(Segundo Barroso, tal “direito” independe da aprovação da maioria)
Todo estudante de Direito aprende que os direitos e garantias fundamentais elencados no artigo 5º da Constituição Federal – dos quais o primeiro é o direito à vida – não podem ser suprimidos nem sequer por emenda à Constituição. Isso porque, conforme o artigo 60, §4º da Carta Magna, “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV- os direitos e garantias individuais”. Assim, a prática do aborto não só é inconstitucional – por violar o direito fundamental à vida – como nunca poderá ser constitucional. A inviolabilidade do direito à vida constitui aquilo que se chama “cláusula pétrea”.
Até agora, nada de novo. O que houve de novo, surpreendente e absurdamente novo, é que o Ministro Luís Roberto Barroso transferiu o que se refere ao direito à vida para o suposto direito de matar. Ouçamos suas palavras pronunciadas no I Congresso Internacional de “Direito e Gênero” (sic!) promovido pela Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro em 12/11/2018:
Quais são os direitos fundamentais? O primeiro é, evidentemente, a autonomia da mulher. – A autonomia significa o direito de autodeterminação e da mulher fazer as suas escolhas existenciais. O Estado não tem o direito de mandar o delegado de polícia, o promotor de Justiça ou um juiz de direito obrigar a mulher a permanecer grávida de um filho que ela não quer ter. Portanto, a autonomia significa que a mulher faz as suas escolhas existenciais. Ela não é um útero a serviço da sociedade[1].
Pasmem: o Estado não tem o direito de fazer a mãe respeitar a vida do filho! E a mãe tem o direito “fundamental” (!) de escolher se mata ou não a criança que já foi gerada e está em seu ventre! É a consagração do direito de matar. Segundo Barroso, tal direito não apenas estaria contido (onde?) no texto da Constituição, mas nem sequer dependeria da vontade do legislador (o Congresso Nacional) nem da aprovação das maiorias! Examinemos suas palavras:
As características dos direitos fundamentais são: eles independem da vontade do legislador ou da aprovação das maiorias e, ao meu ver, nem emenda constitucional pode impedir o desfrute de um direito fundamental, o que no caso brasileiro seria a violação de cláusula pétrea[2].
Note-se: para ele o suposto direito ao aborto já existe. Não é preciso que o Congresso aprove tal direito nem é necessário que a maioria da população se manifeste em um plebiscito. Quem então deve-se manifestar sobre tal “direito”? O Supremo Tribunal Federal, do qual ele faz parte, e onde está sendo julgada a ADPF 442, que pretende obter a “legalização” do aborto até a 12ª semana de gestação. Ouçamos a apologia que ele faz do poder absoluto do STF:
Por que seria próprio para o Poder Judiciário, o STF, e não para o Congresso Nacional deliberar sobre essa questão? Porque essa vai ser uma questão chave no debate brasileiro. Porque estão em jogo direitos fundamentais. Os direitos fundamentais da mulher e, para quem acha que existe vida desde o momento da concepção, também os direitos fundamentais do feto[3].
Perceberam? A “mulher” tem direitos fundamentais (entre eles, o direito de matar). A criança, por ele chamada “feto”, talvez também tenha direitos, mas isso depende do “achismo”: alguém pode “achar” que existe vida desde o momento da concepção. As propriedades objetivas do desenvolvimento embrionário – a coordenação, a continuidade e a gradualidade[4] – nada dizem ao Ministro sobre a vida humana individual. Tudo depende da subjetividade de cada um …
A posição de Barroso seria verdadeira se ele se referisse aos direitos naturais. De fato, nós temos direito de viver não porque a Constituição nos concedeu tal direito, mas porque somos, por natureza, indivíduos racionais, dotados de faculdades – a inteligência e a vontade – cujas operações ultrapassam os limites da matéria e exigem como princípio uma alma espiritual. O espírito unido substancialmente ao nosso corpo dá-nos a dignidade de pessoa, o que nos torna superiores a todo o universo físico.
