Um Código para o século XXI. É assim que o Ministro da Justiça Renan Calheiros define o Anteprojeto para a Reforma do Código Penal a ele entregue no dia 8 de abril de 1999 pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, presidente da Comissão Revisora. A versão anterior do Anteprojeto, publicada em 25 de março de 1998 era ruim. Mas esta, reelaborada pela Comissão Revisora, depois de ouvidas (e desprezadas solenemente) as críticas e sugestões da sociedade, é ainda pior. Enganou-se quem deu ouvidos às palavras de ambos os Ministros em agosto de 1998, quando a imprensa noticiou que o Anteprojeto não tocaria em temas polêmicos como o aborto, deixando intacto o artigo 128 do Código Penal (cf. Governo não muda aborto. Jornal do Brasil, 2/8/98). É lamentável (e espantoso) constatar com que facilidade nossos Ministros dizem e desdizem uma coisa. Vejamos as principais mudanças entre a versão de 25/05/98 e a de 08/04/99:
1. A versão anterior já trazia os preparativos para se legalizar a eutanásia. Ela ainda continuava sendo crime, mas seria punida no máximo, com reclusão de 6 anos (art. 121§3º), exatamente igual à pena mínima para o homicídio simples. A versão atual diminuiu ainda mais a pena da eutanásia: no máximo, 5 anos de reclusão (art. 121§3º).
2. A versão anterior previa para o aborto provocado pela própria gestante a ridícula pena de 1 a 9 meses de detenção (art. 124), inferior à pena aplicada para quem mata um animal em extinção, que nunca é inferior a 9 meses de detenção (cf. Lei 9.605, de 12.02.98, art. 29 §4º). Talvez atendendo a pedidos, a Comissão Revisora resolveu aumentar a pena para o auto-aborto para “detenção de seis meses a dois anos”. Mas com um “pequeno” detalhe (contenha-se para não rir): “podendo o juiz, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena” (art. 124). Desta vez é reduzida a zero a pena para a mãe que mata o filho em seu ventre.
3. A versão anterior previa a criação do aborto legal no artigo 128 pela troca das palavras “não se pune” por “não constitui crime“. Pela primeira vez na história (depois de muitas tentativas) o aborto passaria a ser não apenas impunível, mas converter-se-ia em um direito. Para tirar qualquer dúvida quanto a esse “direito”, a Comissão resolveu colcocar a rubrica “exclusão de ilicitude” no artigo 128. Em que casos haveria o direito de matar o nascituro? Em três casos:
I – se não houvesse outro meio de salvar a vida ou preservar a saúde da gestante;
II – se a gravidez resultasse de violação da liberdade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida;
III – se houvesse fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais.
Note-se que, para se legitimar o aborto, não se requeria que ele fosse o único meio para salvar a vida da gestante (caso este que nunca ocorre). Seria exigido apenas que ele fosse necessário para preservar a “saúde” da gestante. Cólicas, enjôos ou mesmo indisposição psicológica poderiam ser enumerados (como são nos Estados Unidos) entre os problemas de “saúde” que justificariam o aborto.
O inciso II, além de autorizar o aborto em gravidez resultante de estupro, estendia tal “direito” a qualquer adolescente grávida menor de 14 anos. Sim, pois a Comissão tivera o cuidado de incluir entre os crimes contra a liberdade sexual a conjunção carnal com menor de 14 anos, ainda que feita com o consentimento ou a pedido dela (art. 163)!
O inciso III, totalmente novo, em homenagem póstuma ao nazismo, autorizava a eliminação de seres humanos física ou mentalmente defeituosos.
A versão atual do Anteprojeto (art. 127) conserva substancialmente todas as barbaridades da versão anterior, incluindo o aborto a pedido para as adolescentes (cf. art. 166) e o aborto eugênico. Uma pequenina mudança foi, no inciso I, a exigência de o aborto ser o único meio de “preservar de grave e irreversível dano a saúde da gestante”. Vale aqui lembrar as palavras da Academia de Medicina do Paraguai: “En casos extremos, el aborto es un agravante y no una solución al problema” (04/07/1996).
4. A versão anterior previa a exclusão dos crimes de bigamia (art. 235), adultério (art. 240) e manutenção de casas de prostituição (art. 229) do atual Código Penal. A versão atual mantém a descriminalização de tais condutas, conforme as palavras do Ministro Renan Calheiros: “a transformação no modo de as pessoas encararem o adultério, a sedução e a bigamia, tipificados como crimes no Brasil da primeira metade do século, fez com que as punições associadas a esses comportamentos perdessem sua eficácia prática na atualidade” (discurso de 9/4/99). Talvez se, no futuro, as pessoas encararem com naturalidade o homicídio e o roubo, o Ministro julgará ter chegado a hora de descriminalizá-los.
5. E quanto à prática de atos obscenos em público, que é punida pelo artigo 233 do Código em vigor? Tanto na primeira versão (art. 175), como na atual (art. 179), o Anteprojeto conservou a pena de detenção de seis meses a um ano ou multa. Com um detalhe: só será punido o ato obsceno “que cause escândalo“. Se a platéia não se escandalizar com a obscenidade, tudo bem.
6. Uma nova piada (de humor negro) ocorre em relação aos crimes de produção de escrito ou objeto obsceno e exibição de espetáculos obscenos, tipificados no artigo 234 do Código Penal em vigor. De acordo com a primeira versão do Anteprojeto, tais condutas só seriam criminosas se praticadas “em desacordo com as normas legais” (art. 176 e 177). A comédia se repete na versão atual do Anteprojeto (art. 180 e 181). Em outras palavras: a pornografia e a obscenidade serão crimes, exceto nos casos em que não serão crimes. A redação supõe que haverá “normas legais” para permitir tais condutas.
No entanto, nem tudo está perdido. Pois, segundo o Ministro Renan Calheiros, “as propostas contidas no anteprojeto não refletem, obrigatoriamente, o ponto de vista do ministro da Justiça ou do governo” (discurso de 09/04/99). É possível, portanto, que haja ainda alguma mudança. Mas o Ministro tem pressa: “Vamos analisar cuidadosamente o texto, de modo que, em 30 dias no máximo, possa o Executivo encaminhá-lo ao Congresso Nacional, onde será debatido e aperfeiçoado pelos representantes do povo” (idem).
Talvez por pura coincidência, esta pressa em reformar o Código Penal, incluindo nele a legitimação do aborto e vários outros atentados à vida e à família, ocorre numa época em que o Brasil acaba de firmar um acordo com o FMI, entidade célebre por promover (e exigir) o controle demográfico dos países devedores. Convém lembrar o que diz a cartilha do imperialismo contraceptivo do Tio Sam, o famoso “Relatório Kissinger” de 10/12/74: “Certos fatos sobre o aborto precisam ser entendidos: nenhum país já reduziu o crescimento de sua população sem recorrer ao aborto“(NSSM 200, página 182).
Anápolis, 21 de abril de 1999.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz