(a criatura gerando o Criador)
Algo maravilhoso da reforma do calendário litúrgico foi iniciar o ano civil com a Solenidade de Maria Mãe de Deus. Antes, a Maternidade Divina da Santíssima Virgem Maria era uma festa pouco conhecida, celebrada no dia 11 de outubro. Ao deslocá-la para 1º de janeiro, tornando-o dia santo de guarda e dando-lhe o grau de uma Solenidade, São Paulo VI prestou uma grande homenagem a Nossa Senhora.
De fato, “Mãe de Deus” é o título mais ousado que a Igreja dá a Maria. E é da Maternidade Divina que derivam todas as outras verdades da Mariologia. Como pode a criatura ser mãe do Criador? A redimida ser mãe do Redentor? Aquela que foi tirada do nada ser mãe daquele que criou tudo do nada?
Na verdade, o título de Mãe de Deus é simples de se explicar.
1. Maria é mãe de Jesus [Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus (Lc 1,30-31).]
2. Ora, Jesus é Deus [Respondeu-lhe Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus!’. Jesus lhe disse: ‘Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!’ (Jo 20,28-29).]
3. Logo, Maria é mãe de Deus.
No entanto, é espantoso que Deus possa ter uma Mãe.
Se Deus é eterno, parece que a Mãe de Deus deveria ser também eterna.
Se Jesus Cristo é Deus e homem, Maria não comunicou a ele a natureza divina, mas sim a natureza humana. Logo, pareceria que Maria é mãe apenas de “Cristo homem”, mas não de “Cristo Deus”.
Tais dificuldades foram levantadas por Nestório († 451), monge de Antioquia e mais tarde Patriarca de Constantinopla. Ele sustentava que Maria poderia ser chamada Mãe de Cristo (Christotókos), mas não Mãe de Deus (Theotókos). Para resolver a questão, foi convocado o Concílio de Éfeso (431), onde teve especial participação São Cirilo de Alexandria (376-444).
Mãe é mãe de uma pessoa
Minha mãe é mãe de um padre, embora ela não tenha gerado o sacerdócio.
A mãe de Edson Arantes do Nascimento (Pelé) é mãe de um jogador, embora ela não tenha gerado o futebol.
A mãe de Ayrton Senna é mãe de um piloto de Fórmula 1, embora ela não tenha gerado o automobilismo.
Não existe mãe de uma profissão, de um esporte ou de uma qualidade. Mãe é mãe de uma pessoa.
Analogamente, não existe uma “mãe da divindade” nem uma “mãe da humanidade”, que são naturezas. Mãe é mãe de uma pessoa, não de uma natureza.
Qual é a pessoa da qual Maria é mãe? Jesus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade.
Jesus é carpinteiro? Sim. Então, Maria é mãe do carpinteiro.
Jesus nasceu em Belém? Sim. Então, Maria é mãe do belemita.
Jesus criou o mundo? Sim. Então, Maria é mãe do Criador.
Jesus redimiu o mundo? Sim. Então, Maria é a mãe do Redentor.
Jesus é Deus? Sim. Então, Maria é mãe de Deus.
Significado do título “Mãe de Deus”
Maria comunicou a Jesus sua natureza humana. Jesus, que sempre existiu como Deus, passou a existir também como homem no seio puríssimo de Maria. Foi dela que ele assumiu a sua natureza humana, o ser um de nós, semelhante a nós em tudo, menos no pecado (Hb 4,15).
O que há de admirável, mas não de contraditório, em tudo isso, é que ela gerou (comunicou sua natureza humana a) Aquele que a havia criado! É algo que assombra os anjos. É a maravilha do mistério da Encarnação. É um motivo de louvor contínuo a Deus!
Quantas pessoas há em Jesus?
Nestório negava que Maria fosse Mãe de Deus porque pensava que em Jesus haveria duas pessoas: a divina e a humana. Maria seria a mãe da pessoa humana, não da divina.
Mas isso é falso. Jesus não é um conjunto de duas pessoas, mas uma só pessoa divina. O único “eu” de Jesus é o eu divino. Quando Jesus diz “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8,57), esse “eu” é o mesmo que foi gerado pelo Pai desde toda a eternidade.
