(nem tudo era melhor antigamente)
Ao ouvirmos a descrição do paraíso terrestre e o relato do pecado original, logo vem a nossa mente: “Como seria bom se Adão não houvesse pecado… Ele teria conservado a graça para si e para nós…”
Diante do avanço da cultura da morte, muitos de nós são levados a pensar “antigamente era melhor” ou a lamentar “por que vim viver justamente nesta época?”. No entanto, a Escritura nos adverte contra tais afirmações:
“Não digas: ‘Por que os tempos passados eram melhores que os de agora?’. Não é a sabedoria que te faz levantar essa questão” (Ecl 7,10).
Sem dúvida, o pecado de Adão foi um grande mal. Podemos e devemos chorar por essa grande ofensa feita a Deus. No entanto, tal pecado serviu de ocasião para Deus demonstrar quanto é grande a sua misericórdia. Se não tivesse havido pecado, não teria havido perdão. O pecado, não aprovado mas previsto por Deus, serviu de ocasião para a nossa Redenção, que foi um benefício muito maior. É o que explica o saudoso mestre Dom Estêvão Bettencourt:
Um mundo onde haja pecado pode ser melhor do que um mundo sem pecado desde que o pecado se torne ocasião de um bem maior. Ora, o pecado, em nosso mundo, deu ocasião à Encarnação e à Redenção; contribuiu para manifestar melhor o amor de Deus aos homens; o Filho de Deus se tornou Filho dos homens para que os homens por ele se tornassem filhos de Deus (filhos no FILHO). Daí os dizeres da Liturgia de Sábado Santo: ‘Ó feliz culpa, que nos mereceu um tal e tão grande Redentor!’[1]
São Paulo insiste em dizer que Cristo, por sua obediência, trouxe-nos uma graça bem mais abundante do que aquela que Adão perdeu por sua desobediência:
Entretanto, não acontece com o dom o mesmo que com a falta. Se pela falta de um só todos morreram, com quanto maior profusão a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre todos. […] Ora, a Lei interveio para que avultasse a falta; mas onde avultou o pecado, a graça superabundou (Rm 5,15.20).
Ao argumento de que o fato do mal parece contradizer a existência de Deus, Santo Tomás de Aquino responde:
À primeira objeção, respondo dizendo que, segundo diz Agostinho no Enchiridio [3,11]: ‘Deus, soberanamente bom, não permitiria de modo algum a existência de qualquer mal em suas obras, se não fosse poderoso e bom a tal ponto de poder fazer o bem a partir do próprio mal’. Assim, à infinita bondade de Deus pertence permitir males para deles tirar um bem[2].
É isso também o que ensina o Catecismo da Igreja Católica:
Assim, com o passar do tempo, pode-se descobrir que Deus, em sua providência todo-poderosa, pode extrair um bem das consequências de um mal, mesmo moral, causado por suas criaturas: ‘Não fostes vós, diz José a seus irmãos, que me enviastes para cá, foi Deus; o mal que tínheis a intenção de fazer-me, o desígnio de Deus o mudou em bem, a fim de… salvar a vida de um povo numeroso’ (Gn 45,8; 50,20). Do maior mal moral jamais cometido, a saber, a rejeição e homicídio do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os homens, Deus, pela superabundância de sua graça, tirou o maior dos bens: a glorificação de Cristo e a nossa Redenção. Com isso, porém, o mal não se converte em um bem[3].
De fato, ainda que Deus tenha tirado um bem da crucifixão de Jesus e da própria traição de Judas, tais pecados não deixam de ser pecados: “Com efeito, o Filho do Homem vai, conforme está escrito a seu respeito, mas ai daquele homem por quem o Filho do Homem for entregue! Melhor seria para aquele homem não ter nascido! (Mt 26,24)”. Do mesmo modo, ainda que Deus tire um bem da prática do aborto, este não deixe de ser um “crime abominável, vergonha para a humanidade”[4]. Temos que chorar sobre tal pecado e lutar para que ele seja eliminado das nações.
“Não fiqueis a lembrar coisas passadas” (Is 43,18)
Vivemos em um mundo melhor que o do tempo de Adão. Temos o Filho de Deus não apenas no seio do Pai, mas feito homem no seio da Virgem Maria, e habitando entre nós no Santíssimo Sacramento. Seu corpo e sangue, entregues um dia ao Pai na cruz pela nossa Redenção, tornam-se presentes em cada Santa Missa que é celebrada. E nós podemos comer e beber deles, ocultos sob as espécies do pão e do vinho. Com o cansaço e o sofrimento livremente aceitos e oferecidos, temos uma ocasião especial de amar a Deus e ao próximo. E temos ainda Maria Santíssima que, com seu castíssimo esposo São José, vela por nós com amor de mãe socorrendo-nos “às pressas” (Lc 1,39) e não nos deixando faltar vinho (cf. Jo 2,3). “Vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap 12,1), ela intercede no céu por nós até que um dia cheguemos à glória de seu Filho. Nada disso Adão e Eva possuíam no Jardim do Éden.
