A “fórmula” dos abortistas

O aborto legal não existe no Brasil. O artigo 128 do Código Penal diz que há dois casos em que o aborto “não se pune”. Ora, confundir “não se pune” com “é permitido” é uma barbaridade jurídica. O mesmo Código diz que, por razões de política criminal, não se pune o filho que furta dos pais (art. 181) e que fica isento de pena o pai que ajuda seu filho delinqüente a escapar da polícia (art. 348§2º), embora não aprove nem aplauda nenhuma destas condutas. “Está aí a cuidar-se – a lição é de RICARDO DIP – das chamadas escusas absolutórias, causas que, excluindo a pena, deixam subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona” (Uma questão biojurídica atual: autorização judicial de aborto eugenésico; alvará para matar in Revista dos Tribunais, v. 734, dez. 96, p. 531).

Estranhamente a quase totalidade dos penalistas, ignorando as regras elementares da exegese, afirma que nos dois casos não puníveis o aborto é “legal” ou “lícito”. Por exemplo: NÉLSON HUNGRIA (Comentários ao Código Penal, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1958, vol. 5, p. 306-313) CELSO DELMANTO (Código Penal Comentado, 3ª edição, Ed. Renovar, 1991, p. 216), HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (Lições de Direito Penal, Parte Especial, vol. I, 10ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1988, p.145).

Houve, porém, quem, favorável ao aborto, manifestasse seu mal-estar diante da redação do artigo 128. Assim, por exemplo, JÚLIO FABBRINI MIRABETE:

“São causas excludentes de criminalidade, embora a redação pareça indicar causas de ausência de culpabilidade ou punibilidade” (Manual de Direito Penal, São Paulo, 1986, Editora Atlas, 3ª edição, vol. 2, p. 79)

O mesmo lamento encontramos em MAGALHÃES NORONHA:

“Segundo cremos, não é das mais felizes a redação do art. 128. Se o fundamento do inc. I é o estado de necessidade, e o do II ainda o mesmo estado, conforme alguns, ou a prática de um fato lícito, não nos parece que na técnica do Código se devia dizer “não se pune…” Dita frase pode levar à conclusão de que se trata de dirimente ou de escusa absolutória, o que seria insustentável. Em tal hipótese, a enfermeira que auxiliasse o médico, no aborto, seria punida. Nos incisos do art. 128, o que desaparece é a ilicitude ou antijuridicidade do fato, e, conseqüentemente, devia dizer-se: “Não há crime”.” (Direito Penal, São Paulo, Saraiva, 1995, vol. 2, p.58)

Como é impressionante a preocupação do jurista! Quer isentar de pena, não apenas o médico que mata o nascituro, mas também a enfermeira que presta auxílio ao assassinato! Curiosamente, ele não se preocupa em deixar impunes os cúmplices de outros crimes em que a lei não pune o criminoso. Que tal isentar de pena não apenas o filho que furtou dos pais, mas também o colega que o auxiliou a furtar? E que tal suspender a pena não somente da mãe que escondeu seu filho delinqüente da polícia, mas também da vizinha que a auxiliou a favorecer o criminoso?

Para resolver a questão da enfermeira, transformando o não punível em lícito, JOSÉ FREDERICO MARQUES parece ter “achado a fórmula”. Diz ele, criticando MAGALHÃES NORONHA:

“Parece-nos que não atentou bem o ilustre mestre para os precisos dizeres da lei. Se nela se dissesse que não se pune o médico que pratica o aborto necessário ou o aborto advindo de estupro, então sim, poderia falar-se em dirimente. O texto, no entanto, alude à não punição do fato típico: não se pune o aborto, é o que reza a norma legal. Ora, fato impunível é, por definição, fato que não constitui crime” (Tratado de Direito Penal, v. 4, p. 174)

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS diz exatamente a mesma coisa:

“A disposição não contém causas de exclusão da culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas da punibilidade. Os dois incisos do artigo 128 contém causas de exclusão de antijuridicidade. Note-se que o CP diz que “não se pune o aborto”. Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito. Assim, na hipótese de incidência de um dos casos do artigo 128, não há crime por exclusão de ilicitude. Haveria causa pessoal de exclusão de pena somente se o CP dissesse “não se pune o médico””(Direito Penal, v. 2, 14ª ed. São Paulo, Saraiva, 1992, p. 109).

Eureka! Está encontrada a fórmula! O artigo 128 diz que não se pune o aborto praticado por médico, ao invés de dizer que não se pune o médico que pratica o aborto. Logo, nada mais lógico (?) que concluir que em tais casos o aborto é “legal”.

Concedo ao leitor o direito de rir da argumentação usada pelos ilustres penalistas. Afinal, que diferença semântica há entre punir o aborto praticado pelo médico e punir o médico que pratica o aborto? Nenhuma. Absolutamente nenhuma. Podemos imaginar um médico cumprindo pena na cadeia por ter cometido aborto. Mas ninguém consegue imaginar o aborto “atrás das grades”, sofrendo punição. Punir o crime e punir o agente do crime são coisas exatamente iguais. A diferença é puramente verbal.

Percebe-se que a insistência dos penalistas em chamar os dois casos não puníveis do artigo 128 de “casos de aborto legal” não tem explicação lógica, mas sim psicológica. A lei não diz que o aborto é permitido. No entanto, eles gostariam que ela dissesse. Daí argumentarem “a redação não está boa”, quando o mais sincero seria dizer “minha interpretação não está boa”. Daí procurarem malabarismos verbais para fazer a lei dizer o que ela não diz. E daí estarem propondo no Anteprojeto do Código Penal alterar o “não se pune” para “não constitui crime” (cf. Diário Oficial da União, 25/3/98, p.1).

Anápolis, 2 de maio de 1998

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

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