(descoberta uma pílula capaz de mudar o passado)
O que passou, passou. Não se pode mudar o passado. Pode-se sim, tentar evitar os efeitos do passado. Aquele que furtou nunca poderá negar o furto que praticou. Mas poderá – e deverá – reparar o efeito do furto, devolvendo ao dono o objeto furtado. Uma ofensa praticada nunca deixará de ter sido uma ofensa. Mas seu efeito poderá ser reparado mediante um pedido de perdão. Se alguém comprou um produto com defeito, poderá desfazer o negócio; mas não poderá mudar o fato de que um dia comprou aquela mercadoria defeituosa.
Da mesma maneira, se uma mulher concebeu, sempre será verdade que ela concebeu. Ainda que no dia seguinte ela provoque um aborto, de modo a livrar-se do efeito da concepção (a criança concebida), ela não poderá mudar o passado. Ou poderá?
Segundo alguns laboratórios farmacêuticos e segundo o próprio Ministério da Saúde, o passado pode ser mudado. Suponhamos que o ato sexual tenha ocorrido hoje.
“Pesquisas de laboratório demonstraram que o esperma pode chegar ao interior das trompas de Falópio, onde acontece a fecundação, depois de cinco minutos da relação […]. Algumas pesquisas até demonstraram que, com a ajuda das contrações uterinas, o transporte dos espermatozóides ao interior das trompas, já por si rápido, pode durar até um só minuto”[1].
Suponhamos que a mulher esteja em seu período fértil, de modo que tenha havido o encontro entre o óvulo e o espermatozóide, do qual resultou um novo ente humano, uma criança com o tamanho de apenas uma célula, denominada ovo ou zigoto. Esta criança ainda não está no útero. Está na trompa de Falópio, mas será conduzida até o útero, onde se fixará. O processo de implantação (ou nidação) da criança no útero começa no sexto dia de vida e se completa por volta do 12º dia. Nesta fase, a criança já é constituída de várias células, dispostas em uma estrutura denominada blástula ou blastocisto.
Continuemos a nossa estória. No dia seguinte após o ato sexual, a mulher que já concebeu, toma uma pílula. Essa pílula, conhecida como “pílula do dia seguinte”, contém uma dose muito grande de hormônios sintéticos. Que faz essa pílula? Causa um aborto? “De maneira alguma!” – diz o Ministério da Saúde. “Ela não é abortiva! É um anticoncepcional de emergência! Ela apenas impede a concepção”. Mas a concepção já não ocorreu no dia anterior? Sim, mas essa pílula tem um efeito retroativo: ela faz que a concepção – que já ocorreu – deixe de ter ocorrido. Ela faz que a mulher, que já concebeu, nunca tenha concebido. Ela é capaz de alterar o passado. Incrível, não? Costuma-se dizer, jocosamente, que o cúmulo da rapidez é trancar a gaveta e colocar a chave dentro dela. A rapidez a que se refere essa anedota é semelhante à da “anticoncepção de emergência” (AE) da pílula do dia seguinte. O efeito deixa de ser posterior à causa. A causa passa a produzir um efeito anterior a ela!
Ação abortiva da “pílula do dia seguinte”
A chamada “pílula do dia seguinte” é “um preparado a base de hormônios (pode conter estrogênio, estrogênio/progestogênio ou somente progestogênio) que, dentro de e não mais do que 72 horas após um ato sexual presumivelmente fértil, tem uma função predominantemente ‘anti-implantação’, isto é, impede que um possível ovo fertilizado (que é um embrião humano), agora no estágio de blástula de seu desenvolvimento (cinco a seis dias depois da fertilização) seja implantado na parede uterina por um processo de alteração da própria parede. O resultado final será assim a expulsão e a perda desse embrião”[2].
O discurso do fabricante em 2001
O mecanismo de ação descrito acima era confirmado pela própria Aché, que no Brasil, desde a publicação da Portaria n.º 204, de 11 de março de 1999, da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) comercializa a droga sob o nome de Postinor-2. O parágrafo a seguir foi transcrito do próprio sítio da Internet em 2001[3]:
“Como funciona o método de contracepção de emergência Postinor-2?