O tempo em que vivemos goza de favores especiais do Céu. Desde 1910, graças a um decreto do Papa São Pio X, as crianças podem comungar logo que tenham atingido a idade da discrição, deixando para depois o aprofundamento catequético. Desde 1983, o Código de Direito Canônico permite que comunguemos não apenas todos os dias – o que não era em geral permitido nos séculos anteriores – mas até duas vezes no mesmo dia, desde que participemos de duas Santas Missas (cf. cânon 917). A Festa da Misericórdia, pedida tantas vezes por Jesus a Santa Faustina Kowalska, é agora uma solenidade litúrgica, celebrada no segundo domingo da Páscoa e enriquecida com indulgência plenária. Em 1993, São João Paulo II presenteou-nos com a magnífica encíclica Veritatis splendor, a carta magna da Moral católica. E em 1995, na encíclica Evangelium vitae, usou de sua autoridade apostólica para definir infalivelmente que “o aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave” (EV 62). Graças ao exemplo do mesmo Papa e ao lema por ele adotado – Totus tuus (Todo teu) – agora multiplicam-se os grupos de consagrados à Santíssima Virgem pelo método de São Luís Maria Grignion de Montfort.
É verdade que antigamente, bem mais do que hoje, os jovens guardavam a virgindade até o matrimônio, as famílias eram numerosas, as mulheres vestiam-se decentemente e se dedicavam quase integralmente ao lar. Mas também é verdade que, em grande parte do povo, esse comportamento era observado mais por costume ou tradição do que por convicção.
Hoje, embora menos numerosos, vemos jovens que, por verdadeiro amor à castidade, namoram santamente em preparação para o matrimônio. Embora ainda poucos, multiplicam-se hoje os casais que, remando contra a correnteza, abrem-se à vida e se alegram por gerar muitos filhos. As moças que hoje se vestem decorosamente não o fazem por causa das outras, mas apesar das outras e por puro amor ao Espírito Santo, hóspede de seu corpo. E as mulheres que hoje se dedicam exclusivamente ao lar fazem isso com conhecimento de causa, cientes da importância de sua presença maternal.
Tudo isso encontramos, por exemplo, na Comunidade Católica Famílias Novas do Imaculado Coração de Maria, cuja missão é “renovar todas as famílias em Cristo”[5]. Tive a honra e a alegria de presenciar os abundantes frutos de renovação que têm atingido tantas famílias a partir dessa comunidade.
Cito aqui um trecho do epílogo do livro “IPPF: a multinacional da morte”, de Jorge Scala, que, após narrar numerosas tragédias, termina afirmando, com otimismo, que a próxima geração será melhor que a atual:
Mesmo que pareça paradoxal, a seleção natural da espécie humana nos ajudará nesta tarefa: esta seleção não se fará da maneira sonhada por Darwin ou por Malthus, mas de uma forma realmente natural. Disse Lech Walesa: “em minhas atividades, chegado o momento de agir, felizmente inspirou-me o instinto do homem saído – e por sua vez pai – de uma família numerosa. Por outra parte, essa foi sempre a tradição entre os meus: uma fileira de filhos, uma vasta ramificação familiar. Neste simples traço biológico reside talvez um valor que me permite permanecer em pé apesar das vicissitudes do destino”. Na próxima geração haverá muitos Walesa e quase nenhum Rockefeller nem Mc. Namara. E o Mundo necessita de muitos Walesa e de nenhum Rockefeller e de nenhum Mc. Namara. Por isso, a próxima geração será melhor que a atual.[6]
Anápolis, 4 de fevereiro de 2019.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] ESCOLA MATER ECCLESIAE. Curso de Iniciação Teológica por correspondência, módulo 16, lição 1, item 1.3.
[2] S. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q. 2, a. 3, sol. 2.
[3] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 312.
[4] S. JOÃO PAULO II. 2º Encontro Mundial do Papa com as Famílias. Rio de Janeiro, 04 out. 1997.
[6] Jorge SCALA. IPPF: a multinacional da morte. Anápolis: Múltipla, 2004, p.331-332.