(uma técnica que nem sempre funciona)
No dia 28 de fevereiro de 2019, estive no gabinete do Senador Eduardo Girão (PODE/CE) a pedido de Pe. Pedro Stepien, com vários outros líderes pró-vida, a fim de conversarmos sobre a PEC 29/2015, chamada “PEC da Vida”. Trata-se de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de autoria do Senador Magno Malta (PR/ES) e outros, que “altera a Constituição para acrescentar no artigo 5º a explicitação inequívoca da inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. Essa PEC, arquivada no fim da legislatura passada, foi desarquivada pelo Senador Eduardo Girão, com grande festa dos militantes pró-vida.
No entanto, como o senador parecia fazer confusão no que diz respeito ao aborto em nossa legislação, coube a mim a tarefa de esclarecer a ele:
- que não há aborto legal em nosso país;
- que o Código Penal em momento nenhum “permite” o aborto;
- que o artigo 128 desse Código simplesmente deixa de aplicar a pena ao criminoso em duas hipóteses, que nem por isso deixam de constituir crime.
Assim sendo, a PEC da Vida não iria extinguir o “aborto legal” (que não existe), nem iria “proibir” o aborto em dois casos (que já são proibidos), mas iria tão somente explicitar o que já está implícito: que o direito à vida é inviolável “desde a concepção”. Seria uma simples questão de clareza, com o fim de afugentar os fantasmas noturnos do aborto. Enquanto os promotores do aborto amam a obscuridade e as trevas, “quem pratica a verdade se aproxima da luz, para que suas obras sejam manifestadas, já que são praticadas em Deus” (Jo 3,21).
No entanto, percebi que o senador não ficou muito convencido com minhas palavras. Disse ele que pretendia aprovar a PEC sem entrar em discussão sobre o aborto, avançando aos poucos, “comendo pelas beiradas”, como se faz com um prato de sopa quente.
Depois percebi que a situação era bem mais grave. O senador havia feito um acordo com seus colegas do Senado a fim de aprovar a PEC da Vida com algumas ressalvas, assegurando as supostas “permissões” (?) atualmente existentes para o aborto[1].
A senadora Selma Arruda (PSL/MT), relatora da PEC 29/2015 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), emitiu um parecer pela aprovação da proposta com uma emenda. Em tal emenda, o “caput” do artigo 5º passaria a ter como nova redação a “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”, mas (eis o perigo!) tal artigo seria acrescido de um parágrafo 5º, assim redigido:
Art. 5º…
§ 5º Assegura-se a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção, não sendo punível o aborto exclusivamente nos seguintes casos:
I – se não há outro meio de salvar a gestante;
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando absolutamente incapaz, de seu representante legal.
Assim, graças à “PEC da Vida”, pela primeira vez na história a não punição do aborto figuraria na nossa Constituição entre os “direitos e garantias fundamentais” (!). Tornar-se-ia uma cláusula pétrea, ou seja, não poderia ser abolida sequer por emenda à Constituição[2]! E como erroneamente, mas habitualmente, esta não aplicação da pena é interpretada como uma permissão para abortar, o suposto “direito ao aborto” estaria em nossa Carta Magna, graças a uma PEC feita para defender a vida!
O senador argumenta que essas concessões foram feitas para permitir um “avanço” na defesa da vida. De outro modo, argumenta ele, essa PEC jamais seria aprovada. Com tais ressalvas, ela será facilmente aprovada e impedirá (como?) o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, que está prestes a legalizar o aborto até três meses pela ADPF 442.
Comendo pelas beiradas…
Quando o objetivo é consumir, derrubar, fazer cair, corromper ou destruir, a tática de “comer pelas beiradas” funciona. Quando se deseja demolir uma casa, pode-se golpear várias vezes nas paredes até que a estrutura comece a ceder. Eis alguns exemplos:
Na impossibilidade de se legalizar o aborto irrestritamente de uma só vez, começa-se com um caso bem específico, como o de uma criança acometida de anencefalia. Depois, passa-se aos casos de microcefalia, depois aos casos de síndrome de “Down” e assim por diante, até chegar ao aborto por simples solicitação da gestante.
Para corromper a família, começa-se com o divórcio em casos muito especiais, depois passa-se ao divórcio facilitado, à “união estável” entre um homem e uma mulher vivendo como concubinos, até “união estável” entre pessoas do mesmo sexo.
