-se o absurdo: o Município usaria verbas públicas com o fim de matar crianças. E isso em nome da “saúde”. Ora, o parágrafo feria frontalmente o direito constitucional à vida (art. 5º, caput), que não pode ser abolido sequer por emenda à Constituição Federal.
Qual o pretexto usado pelo legislador para inserir esse texto? A ideia falsa de que há dois casos em que o Código Penal “permite” a prática do aborto: (I) se não há outro meio senão o aborto para salvar a vida da gestante e (II) se a gravidez resulta de estupro. Ambas as hipóteses estão descritas no artigo 128 do Código Penal. Mas, ao contrário do que se costuma dizer, em tal artigo não há nada que indique uma “permissão” para o aborto. Ele começa com as palavras “Não se pune”. A lei penal pode estabelecer penas grandes ou pequenas de acordo com as circunstâncias em que um crime é praticado. Pode haver ainda causas – chamadas escusas absolutórias – de não aplicação da pena, por razões de política criminal. O crime permanece, a conduta continua reprovável, mas o criminoso fica isento de pena. Tais são as duas hipóteses do artigo 128 do Código Penal. É um grave erro jurídico confundir a não punição de um crime com a permissão para cometê-lo.
Se o artigo 128 do Código Penal permitisse de verdade o aborto naqueles dois casos, então ele seria flagrantemente inconstitucional. O único meio de salvar a constitucionalidade desse artigo é não interpretá-lo além daquilo que ele diz: uma mera escusa absolutória, não uma exclusão da ilicitude.
O parágrafo, agora revogado, da Lei Orgânica Municipal de Anápolis não dizia apenas que “não se pune” o aborto em dois casos. Dizia, por sua própria conta e risco, que ao Município cabia o deverde praticá-lo (e, portanto, ao cidadão, o direito de exigi-lo). Ora, isso era uma ofensa direta à Constituição. Não havia como tal dispositivo subsistir em nosso ordenamento jurídico.
Graças a Deus, esse suposto “direito-dever” de matar foi retirado de nossa Lei Orgânica. Fundamental para a vitória foi uma carta escrita pelo Bispo Diocesano Dom João Wilk e enviada a cada um dos vereadores, em apoio à proposta de emenda pró-vida.
Reação pró-aborto em nome da OAB/GO
Lamentavelmente, no dia 27 de fevereiro de 2012, Sr. Henrique Tibúrcio e Sr. Otávio Forte, respectivamente presidente da OAB/GO e presidente da Comissão de Direito Constitucional e Legislação da OAB/GO, enviaram aos vereadores de Anápolis em nome da OAB/GO (!), uma carta (Ofício Circular 005/2012/GP) solicitando que eles, em segundo turno, votassem contra a emenda pró-vida.
A argumentação usada na carta era totalmente disparatada. Segundo ambos os advogados, inconstitucional não era o parágrafo que dava à rede pública de saúde a competência para praticar abortos, mas a emenda que suprimia esse parágrafo. Pasmem: Aborto é “saúde”! Ao não fazer aborto, o Município estaria ofendendo o direito à “saúde” que a Constituição assegura a todos.
Além de abusarem de seu poder, defendendo o aborto em nome da OAB/GO, e de usarem uma argumentação totalmente descabida, as duas autoridades tiveram a indelicadeza de terminar a carta com uma ameaça aos vereadores. Eis a ameaça: “Caso […] o projeto venha a ser aprovado, a ORDEM desde já assume o compromisso social de adotar medidas jurídicas cabíveis e pertinentes ao assunto, a fim de assegurar o direito ao cidadão anapolino”.
Na votação em segundo turno, quatro vereadores usaram a palavra para manifestar seu descontentamento com a ingerência dos representantes da OAB/GO na autonomia do Poder Legislativo de Anápolis.
Transcrevo em seguida um ofício que enviei ao Sr. Henrique Tibúrcio na qualidade de advogado inscrito na OAB/GO, entidade por ele presidida.
Anápolis, 13 de março de 2012.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Of. 001/2012-PVA
Anápolis, 8 de março de 2012.
Ao Senhor Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de Goiás
Henrique Tibúrcio Peña
Rua 1121, nº 200, Setor Marista,
74 175-120 – Goiânia – GO
Assunto: Uso indevido do nome da OAB/GO para defesa da causa abortista junto aos vereadores de Anápolis.
Senhor Presidente
Escrevo na qualidade de advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás, sob o número 26544, na qualidade de eleitor do município de Anápolis e na qualidade de presidente do Pró-Vida de Anápolis, associação cuja finalidade estatutária é “promover a dignidade e a inviolabilidade da vida humana e da família e defender tais valores contra os atentados de particulares ou dos poderes públicos” (art. 1º do Estatuto).
