(um princípio ético importantíssimo para se entender certos casos relativos ao aborto)
O aborto como meio
No ano 70 d.C., a cidade de Jerusalém foi sitiada pelo general Tito, em represália a uma rebelião dos judeus comandada pelo partido dos zelotes. Flávio Josefo, chefe militar da Galiléia, foi capturado pelos romanos. Escreveu com detalhes os horrores daquela guerra, e tentou, em vão, fazer com que seus compatriotas se rendessem. O texto a seguir refere-se ao cerco de Jerusalém:
“Josefo, cuja própria família sofreu com os sitiados, não recuou nem mesmo diante dum episódio desumano que prova que o desespero da fome já começava a turvar a razão dos israelitas.
Os zelotes percorriam as ruas em busca de alimento. Duma casa saía cheiro de carne assada. Os homens penetraram imediatamente na habitação e pararam diante de Maria, filha da nobre família Bet-Ezob, extraordinariamente rica, da Jordânia oriental. Maria tinha ido como peregrina a Jerusalém para a festa da Páscoa. Os zelotes ameaçaram-na de morte se não lhes entregasse o assado. Perturbada, a mulher estendeu-lhes o que pediam, e eles viram, petrificados, que era um recém-nascido meio devorado – o próprio filho de Maria” [1].
Poder-se-ia tentar justificar a atitude da mulher faminta, com o seguinte argumento: se ela não tivesse matado o próprio filho, ambos teriam morrido; ao matá-lo para saciar sua fome, pelo menos uma das vidas foi poupada.
No entanto, matar diretamente um ente humano inocente é um ato intrinsecamente mau, que não pode ser justificado nem pela boa intenção, nem pelas possíveis boas conseqüências, nem sequer pelo estado de extrema necessidade. Nunca é lícito matar diretamente um inocente, nem sequer para salvar outro inocente.
No repugnante caso acima, a morte do bebê era um meio para salvar a vida da mãe. Analogamente, se durante uma gestação o aborto fosse um meio para salvar a vida da gestante — e ainda que fosse o único meio — tal ato seria gravemente imoral. É dever do médico salvar mãe e filho, mas não se pode salvar um deles por meio da morte do outro. O fim, por mais nobre que seja, não justifica um meio mau utilizado para alcançá-lo.
Há, contudo, depoimentos médicos que negam com veemência que o aborto possa servir de meio para salvar a vida da gestante. Segundo a Academia de Medicina do Paraguai (1996), “em casos extremos, o aborto é um agravante, e não uma solução para o problema”[2]. Já em 1965, o médico-legal João Batista de Oliveira Costa Júnior, em sua aula inaugural para os alunos dos Cursos Jurídicos da Faculdade de Direito da USP, referindo-se ao aborto “necessário” ou “terapêutico” dizia:
Digo, inicialmente, que se me fosse permitido, chamá-lo-ia de abôrto desnecessário ou, então, de abôrto anti-terapêutico.
[…]
Ante os processos atuais da terapêutica e da assistência pré-natal, o abôrto não é o único recurso; pelo contrário, é o pior meio, ou melhor, não é meio algum para se preservar a vida ou a saúde da gestante[3].
O aborto como segundo efeito
O aborto diretamente provocado, ou seja, querido como fim ou como meio, é um pecado gravíssimo. Porém há procedimentos médicos ou cirúrgicos que em si não são abortivos, mas que podem ter como efeito secundário e indesejado (embora previsível) a morte do bebê por nascer. Em tais casos, a morte do inocente, se houver, ocorreráindiretamente, como segundo efeito de uma ação que, em si, é boa.
Por exemplo, uma intervenção cirúrgica cardiovascular em uma mulher grávida pode ter como conseqüência a morte do nascituro. Em tal caso, a morte do inocente não é um fim visado pela cirurgia (o fim é a cura da cardiopatia). Também não é um meio (pois não é a morte da criança que “causa” a cura da mãe). É simplesmente um segundo efeito.