Se você tomar o primeiro comprimido de Postinor-2 até 72 horas após ocorrer uma relação sexual desprotegida ele vai impedir ou retardar a liberação do óvulo do ovário, impossibilitando a fecundação ou, ainda, impedirá a fixação do óvulo fecundado no interior do útero (a nidação), através da desestruturação do endométrio (parede interna do útero).” (grifo nosso)
O fato que o próprio laboratório fabricante admitia é este: a pílula impede que o ente humano concebido na trompa venha a se implantar no útero. Ora, a causação da morte de um bebê dentro do organismo materno é um aborto. A conclusão óbvia, que ninguém poderia negar, é que a chamada “pílula do dia seguinte” é abortiva. Isso, porém, o fabricante negava, no parágrafo seguinte ao citado anteriormente:
“O método da contracepção é abortivo?
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) a gravidez só tem início após a implantação do ovo no útero, quando Postinor-2 não tem mais efeito. Portanto, Postinor-2 não é abortivo.”
Vê-se o malabarismo verbal usado para ocultar o aborto. Segundo a Aché, o aborto só poderia haver após o início da gravidez. E como a gravidez — diz a Aché — só começa quando a criança se implantou no útero, não haveria problema em matar a criança concebida, mas ainda não implantada na parede uterina. Tal morte não seria um aborto. Algumas perguntas, porém, ficavam sem resposta: 1) Que diferença faz matar um bebê com poucos dias de vida (ainda no estágio de blástula ou blastocisto) e matar um bebê já fixado no útero, digamos, já com algumas semanas de vida? 2) Baseado em que motivo pode-se dizer que a gravidez começa apenas com a implantação, e não com a fertilização do óvulo pelo espermatozóide?
Etimologicamente, “gravidez” vem do latim “gravis”, que significa pesado. A mulher grávida seria aquela que carrega dentro de si um “peso”: um bebê por nascer. Um sinônimo de gravidez é “gestação”, que vem do latim “gestare”, que significa “levar, transportar”. A mulher gestante é aquela que está “carregando” um bebê por nascer.
Não importa que o não nascido esteja na trompa, no útero ou em outro lugar. O que importa é que ele está dentro de sua mãe. Após a implantação (ou nidação), a criança cria uma “rede” de comunicação com a mãe, que inclui a placenta e o cordão umbilical. Mas antes de se implantar, de onde a criança retira seu alimento? Do lugar onde está, é óbvio. Se ainda está na trompa, é lá que ela vai-se alimentar, a fim de desenvolver-se e tornar-se apta a criar sua “casinha” no útero. Portanto, a mãe já é fornecedora de alimentos desde a concepção, que se dá no terço distal da trompa. Não faz sentido dizer que a gestação começa apenas após a implantação. Citemos novamente a Pontifícia Academia para a Vida:
“A gravidez, de fato, começa com a fertilização e não com a implantação do blastocisto na parede uterina, que é o que tem sido implicitamente sugerido.”
O discurso do fabricante hoje
Talvez o reconhecimento da fragilidade da argumentação acima tenha feito com que os defensores da “pílula do dia seguinte” mudassem de discurso. Em 2001,a bula de Postinor-2, admitia o efeito abortivo, embora sem usar esse nome:
“Acredita-se que Postinor-2 age para prevenir a ovulação, a fertilização e a implantação. Não é eficaz uma vez iniciado o processo de implantação.
Os seguintes sítios de ação participam da ação contraceptiva do Postinor-2:
(1) eixo hipotalâmico-pituitário-ovariano;
(2) inibição da ovulação dependendo do horário e da frequência de ingestão;
(3) fator endometrial (inibição direta da implantação ou efeito direto sobre a blástula)…” [os grifos são nossos].
Agora, a bula de Postinor-2 garante que a pílula não impede que a criança concebida venha a se implantar na parede uterina (endométrio):
“Assim sua ação pode se dar: pela inibição ou retardo da ovulação; por dificultar o ingresso do espermatozóide no útero; por alterar a passagem do óvulo ou espermatozóide pela tuba uterina. Se já tiver ocorrido a fecundação, ou seja, a união do espermatozóide com o óvulo formando o ovo, a medicação não mais agiria, por não apresentar ação no endométrio”.[4]
Portanto, uma droga que em 2001 era abortiva, agora não seria mais. O mesmo diz hoje o Ministério da Saúde: “Não existe nenhuma sustentação científica para afirmar que AE seja um método que resulte em aborto, nem mesmo em um percentual pequeno de casos. As pesquisas asseguram que os mecanismos de ação da AE evitam ou retardam a ovulação, ou impedem a migração dos espermatozóides. Não há encontro entre os gametas masculino e feminino e, portanto, não ocorre a fecundação”.[5]
Mas a emenda ficou pior do que o soneto. Pois, se esse fármaco tão-somente impede a fecundação, por que ele é usado depois de um ato sexual, em um intervalo de tempo que pode ir até três dias, (ou até cinco dias, segundo o Ministério da Saúde)?
