(toda a Igreja espera a palavra do Papa sobre a família)

A controvérsia sobre a circuncisão

Paulo e Barnabé estavam em Antioquia da Síria quando chegaram alguns vindos da Judeia (conhecidos como judaizantes) e disseram aos cristãos não judeus: “se não vos circuncidardes segundo a norma de Moisés, não podereis salvar-vos” (At 15,1). Houve então uma grande controvérsia, e todos resolveram dirigir-se a Jerusalém onde, na época, estava Simão Pedro. Diante da discussão acesa da assembleia, Pedro levantou-se e fez um discurso argumentando que não é pela circuncisão, mas “pela graça do Senhor Jesus que nós [judeus] cremos ser salvos, da mesma forma como também eles [os gentios]” (At 15,11). A Escritura prossegue dizendo: “Então, toda a assembleia silenciou” (At 15,12). A palavra de Pedro, a quem Jesus deu o poder e a missão de confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,32) pôs fim a uma discussão que parecia interminável.

A controvérsia sobre a anticoncepção

O Concílio Vaticano II (1963-1965) estava trabalhando na elaboração da Constituição Gaudium et spes (sobre a Igreja no mundo de hoje), quando surgiu entre os Bispos uma discussão acesa sobre a licitude do uso de meios anticoncepcionais (em particular, a pílula recém-inventada) para regular a procriação. O Papa Beato Paulo VI resolveu então chamar a si a questão, tirando-a do debate conciliar. Segundo nota de rodapé colocada na própria Gaudium et spes, “algumas questões, que necessitam de investigações mais aprofundadas, foram por ordem do Sumo Pontífice confiadas à Comissão para o estudo da população, família e natalidade, para que, terminados os estudos, o próprio Papa decida”[1]. Corria o ano 1964 quando o Beato Paulo VI chamou a si o estudo da matéria. Em dezembro de 1965, o Concílio terminou, sem que o assunto fosse resolvido. Em fins de 1966, o relatório da Comissão foi posto nas mãos do Papa, mas seus membros não haviam chegado a um consenso. Foi somente em 25 de julho de 1968 (quatro anos, portanto, após o Papa ter chamado a si a questão) que foi publicada a belíssima encíclica Humanae vitae sobre a regulação da procriação. Como era de se esperar, o documento não modificava a doutrina moral da Igreja, mas reafirmava o que já havia dito Pio XI na encíclica Casti conubii, ou seja, que “qualquer ato matrimonial [quilibet matrimonii usus] deve permanecer aberto à transmissão da vida”[2]. A anticoncepção foi, portanto, explicitamente condenada como meio de regular a procriação.

No entanto, os quatro anos de silêncio do Beato Paulo VI causaram um enorme dano ao mundo cristão. Enquanto Pedro silenciava, falsos profetas alardeavam que a doutrina da Igreja já havia mudado ou estava para mudar, e já davam, “antecipadamente”, permissão para os casais fazerem uso da pílula anticoncepcional. Quando finalmente Pedro falou por meio da Humanae vitae, a mentalidade contraceptiva já se havia espalhado entre os cristãos. Houve uma rebelião por parte de teólogos, bispos e até de episcopados inteiros contra o ensinamento perene do Magistério. E até hoje sentimos os efeitos do prolongado silêncio de Pedro sobre esse tema da moral conjugal.

A controvérsia sobre os divorciados “recasados”

Em 2013, o Papa Francisco resolveu convocar duas assembleias do Sínodo dos Bispos: uma extraordinária entre 5 e 19 de outubro de 2014 e outra ordinária entre 4 e 25 de outubro de 2015. O objetivo era discutir Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização. Na verdade, trata-se de um Sínodo sobre a família dividido em duas fases com a distância de um ano.