Recebi com espanto a notícia de que Vossa Excelência, juntamente com Sr. Otávio Alves Forte, enviou em nome da OAB/GO o ofício circular n. 005/2012/GP de 27/02/2012 aos vereadores da Câmara Municipal de Anápolis tendo como assunto a “inconstitucionalidade do projeto de emenda que retira o parágrafo único do inciso X do artigo 228 da Lei Orgânica do Município de Anápolis (LOMA)”.
A leitura da carta espanta inicialmente pela falta de conhecimento jurídico. Vejamos.
O parágrafo suprimido pela emenda dizia o seguinte: “Caberá à rede pública de saúde, pelo seu corpo clínico, prestar o atendimento médico para prática do aborto, nos casos previstos no Código Penal” (art. 228, X, parágrafo único). Tal dispositivo, agora revogado, supunha erroneamente a existência de casos em que o aborto é “permitido” pelo Código Penal.
Ora, não é admissível que um advogado confunda a isenção da pena de um crime com a permissão prévia para praticá-lo. No entanto, o ofício enviado por Vossa Excelência, dizia que a retirada de tal parágrafo tinha o “intuito de impedir a rede pública municipal de promover o atendimento de saúde em relação às hipóteses de ‘aborto legal’ (o destaque é do original) previstas no Código Penal (art. 128)”.
Ocorre que em nenhum momento o artigo 128 do Código Penal “legitima” o aborto. Leiamos com atenção:
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Segundo o magistério de Ricardo Dip[1],
… a leitura do caput do mencionado art. 128 (“Não se pune etc.”) está, para logo, a sugerir que aí se acham causas isentas de apenamento ou, quando muito, excludentes da punibilidade […]. Está a cuidar-se das chamadas escusas absolutórias, causas que, excluindo a pena, deixam subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona”[2].
Esse é o mesmo entendimento de Maria Helena Diniz:
O art. 128, I e II, do Código Penal está apenas autorizando o órgão judicante a não punir o crime configurado, por eximir da sanção o médico que efetuar prática abortiva para salvar a vida da gestante ou para interromper gestação resultante do estupro. Tal isenção não elimina o delito, nem retira a ilicitude da ação danosa praticada. Suprimida está a pena, mas fica o crime[3].
Idêntica é a lição de Marco Antônio da Silva Lemos[4]
Demais disso, convém lembrar, logo de imediato, que o art. 128, CP, e seus incisos, não compõem hipóteses de descriminalização do aborto. Naquele artigo, não está afirmado que ‘não constitui crime’ o aborto praticado por médico nas situações dos incisos I e II. O que lá está dito é que ‘não se pune’ o aborto nas circunstâncias daqueles incisos. Portanto, em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas – o que a legislação infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo – não será punido penalmente, por razões de política criminal.[5]
Muito antes de todos os autores acima, já em 1986 o saudoso Walter Moraes, a maior autoridade brasileira em direitos da personalidade, comentando esse dispositivo legal, dizia de modo lapidar:
“Quanto ao aborto, a lei diz ‘não se pune’. Suprime a pena. Fica o crime”[6].
Poderia ser diferente a interpretação do artigo 128 do Código Penal? Não, sob pena de ele ser fulminado de inconstitucionalidade. Leiamos a brilhante lição de Maria Helena Diniz:
Há quem ache que o art. 128 é uma hipótese de exclusão de antijuridicidade, por conter uma espécie de estado de necessidade ou legítima defesa (CP, art. 23, I e II), ou seja, uma situação eventual, imprevista e não provocada pelo agente. Todavia, pela interpretação desse artigo, fácil é perceber que não se ajusta aos caracteres das excludentes de antijuridicidade. Se assim é, no Brasil não há nem poderia haver aborto “legal”, ante o princípio constitucional do direito ao respeito à vida humana, consagrado em cláusula pétrea (CF, art. 5º). Portanto, se o art. 128 do Código Penal estipulasse que não há crime em caso de aborto para salvar a vida da gestante ou de gestação advinda de estupro, estaria eivado de inconstitucionalidade, pois uma emenda constitucional, e muito menos uma lei ordinária, não poderia abrir exceção ao comando contido no art. 5° da Constituição Federal de 1988. É indubitável que o aborto sem pena, previsto no art. 128, é um delito (destaque meu)[7].
Ora, Sr. Henrique Tibúrcio, se o aborto previsto no artigo 128 do Código Penal é um delito[8], como pode o Município atribuir a si a tarefa de cometê-lo?