Um efeito acidental
Descartando a hipótese de uma influência sobre o passado, haveria alguma chance de essa pílula funcionar como anticoncepcional? Haveria, mas só acidentalmente. Um relógio de pulso – que é fabricado para mostrar as horas – pode, acidentalmente proteger um cidadão contra uma bala perdida. A pílula do dia seguinte, feita para provocar um aborto, poderia, por acidente, impedir a concepção.
Imaginemos o seguinte caso: o ato sexual ocorreu hoje; mas a mulher iria ovular amanhã. Amanhã, portanto, haveria o encontro do óvulo recém-produzido com algum espermatozóide do dia anterior. A dose enorme de hormônios dessa pílula, poderia então impedir que o óvulo fosse produzido, e atuar assim como anticoncepcional. Esse efeito acidental não explica, porém, o alto Índice de Efetividade da droga. Segundo o Ministério da Saúde, “a AE apresenta, em média, Índice de Efetividade de 75%. Significa dizer que ela pode evitar 3 de cada 4 gestações que ocorreriam após uma relação sexual desprotegida.”[6]. Uma efetividade tão grande só se explica pela ação fundamentalmente abortiva dessa pílula. Convém lembrar que tal aborto é assintomático, isto é, não é percebido pela mulher, assim como ocorre com as usuárias do DIU (dispositivo intra-uterino) e de outros abortivos que impedem a nidação.
Uma atitude corajosa e pioneira
No dia 24 de janeiro de 2008, o arcebispo de Recife e Olinda, Dom José Cardoso Sobrinho, anunciou que iria ajuizar uma ação judicial para tentar evitar que a Prefeitura de Recife distribuísse a “pílula do dia seguinte” na cidade durante o Carnaval deste ano.[7] A ação civil pública foi ajuizada pela Associação de Defesa dos Usuários de Seguros e Sistema de Saúde (Aduseps). Lamentavelmente, no dia 30 de janeiro, o juiz José Viana Ulisses Filho, da 7ª Vara da Fazenda Pública da capital (mas respondendo também pela 6ª vara, onde tramita o processo n.º 001.2008.003792-6) negou o pedido liminar de suspensão da oferta da droga, alegando não haver provas suficientes de que ela é abortiva.[8]
A atitude de Dom José Cardoso Sobrinho deve, não só ser aplaudida, mas imitada. Ao que se sabe, esta é a primeira vez que alguém no Brasil recorre ao Judiciário contra a “pílula do dia seguinte”. Em outros países latino-americanos, como Argentina e Chile, essa medida já foi tomada há muitos anos pelos defensores da vida. Não podemos desistir. Sempre há a esperança de que o processo venha a cair nas mãos de um juiz que não admita que uma pílula possa mudar o passado…
Roma, 20 de fevereiro de 2008.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] WILKS, John. Contracepção pré-implantatória e de emergência. In: PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A FAMÍLIA. Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 2007, p. 138.
[2] Pontifícia Academia para a Vida – Declaração sobre a chamada ‘pílula do dia seguinte’ – Cidade do Vaticano, 31 de outubro de 2000.
[3] Disponível em http://www.postinor2.com.br. Acesso em 28/04/2001.
[4] Disponível em: <http://www.ache.com.br/scripts/produtos/produto.asp?idClasse=0&;idPrincipio=0&idProduto=66> Acesso em: 10 fev. 2008. Os grifos são nossos.
[5] BRASIL. Ministério da Saúde. Anticoncepção de Emergência. 28 jan. 2008. Elaboração: Jefferson Drezett. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/artigo_anticoncepcao_emergencia_2008.pdf Acesso em: 09 fev. 2008.
[7] Cf. GUIBU, Fábio. Igreja promete entrar na Justiça contra pílula do dia seguinte
[8] Cf. BRENDLER, Adriana. TJ-PE nega pedido de suspensão da oferta de pílula do dia seguinte no carnaval. Agência Brasil, Brasília, DF, 30 jan. 2008. Disponível em: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/01/30/materia.2008-01-30.7990285403/view