(não se pode justificar o aborto a partir do direito ao próprio corpo)
Petra Costa, diretora de “O olmo e a gaivota”, ao receber o prêmio de melhor documentário em longa metragem no 17º Festival do Rio[1], fez um lamentável discurso de agradecimento:
Eu queria dedicar esse prêmio à minha mãe e às mulheres. Que em breve […] no Brasil toda mulher tenha soberania total sobre o próprio corpo […] para rejeitar uma gravidez, interromper com o aborto, que já é legal há quarenta anos na França, nos Estados Unidos, em Cuba…[2].
Em resposta aos protestos que Petra recebeu por sua apologia do aborto, vários atores da Rede Globo, fantasiados com perucas azuis e simulando gravidez, fizeram um deplorável vídeo intitulado “Meu corpo, minhas regras”[3]. Eis um pequeno trecho da transcrição de suas falas:
Falar de gravidez é um tabu milenar. Contam como se tudo fosse maravilhoso, cor-de-rosa, sublime. Isso vem desde Nossa Senhora, que engravidou virgem. Uma gravidez sem sexo, sem corpo, sem desejo, sem medo. Sem sexo?… Sem sexo?… Sem sexo?… Esse lance de virgindade… erro de tradução do hebraico para o grego…
O tabu
Como se vê, o vídeo usa a palavra tabu em sentido pejorativo: algo proibido sem motivo, simplesmente por costume ou por preconceito. O respeito devido à gravidez seria um “tabu” a ser quebrado pela liberação do aborto.
Originalmente, porém, tabu tinha um sentido positivo. Era com esse nome que os nativos da Polinésia chamavam a tudo que era sagrado e intocável. A vida era um tabu. A união sexual em que a vida é gerada era um tabu. Tabu significava o reconhecimento pelo homem da soberania de Deus em sua vida.
Os “sexólogos” modernos têm muito a aprender com os nativos da Polinésia. O ato sexual é realmente um tabu. Não para ser quebrado, mas para ser cultivado. Cultivar a sacralidade do ato sexual é cultivar a sacralidade da vida. O ato sexual é tão sagrado quanto a vida por ele gerada.
A virgindade de Nossa Senhora
Para os idólatras do prazer, a virgindade é uma loucura. O fato de Maria Santíssima ter concebido seu Filho sob a ação do Espírito Santo, sem união física com um homem, seria uma lenda originada de um erro de tradução do hebraico para o grego. Mas qual teria sido o erro?
O profeta Isaías prometeu ao rei Acaz um sinal: “Eis que a jovem concebeu e dará à luz um filho e por-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7,14). Neste oráculo, usa-se a palavra hebraica “almah”, que a Bíblia de Jerusalém traduz por “jovem”. O termo indica a moça em idade núbil. No entanto, como precisa o biblista Dom João Evangelista Martins Terra, a lei mosaica punia a fornicação com a morte (cf. Dt 22,20-21.23-24). Presumia-se assim que toda “almah” era virgem. No século III a.C., a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego por ordem do rei do Egito, Ptolomeu II (283-246), que desejava ter uma versão grega da Bíblia para integrar sua biblioteca em Alexandria, onde havia uma próspera colônia judaica. Segundo se conta, a tradução foi feita por setenta e dois sábios (seis de cada tribo) e ficou conhecida como a “versão dos Setenta” ou “Septuaginta” (abreviadamente se escreve LXX). Nessa versão, a palavra hebraica “almah” foi traduzida por “parthénos” (virgem). Não se tratou de um “erro” de tradução, mas de uma interpretação. O texto grego é um precioso testemunho de que, já no século III a. C., entendia-se que a mãe do “Emanuel” (Deus conosco) seria uma virgem. O evangelista São Mateus, após narrar a concepção virginal de Jesus, conclui citando a versão grega dos LXX:
“Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome de Emanuel’, o que traduzido significa: Deus está conosco” (Mt 1,22-23). Conforme explica Dom Terra, neste versículo o Novo Testamento dá a interpretação autêntica da profecia do Antigo Testamento. Qualquer que tenha sido a intenção imediata de Isaías ao escrever, o Espírito Santo que moveu o profeta apontava para o sentido pleno, que seria revelado no Evangelho de São Mateus: uma virgem, permanecendo virgem, concebeu e deu à luz ao “Deus conosco”, Jesus Cristo.
Uma questão de anatomia
Ao defender o aborto em nome do direito ao próprio corpo (“meu corpo, minhas regras”), o vídeo incorre primeiramente em um erro de anatomia. Todos nós aprendemos que o corpo humano se divide em três partes: cabeça, tronco e membros. Para os apologistas do aborto, porém, o corpo humano se divide em quatro partes: cabeça, tronco, membros e criança. Assim como a mulher pode cortar as unhas e os cabelos, poderia também cortar o bebê que traz no ventre, o qual, segundo eles, nada mais é do que uma parte do corpo dela. Ora, o corpo do bebê é o corpo de outra pessoa, que só depende da mãe para hospedagem e alimento. É a criança que comanda seu próprio desenvolvimento, inclusive a hora do parto. É um erro biológico grosseiro confundir a criança com uma parte do corpo da mãe.
De quem é o nosso corpo?
Suponhamos, porém, que estivéssemos tratando não do corpo de outra pessoa, mas de uma parte de nosso corpo, por exemplo, nossos olhos. Podemos nós arrancar nossos olhos para vendê-lo a um traficante de órgãos humanos? Não podemos. Eis o que ensina a Igreja:
Por força de sua união substancial com uma alma espiritual, o corpo humano não pode ser considerado apenas como um conjunto de tecidos, órgãos e funções, nem pode ser avaliado com o mesmo critério do corpo dos animais. Ele é parte constitutiva da pessoa, que através dele se manifesta e se exprime[4].
São Paulo ensina-nos claramente que nosso corpo não pertence a nós mesmos. Por isso não podemos praticar a fornicação baseados em um suposto “direito ao próprio corpo”:
Fugi da fornicação. Todo outro pecado que o homem cometa é exterior ao seu corpo; aquele, porém, que se entrega à fornicação peca contra o próprio corpo!
Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? … e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto, a Deus em vosso corpo (1Cor 6,18-20).
Em resumo:
1. A mulher grávida desperta um sentimento de respeito e reverência, por causa daquele que ela traz no ventre. Assim, a gravidez é um tabu, no sentido positivo, que deve ser cultivado mantendo-se a proibição do aborto.
2. Maria não apenas era virgem, mas tinha a intenção de permanecer virgem (“Como é que vai ser isso, se não conheço homem algum?” – Lc 1,34). Os evangelistas Lucas e Mateus narram um fato histórico, não uma fábula baseada em um “erro de tradução”.
3. A criança por nascer não é parte do corpo da mãe. Portanto, não se pode defender o aborto com base no “direito ao próprio corpo”.
4. Mesmo sobre o nosso próprio corpo, não temos direito absoluto. Não podemos amputá-lo a nosso bel prazer nem entregá-lo à fornicação. O preço do nosso corpo é o sangue de Cristo, que nos resgatou. E o Espírito Santo é o nosso hóspede, que em nós habita como em um templo.
5. Portanto, pela castidade glorifiquemos a Deus em nosso corpo.
Anápolis, 14 de dezembro de 2015.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz