(testemunho de vítimas de violência sexual)

Em janeiro de 2000, estávamos às voltas com um caso particularmente grave. Fabiana, uma adolescente de 15 anos, moradora de Goiânia, violentada pelo amásio da mãe (o “padrasto”), fugitivo, estava grávida de cinco meses e aguardava do Hospital de Jabaquara (São Paulo)[1] uma resposta: se iriam ou não fazer o aborto nela. O fato ganhou repercussão internacional. Dr. Jorge Andalaft, na época responsável pelos abortos daquele hospital, reclamou que estava recebendo trinta telefonemas por hora (!) de toda a parte do mundo.

Uma das pessoas do que se comunicou com ele foi Julie Makimaa, de Fennville, estado de Michigan, EUA. No dia 3 de janeiro, ela lhe enviou um fax de onze páginas, contando sua história pessoal e suplicando que poupasse a vida da criança por nascer. Eis um trecho da carta (traduzido do inglês):

 


 

Prezado Dr. Andalaft.

Nesta tarde eu ouvi falar de uma jovem, grávida de incesto, que está agora procurando aborto em seu hospital. Para mim, os temas de estupro e gravidez são muito pessoais.

Posso identificar-me com a dor e confusão profundas que ela está enfrentando, os sentimentos de culpa e violação, e o medo de carregar a criança. Eu entendo sua dor, porque minha mãe, uma virgem aos dezoito anos, foi estuprada por meu pai biológico e eu fui concebida.

makimamdJulie Makimaa e sua mãe

O aborto não estava disponível para ela em 1964[2], mas seus amigos ofereceram-lhe ajuda para obter um aborto. Diziam-lhe que ela não deveria carregar um filho de um “estuprador” e que o aborto seria a melhor resposta. Ela é tão grata hoje por nunca ter feito um aborto. Juntas nós compartilhamos uma relação estreita e amorosa e ela também acalenta os seus dois netos.

Descobrimos que a dor do passado foi substituída pelas alegrias do presente. Fui concebida em uma violência, mas sou grata por não ter recebido a pena de morte pelo crime de meu pai.

Todos nós queremos ajudar essa jovem a recuperar-se da dor e violência sofridas, mas poderá a violência adicional do aborto e da morte da criança proporcionar a cura e a plenitude para sua vida? Gostaria de responder a essa questão com as histórias de duas mulheres que conheci pessoalmente. Patricia e Karen engravidaram de um estupro e fizeram aborto. Espero que você tenha tempo de ler as experiências pessoais delas escritas por suas próprias palavras (veja a seguir).

[…]

Em 11 anos eu nunca encontrei uma mulher grávida por estupro que se arrependesse de dar à luz seu filho. Creio que se for concedida a oportunidade a essa jovem, ela sentirá o mesmo.

Como filha concebida em um estupro, eu espero que você reconheça a outra vítima inocente da violência. Por favor, considere a “nova vida” que está em suas mãos. Posso assegurar que você nunca se arrependerá de ter tomado a decisão de salvar a criança inocente e que ele ou ela será eternamente agradecido.

[…]

Sinceramente,

Julie Makimaa.

* * *

Pat [Patricia]

Finalmente eu fui para a faculdade, pela primeira vez longe de casa. Eu me senti tão bem por sair sozinha. Uma amiga convidou-me para uma festa, e embora eu não a conhecesse muito bem, queria fazer novos amigos e aceitei ir.

Saímos da festa cedo e paramos em um bar do local. Dois sujeitos no bar convidaram-nos para um drinque. Achei estranho que os copos estivessem prontos na mesa antes mesmo de nós nos sentarmos. A bebida era terrivelmente forte e depois de dois goles eu recusei a tomar mais, mas dentro de poucos minutos comecei a me sentir extremamente tonta e sonolenta.

Um dos rapazes perguntou-me se ele poderia levar-me para casa. Aceitei porque me sentia assustada e desorientada. Mal conseguia caminhar e estava com dificuldade de falar.

Mas em vez de me levar para casa, ele me levou para uma velha casa arruinada, perto do campus. Lá ele me estuprou duas vezes. Eu rezava durante o estupro, imaginando minha família e meu namorado, e suplicava a Deus por minha vida. Fiquei aliviada quando ele finalmente terminou comigo. Estive semiconsciente toda a noite e finalmente acordei quando ele estava se levantando.

Eu não podia acreditar no que havia acontecido comigo. Ele agia como se eu fosse uma participante voluntária no que tinha ocorrido, como se tudo fosse perfeitamente normal. De manhã, ele me soltou em frente à loja onde eu trabalhava.

Eu estava em choque. Sentia-me enojada e humilhada com tudo o que acontecera. Atordoada, fui para casa tomar banho uma e outra vez. Não contei a ninguém o que me tinha acontecido. Como eu tinha voluntariamente ido à festa e tomado um drinque, sentia que o estupro tinha sido minha culpa. Eu tinha decidido guardar comigo esse feio segredo, mas com o tempo não consegui mais esconder minha dor.

Um dos meus amigos sugeriu que eu fosse à Planned Parenthood[3] para um teste de gravidez e aconselhamento. Foi muito impessoal e humilhante. Quando confirmaram minha gravidez, comecei a chorar incontrolavelmente e disse-lhes que tinha sido estuprada. Os conselheiros perguntaram-me como eu poderia criar sozinha um bebê e o que eu faria se o bebê tivesse deficiências que poderiam resultar da droga que o estuprador me havia dado.