Mas, quando o objetivo é construir, o caso é diferente…
No caso da sopa quente, ela tem uma tendência natural a esfriar. Come-se pelas beiradas (que são mais frias) até atingir-se o centro (que ainda está quente). No caso da casa a demolir, ela tem, como qualquer corpo, uma tendência natural a cair. Não é preciso empurrá-la para baixo. Basta bater nos seus lados, desequilibrá-la, e a queda ocorrerá naturalmente. Se o objetivo é corromper a sociedade, basta ceder um pouquinho para que a corrupção ocorra por si só.
No entanto, se queremos servir a sopa no prato, não começamos pelas beiradas. A sopa quente se coloca no centro. Aliás, se a lançamos nas beiradas, ela corre para o centro.
Analogamente, se desejamos construir uma casa, não podemos contentar-nos com um alicerce medíocre, na esperança de que no futuro a construção se torne sólida. Como a edificação não tem tendência de se solidificar por si só, é preciso tomar cuidado para que o alicerce seja o mais firme possível. Qualquer falha na fundação pode ser fatal.
Em nossa luta pela cultura da vida, nem sempre podemos utilizar as mesmas táticas que as de nossos adversários.
Os fautores da cultura da morte têm a seu favor a tendência natural do homem a se corromper, a dificuldade de enxergar sua própria fraqueza e a ilusão de que é possível aceitar uma pequena corrupção sem se corromper mais ainda.
Nós, porém, que estamos lutando para construir e não para destruir, para dar a vida e não para matar, não podemos esperar que avançaremos “aos poucos”, de mediocridade em mediocridade, cedendo aqui e lá na solidez do edifício. Não há uma simetria perfeita entre os meios que nossos adversários usam e aqueles que nós podemos usar, seja por motivos morais, seja por motivos estratégicos.
Há valores inegociáveis
Quando em 2006, Bento XVI discursou aos participantes do Congresso promovido pelo Partido Popular Europeu, destacou que nem tudo pode ser decidido por votação. Há valores não negociáveis, que cabe ao homem apenas reconhecer e respeitar:
Quanto à Igreja Católica, o interesse principal de suas intervenções na arena pública é a defesa e a promoção da dignidade da pessoa, e assim ela reclama conscientemente uma particular atenção aos princípios que não são negociáveis. Entre estes últimos, hoje emergem particularmente os seguintes:
— defesa da vida em todas as suas fases, do primeiro momento da concepção até à morte natural;
— reconhecimento e promoção da estrutura natural da família, qual união entre um homem e uma mulher baseada sobre o matrimônio, e a defesa contra as tentativas de torná-la juridicamente equivalente a formas radicalmente diversas de uniões que, na realidade, danificam-na e favorecem a sua desestabilização, obscurecendo o seu caráter particular e o seu insubstituível papel social.
— a defesa do direito dos pais de educar os próprios filhos.[3]
PEC da Vida torna-se PEC da Morte
Com as concessões feitas pelo senador Eduardo Girão, a PEC 29/2015 tornou-se a PEC da Morte. Como seria bom se ele e seus aliados se conservassem intransigentes na defesa da vida e da verdade e coubesse a nós pedir aos outros parlamentares que apoiassem sua proposta…
Como, porém, a PEC da Vida sofreu um giro de 180º (um “girão”), não nos resta senão alertar ao senador para que desperte do delírio que está sofrendo, que pode ser fatal para a nação brasileira.
Ligue para o gabinete do Senador Eduardo Girão [(61) 3303-6677 / 6678 / 6679] ou envie-lhe uma mensagem [sen.eduardogirao@senado.leg.br] manifestando a sua perplexidade:
“Senador, não permita que a PEC da vida contenha ressalvas. A vida é inegociável”.
Anápolis, 06 de maio de 2019.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis.
[1] Cf. SENADO NOTÍCIAS. PEC que proíbe aborto pode ser emendada para incluir as exceções da lei atual. 15/02/2019, 18h36. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/15/pec-que-proibe-aborto-pode-ser-emendada-para-incluir-as-excecoes-da-lei-atual.
Emenda deve assegurar legalidade do aborto nos casos já previstos em lei. 18/02/2019, 17h46. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2019/02/emenda-deve-assegurar-legalidade-do-aborto-nos-casos-ja-previstos-em-lei. Acesso em 03 maio 2019.
[2] Art. 60, § 4º, CF: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias individuais.