Em boa ora, a Câmara Municipal de Anápolis, reconhecendo o próprio erro, revogou um dispositivo eivado de inconstitucionalidade, por violar o direito à vida que não pode ser suprimido sequer por emenda à Constituição Federal.
A leitura da carta aos vereadores anapolinos revela, para além do desconhecimento de noções de Direito Penal e Direito Constitucional, algo que eu qualificaria como falta de bom senso. Vejamos.
Não contente em afirmar que o Código Penal dá ao cidadão o direito de matar um inocente sem violar a Constituição, Vossa Excelência afirma que o Município tem o dever de praticar o aborto. E mais: a não-prática do aborto pelo Município é que seria inconstitucional!
Parece incrível, mas é o que eu li na carta: ao não matar uma criança por nascer, o Município estaria ofendendo a Constituição! Mas onde a Constituição manda (ou pelo menos permite) matar crianças? Segundo palavras de Vossa Excelência, que faço questão de transcrever, a não prática pelo Município do erroneamente chamado ‘aborto legal’
… torna-se ofensa à garantia constitucional de todo cidadão de direito a saúde e, ao mesmo tempo, a Municipalidade estará descumprindo o seu dever de garantir a saúde aos seus cidadãos [os destaques são meus].
Ora, Sr. Henrique Tibúrcio, desde quando aborto é “saúde”? Desde quando abster-se de matar um nascituro é não garantir “saúde” aos cidadãos? O nascituro não é, também ele, sujeito de direitos? Não diz o Código Civil que “a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro (art. 2º, parte final)”?[9]
Se Vossa Excelência entende que o aborto é um direito constitucional à “saúde”, não vejo onde podemos parar. Raciocínio análogo poderia levá-lo a defender o abuso sexual de crianças como direito à “liberdade” e a escravidão como direito à “propriedade”.
Por fim, mas não menos importante, espanta-me que Vossa Excelência tenha-se manifestado aos vereadores não em nome próprio, mas em nome da instituição à qual estou inscrito e para a qual contribuo regularmente com as anuidades: a OAB/GO. Ora, entre as finalidades legais e estatutárias da OAB/GO não está a defesa da causa abortista.
Porventura assinei alguma procuração outorgando a Vossa Excelência e ao Sr. Otavio Forte poderes para defenderem em meu nome o aborto diante dos vereadores do meu município? Onde está a legitimidade do Ofício circular n. 005/2012/GP a eles enviado solicitando que, em segundo turno, vetassem a proposta de emenda do nobre vereador Pedro Mariano? Convenhamos que em tal ato houve abuso de poder.
A carta, porém, termina, de maneira indelicada, fazendo uma ameaça aos edis de Anápolis:
“Caso não seja este o entendimento de Vossas Senhorias e o projeto venha a ser aprovado, a ORDEM desde já assume o compromisso social de adotar as medidas jurídicas cabíveis e pertinentes ao assunto, a fim de garantir e assegurar o direito do cidadão anapolino”.
A indelicadeza não atinge somente aos vereadores anapolinos, mas a todos os advogados membros da OAB/GO – e não são poucos – que, como eu, repudiam o aborto.
Vossa Excelência não tem legitimidade para pleitear em meu nome nem em nome de qualquer advogado pró-vida inscrito na ORDEM, o direito/dever de matar nascituros com o dinheiro público.
Se, apesar de tudo, Vossa Excelência resolver ajuizar qualquer ação nesse sentido em nome da OAB/GO, estou disposto a entrar em juízo para questionar a legitimidade.
Parabenizando Vossa Excelência por já ter nascido, subscrevo-me.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
OAB/GO 26544
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[2] Ricardo Henry Marques DIP. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico: alvará para matar. Revista dos Tribunais, dez. 1996. p. 531-532.
[5] Marco Antônio Silva LEMOS, O Alcance da PEC 25/A/95. Correio Braziliense, 18 dez. 1995, Caderno Direito e Justiça, p. 6.
[6] Walter MORAES, O problema da autorização judicial para o aborto. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mar./abr. 1986. p. 21.
[8] Um tratamento mais amplo do tema pode ser visto
[9] O nascituro é reconhecido como pessoa pelo Pacto de São José da Costa Rica (cf. art. 1º, n. 2 e art. 3º). Segundo recente entendimento do STF, esse diploma tem status “supralegal”, estando abaixo da Constituição, mas acima de toda a legislação interna (cf. Recurso Extraordinário 349703/RS, acórdão publicado em 05/06/2009).