Senti-me totalmente sozinha e desamparada, e então os conselheiros tornaram-se mais simpáticos e se ofereceram para fazer os preparativos para cuidar do meu problema. Um aborto me permitiria prosseguir com minha vida. Eu não teria que dizer a ninguém, poderia casar-me com meu namorado, e as coisas voltariam ao normal.

O medo e a dor fizeram-me chorar durante o procedimento. Era quase tão humilhante quanto o próprio estupro; o médico nem sequer olhava para mim, e as enfermeiras eram corteses, mas distantes e friamente profissionais.

Depois do aborto, eu chorei por dias. Sofri terríveis pesadelos. Quando algo disparava as lembranças, era como se eu estivesse de volta na mesa indo para o aborto novamente. Não podia suportar a visão de mulheres grávidas ou bebês. Sentia-me dominada pela tristeza e pela dor e sonhava com bebês mortos. Incapaz de manter um emprego ou função, telefonei para meus pais e mudei-me de volta para casa.

Minha mãe pediu-me para nunca falar sobre o estupro novamente e meu pai chamou-me de “vagabunda” e “prostituta”. Disse que eu procurei e mereci o que ganhei. Arrasada com a reação deles, fui morar com outra amiga.

Em minha experiência, o aborto só agravou o trauma e a dor que eu já tinha experimentado. Eu era a vítima inocente de um horrível crime, mas ao decidir abortar, matar a inocente criança que crescia dentro de mim, eu me rebaixei ao nível do estuprador. Eu também cometi um crime contra um bebê indefeso que não tinha feito nada de errado.

Um criminoso pode ter gerado a criança, mas eu era mãe, e matei uma parte de mim mesma quando fiz o aborto. Eu definitivamente desencorajaria uma mulher de fazer um aborto. Embora ele possa parecer a solução mais rápida para um “problema” doloroso e humilhante, é uma aplicação “band-aid” com suas próprias horríveis consequências.

Para mim, os efeitos do aborto são de muito mais longo alcance que os efeitos do estupro em minha vida.

Karen

Karen partilha suas experiências pessoais na esperança de que outras vítimas de estupro não sofram como ela pelo trauma adicional do aborto.

Por fora eu era uma jovem normal de 15 anos, que se divertia fazendo compras com meus amigos, escutando música e indo ao cinema, mas por dentro algo estava terrivelmente errado.

No hospital, fiquei sabendo que, além de estar muito doente com a gripe, eu estava grávida. Senti-me envergonhada e suja, e aterrorizada em explicar as horríveis coisas que meu pai tinha feito comigo.

O médico perguntou-me o que eu planejava fazer. Respondi-lhe que queria ter meu bebê. Apesar da dor de saber quem era o pai do meu bebê, eu tinha assistido a O grito silencioso[4] no colégio e sabia que nunca poderia causar dano ao bebê…

Quando meu pai ouviu que eu estava grávida, voou furioso exigindo um aborto. O médico recusou, porque era contra os meus desejos, mas meu pai conseguiu encontrar outro médico que não se importou com o que eu sentia.

Foram necessárias três enfermeiras para me segurar e me amarrar na mesa. Tentaram me sedar, mas eu continuei gritando que não queria um aborto. Finalmente fui submetida à anestesia geral e meu bebê foi morto.

Disseram que meus pais sabiam o que era melhor para mim, mas eu sabia que a única preocupação deles era esconder nosso segredo familiar. Depois do aborto, o abuso continuou. A evidência se foi e eu fiquei com o coração partido.

Seriam mais dois anos até que eu escapasse de meu pai abusador. Eu queria ter podido fazer mais para salvar a vida de minha filha. Na minha mente, não importa como ela foi concebida; ela era uma vítima inocente, assim como eu.

Eu sei que o aborto não foi por minha culpa, mas não consigo deixar de sentir a dor da perda de minha filha. Queria ter podido fazer mais para lutar pela vida dela. Eu nunca a esquecerei.

* * *

Resultado:

No dia 5 de janeiro de 2000, Dr. Andalaft informou que o Hospital de Jabaquara não faria o aborto em Fabiana. No dia 6, Fabiana já havia desistido totalmente da ideia do aborto. O menino nasceu em 15 de maio, por parto normal e foi batizado com nome de Vítor no dia 17 de junho.

fabvitorFabiana e seu filho Vítor

Como era de se esperar, Fabiana apaixonou-se pelo bebê, assim como sua mãe. Vítor foi uma bênção para a vida de ambas.

Anápolis, 1º de fevereiro de 2017

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

 



[1] O Hospital Dr. Arthur Ribeiro de Saboya, conhecido como Hospital de Jabaquara, na capital paulista, foi o primeiro a usar o dinheiro público para fazer abortos. Essa prática criminosa foi introduzida lá em 1989, graças à iniciativa da então prefeita Luíza Erundina (PT).

[2] Somente em 1973 a Suprema Corte dos EUA, na infame decisão Roe versus Wade, declararia “legal” o aborto em todo o território estadunidense.

[3] Filial nos Estados Unidos da “multinacional da morte”, a IPPF: Federação Internacional de Planejamento Familiar.

[4] Um filme feito por Dr. Bernard Nathanson que mostra o aborto de uma criança de três meses filmado por ultrassonografia.

Compartilhe

Deixe um comentário