O raciocínio filosófico acima é, porém, totalmente alheio ao ministro Barroso, que não só não admite o Direito Natural, mas nem sequer a verdade absoluta. Eis o que ele disse em sua sabatina perante os Senadores da República em 05/06/2013, antes de ser investido no cargo de ministro do Supremo:
A verdade não tem dono. Existem muitas formas de ser feliz. Cada um é feliz à sua maneira, e desde que não esteja interferindo com a igual possibilidade de outrem, é isso que nós devemos fazer: respeitar. [..] É um verso muito feliz, que eu gosto de citar ao longo de minha vida, de um poeta espanhol Ramón de Campoamor, em que ele diz: ‘Neste mundo traidor, nada é verdade nem mentira, pois tudo tem a cor do cristal com que se mira’[5].
A posição relativista do ministro traz consigo sérias consequências:
1) Se a vida da criança por nascer (o nascituro) pode se negada, pois é uma questão de opinião subjetiva, o que impedirá alguém de negar que a gestante esteja viva? Ou o que impedirá alguém de negar que o próprio Ministro esteja vivo?
2) Se tudo é relativo, como pode ele afirmar com tanta ênfase que existe um direito fundamental ao aborto, que independe do legislador e da aprovação da maioria? No mundo relativo de Barroso, o direito ao aborto seria a única coisa absoluta?
3) Se o direito ao aborto não depende da aprovação da maioria, por que submetê-lo ao crivo dos onze ministros do STF? Se Barroso fosse coerente consigo mesmo, não deveria importar-se em obter a maioria dos votos de seus colegas juízes. Bastaria que decretasse, por si mesmo, que o direito ao aborto existe. E ponto final. Por que não faz isso?
Na verdade, o que Barroso defende não é um direito “da mulher” como mulher. Se assim fosse, ela só poderia abortar um filho do sexo masculino. Tal aborto seria a afirmação do seu direito de “mulher” sobre a vida do “homem”. Mas se o Ministro defende o direito de abortar também as meninas por nascer, não se pode falar em direito da mulher como mulher. O que ele defende é o direito de a mulher forte matar a mulher fraca, de a mulher grande matar a mulher pequena, de a mulher que tem voz matar a mulher que não pode gritar. Em outras palavras, o que Barroso defende é o direito do mais forte, o ius fortioris, que nada mais é do que a negação do direito.
Para defender sua tese, Barroso usa o argumento “maria-vai-com-as-outras”: “A criminalização [do aborto] não é uma política adotada em nenhum país desenvolvido do mundo” [6]. Ora, se os países ditos “desenvolvidos” fazem o mal, quem somos nós para fazermos o bem? Se eles não respeitam a criança por nascer, por que nós haveríamos de respeitá-la? A resposta é simples, senhor Ministro: Não somos obrigados a copiar maus exemplos, venham eles de onde vierem. Nós, brasileiros, devemos nos orgulhar de termos proteção penal ao nascituro e lamentar que outras nações não façam como nós.
O verdadeiro motivo pelo qual Barroso quer que o suposto direito ao aborto seja decidido no Supremo Tribunal Federal é o seguinte: a Suprema Corte é um caminho fácil, sem resistência e irrecorrível.
É um caminho fácil em relação ao complicado processo legislativo, que exige a tramitação de um projeto de lei ou proposta de emenda por várias comissões e plenários do Congresso Nacional.
É um caminho sem resistência, uma vez que os onze ministros, todos eles nomeados pelo presidente da República e nenhum deles eleito pelos cidadãos, não dependem de nós para manter-se no poder, mas lá deverão permanecer até completarem 75 anos de idade (cf. art. 100, ADCT, CF).
É um caminho irrecorrível, uma vez que não há recurso contra uma decisão do STF, por mais disparatada que seja.
O que Barroso pretende fazer, juntamente com seus colegas do Supremo, é um ato de covardia comparável à do aborto que ele quer legalizar. Arvorando-se em juiz todo-poderoso, o ministro pretende impor a nós, cidadãos, o direito a um crime que nos repugna.
Barroso pensa que é Deus, mas, convenhamos, é um péssimo imitador de Deus. Pois o Senhor não é um tirano arbitrário. Ele é Poder, mas é também Sabedoria e Amor. Trocando a sabedoria pela retórica falaciosa e o amor pelo egoísmo, nada resta ao Ministro senão a tirania do poder.
Anápolis, 3 de dezembro de 2018.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[2] Loc. cit.
[3] Loc. cit.
[4] Cf. Centro di Bioetica dell’università Cattolica del Sacro Cuore, “Identidade e estatuto do embrião humano”, Medicina e morale 6 (1996) supplemento, p. 67-68.