Para que se possa, porém, tolerar o risco de um efeito secundário mau, é preciso que o bem a ser alcançado seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente a ele. No caso relatado, a cirurgia não seria lícita se fosse possível esperar até o nascimento do bebê ou se houvesse outro meio terapêutico que fosse inofensivo para a criança.
Note-se bem que não se trata de “praticar um ato mau com boa intenção”. Isso nunca é moralmente lícito. O fim não justifica os meios, embora Maquiavel tenha dito o contrário.
Repita-se: a morte do bebê nunca pode ser querida como fim nem como meio. Quando muito, pode ser tolerada como um segundo efeito de uma ação boa.
O princípio da causa com duplo efeito
Muitos de nossos atos bons produzem efeitos maus indesejados mas inevitáveis. Ao tomarmos uma aspirina para curar uma dor de cabeça, podemos causar dano ao estômago. Ao corrigirmos o próximo, às vezes ele se sente humilhado ou envergonhado. Ao lutarmos contra o aborto, causamos a ira dos abortistas.
Podemos praticar tais atos, que tenham duplo efeito: um bom e outro mau? Sim, mas com algumas condições.
a) que a intenção do agente seja obter o efeito bom, e não o mau;
b) que o efeito bom seja obtido diretamente da ação, e não através do efeito mau;
c) que o efeito bom seja proporcionalmente superior ou ao menos equivalente ao efeito mau;
d) que não haja outro meio de se obter tal efeito bom, a não ser praticando a ação boa que produz tal efeito secundário mau.
No princípio em questão, trata-se de praticar um ato bom com boa intenção, mas que produz um efeito colateral mau indesejável, mas inevitável, embora previsível. Vejamos o exemplo seguinte:
Uma mulher grávida sofre de uma infecção renal. O médico prescreve-lhe um antibiótico. Há, porém, o perigo remoto de a droga causar danos ao nascituro. No entanto, não há outro antibiótico que seja menos nocivo ao bebê e nem é possível esperar o nascimento da criança para iniciar o tratamento.
Nesse caso:
a) a intenção do agente é curar a infecção renal (efeito bom) e não causar dano ao nascituro (efeito mau);
b) a cura da infecção renal (efeito bom) é obtida diretamente da ação de tomar o antibiótico, e não através do dano causado ao nascituro (efeito mau). Se, absurdamente, a mulher não tomasse o antibiótico, mas lesasse diretamente seu bebê, tal dano não iria causar a cura de sua infecção renal.
c) como a chance de lesão à criança, embora exista, é pequena, e como o tratamento é urgente, o efeito bom (a cura da infecção renal) é proporcionalmente superior ao possível efeito mau.
d) não há outro meio de se obter a cura da infecção, a não ser pela ingestão de um antibiótico. O médico poderia prescrever outro antibiótico, mas nenhum seria isento de riscos para a criança.
Logo, o ato pode legitimamente ser praticado.
O princípio da causa com duplo efeito foi descrito de maneira lapidar pela Academia de Medicina do Paraguai (1996):
“Não comete ato ilícito o médico que realize um procedimento tendente a salvar a vida da mãe durante o parto ou em curso de um tratamento médico ou cirúrgico cujo efeito cause indiretamente a morte do filho, quando não se pode evitar esse perigo por outros meios”[4].
Resumindo: provocar diretamente o aborto é inadmissível, ainda que ele fosse o único meio de salvar a vida da gestante. Porém, a morte indireta de um inocente, como a criança por nascer, pode às vezes ser tolerada como efeito secundário de um procedimento que, em si, é bom.
O conhecimento claro do princípio da causa com duplo efeito, com a distinção precisa entre meio mau e efeito secundário mau, é um requisito básico para resolver várias questões de Bioética.
Anápolis, 10 de abril de 2006.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão…. Tradução de João Távora. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 340
[2] ACADEMIA DE MEDICINA DEL PARAGUAY. Declaración aprobada por el Plenario Académico Extraordinario en su sesión de 4 de Julio de 1996.