A Assembleia de 2014 foi marcada por uma grande tensão. O relator geral do Sínodo, Cardeal Péter Erdö, no dia 13/10/2014, leu um relatório intermediário (Relatio post disceptationem) que continha várias ideias estranhas à doutrina da Igreja, incluindo o acesso dos divorciados em segunda união (“recasados”) ao Sacramento da Comunhão. Essa tese havia sido apresentada pelo Cardeal Walter Kasper no consistório de cardeais realizado em fevereiro de 2014. No entanto, em setembro de 2014, cinco cardeais[3] se uniram para publicar o livro Permanecendo na verdade de Cristo: Matrimônio e comunhão na Igreja Católica[4] refutando os argumentos de Kasper. Em 13/10/2014, quando a tese de Kasper apareceu no relatório do Cardeal Péter Erdö, houve uma grande reação entre os Padres Sinodais. Estes então se dividiram, por idioma, em dez círculos de trabalho e alteraram profundamente o texto inicial. Acrescentaram três tópicos dogmáticos sobre “A família no desígnio salvífico de Deus”, “A família nos documentos da Igreja” e “A indissolubilidade do matrimônio e a alegria de viver juntos”. Ao falar da misericórdia, não deixaram de falar da verdade, uma vez que ambas “convergem em Cristo”. No documento final (Relatio synodi), publicado em 18/10/2014, pôde-se ver o quanto o pensamento dos Padres Sinodais estava distante do relatório inicial. Dos 62 parágrafos, três não obtiveram os dois terços dos votos necessários para a sua aprovação: os de número 52 e 53 (sobre o acesso dos divorciados “recasados” ao sacramento da Comunhão) e o de número 55 (sobre a acolhida às pessoas com tendência homossexual). No entanto, curiosamente eles não foram excluídos do texto. Isso significa que tais temas poderão vir à tona novamente na Assembleia de outubro de 2015.

E o que disse o Papa Francisco sobre tudo isso? Em seu discurso de conclusão do sínodo, em 18/10/2014, o Santo Padre advertiu sobre a tentação de quem, “em nome de uma misericórdia enganadora, liga as feridas sem antes as curar e medicar” e a tentação de “descuidar o ‘depositum fidei’ [depósito da fé], considerando-se não guardiões mas proprietários e senhores”[5]. Entretanto, não fez nenhuma condenação explícita às teses kasperianas que circularam durante o Sínodo. O silêncio de Pedro permitiu que os meios de comunicação social passassem a divulgar que a Igreja havia mudado, ou estaria mudando sua prática de não admissão dos divorciados “recasados” à Comunhão Eucarística. Acerca disso, declarou o Cardeal Raymond Burke, na época prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, ao jornal eletrônico BuzzFeed News que “a falta de clareza [do Papa] sobre o assunto certamente causou um grande dano”[6].

No entanto, não é preciso um grande estudo para que o Santo Padre resolva a questão. Basta reafirmar o ensinamento de São João Paulo II na sua Exortação Apostólica Familiaris consortio, também esta fruto de um sínodo sobre a família celebrado em 1980. Após falar da misericórdia com que devem ser tratados os divorciados que contraem nova união, a Exortação diz:

A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fieis seriam induzidos em erros e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio[7].

De fato, convidar tais divorciados “recasados” à Comunhão eucarística seria, nas palavras de São Paulo, torná-los “réus do Corpo e do Sangue do Senhor” (1Cor 11,27), seria fazê-los “comer e beber a própria condenação” (1Cor 11,29). Eles que, segundo as fortes palavras de Cristo, “cometem adultério” (Mc 10,11-12), de nenhum modo serão beneficiados por receberem indignamente o sacramento do altar.

O Sínodo ordinário de outubro de 2015 aproxima-se e, com ele, novas discussões. No entanto, o que a Igreja espera, com grande expectativa, é a Exortação pós-sinodal que será feita pelo Papa, recolhendo diversas propostas feitas pelos Cardeais em ambas as assembleias. É possível que, em tal Exortação, Pedro venha a presentear-nos com um belíssimo tratado sobre o matrimônio cristão, contendo uma refutação explícita dos ensinamentos de Kasper. Mas é possível que, até lá, por causa da demora, um enorme dano já tenha sido causado na mente dos fieis.

Anápolis, 10 de julho de 2015.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

 



[1] CONCÍLIO VATICANO II, Gaudium et spes, n. 51, nota 14.

[2] PAULO VI, Humanae vitae, n. 11.

[3] Os cardeais autores foram Gerhard Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé; Raymond Leo Burke, na época Prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica; Walter Brandmüller, presidente emérito do Comitê Pontifício de Ciências Históricas; Carlo Caffarra, Arcebispo de Bolonha e um dos teólogos mais próximos a São João Paulo II em questões de moralidade e família; e Velasio Di Paolis, Presidente emérito da Prefeitura para os Assuntos Econômicos da Santa Sé.

[4] Lançado nos EUA livro escrito por cinco cardeais sobre a doutrina da Igreja sobre o matrimônio, ACI, 16 set. 2014, in: http://www.acidigital.com/noticias/cardeais-publicam-livro-em-defesa-da-doutrina-da-igreja-sobre-o-matrimonio-58216/

[7] S. JOÃO PAULO II. Familiaris consortio, 1981, n. 84.

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