Assim explica Dom Estêvão Bettencourt:
O sujeito último de todas as ações de Cristo é a segunda pessoa da SS. Trindade, mesmo quando Ele comia, bebia, padecia e morria. Por isso, é lícito dizer: ‘Deus morreu’ na medida em que assumiu a natureza humana e mediante essa natureza humana[1].
Daí dizer-se que Maria é Mãe de Deus, não enquanto Deus sem mais, mas enquanto Deus feito homem[2].
Assim explica o Catecismo da Igreja Católica (n. 466):
A humanidade de Cristo não tem outro sujeito senão a pessoa divina do Filho de Deus, que a assumiu e a fez sua desde sua concepção. Por isso, o Concílio de Éfeso proclamou, em 431, que Maria se tornou de verdade Mãe de Deus pela concepção humana do Filho de Deus em seu seio: ‘Mãe de Deus não porque o Verbo de Deus tirou dela a natureza divina, mas porque é dela que ele tem o corpo sagrado dotado de uma alma racional, unido ao qual, na sua pessoa, se diz que o Verbo nasceu segundo a carne’ (DS 251).
O testemunho da Escritura
Ao narrar a visita de Maria a Isabel, assim diz São Lucas:
Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo. Com um grande grito exclamou: ‘Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Donde me vem que a mãe do meu Senhor me visite? (Lc 1,41-43).
Note-se que o título “mãe do meu Senhor” foi dado a Maria por Isabel “repleta do Espírito Santo”. Ora, “meu Senhor” (em hebraico “Adonai”) era o nome que os judeus pronunciavam quando liam o nome impronunciável de “Javé” (Aquele que é) com suas quatro consoantes JHVH. Mãe do meu Senhor equivale a Mãe de Javé ou Mãe de Deus. Logo, é o próprio Espírito Santo que atesta que Maria é Mãe de Deus.
Consequências da Maternidade Divina
Não existe um anjo-Deus, mas existe um Homem-Deus: Jesus. Não há um anjo que tenha gerado a Deus comunicando-lhe a natureza angélica. Mas há uma dentre nós que gerou a Deus comunicando-lhe a natureza humana: Maria. É em Maria que a Sabedoria Eterna quer ser adorada pelos anjos e pelos homens.
O mistério de Jesus vivendo e reinando em Maria (ou da Encarnação do Verbo) é, segundo São Luís de Montfort, “o primeiro mistério de Jesus Cristo, o mais oculto, o mais elevado e o menos conhecido… Este mistério é um resumo de todos os mistérios, e contém a vontade e a graça de todos”[3].
Segundo John Saward, autor do livro “O Redentor no útero”, sobre “Jesus vivendo em Maria”, o mistério da Encarnação tem consequências sobre a dignidade da vida humana em seu início:
Qualquer um seria capaz de ver que a vida de um ser humano começa no momento da fertilização e que desde aquele momento tem o direito de ser protegida de ataques. Mas o crente católico, que confessa que o Filho de Deus tornou-se homem no momento de sua concepção virginal, tem o maior de todos os possíveis motivos para ter reverência. A vida não nascida foi assumida e consequentemente divinizada pelo Verbo consubstancial. Atacar um nascituro é declarar guerra contra Deus[4].
Que nunca aconteça que no Brasil, como acaba de acontecer na Argentina ao legalizar o aborto, façamos “guerra contra Deus” (At 5,39).
Anápolis, 4 de janeiro de 2021.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
[1] Estêvão BETTENCOURT. Curso de Iniciação Teológica por correspondência, Módulo 16, Lição 2ª, Rio de Janeiro: Escola Mater Ecclesiae, 1985.
[2] Ibidem, Módulo 24, Lição 3ª.
[3] S. Luís Maria Grignion de MONTFORT, Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, 11 ed. Vozes, Petrópolis 1981, n. 248, p. 233.
[4] John SAWARD, Redeemer in the womb: Jesus living in Mary, Ignatius Press, San Francisco 1993, p. 164.