(o monstro em que se pode transformar a família)
Conta o escritor inglês Gilbert Keith Chesterton (1874 – 1936) que quatro cavaleiros se puseram à procura de uma princesa que vivia num castelo totalmente incomunicável. Havia apenas dois caminhos para o castelo: o da direita, guardado por um gigante de uma cabeça, e o da esquerda, guardado por um gigante de duas cabeças. Os quatro cavaleiros preferiram ir para o caminho da direita, a fim de enfrentar o gigante de uma cabeça. No entanto, todos eles foram derrotados.
Vendo isso, um jovem pediu-lhes emprestado uma espada para enfrentar o gigante de duas cabeças. Todos zombaram e disseram que ele era tolo. Pois se ninguém havia conseguido vencer o gigante de uma só cabeça, como conseguiria ele derrotar o de duas cabeças?
O jovem foi assim mesmo, de cabeça erguida, e deparou-se com o gigante de duas cabeças. No entanto, o gigante não foi ao seu encontro nem o cortou em pedacinhos, como esperava. As duas cabeças estavam gritando, berrando, bramindo e rugindo, mas… uma contra a outra. Discutiam entre si sobre a Guerra dos Bôeres[1]. Enquanto elas discutiam, o rapaz cravou a espada no corpo do gigante, matou-o e casou-se com a princesa.
O conto acima, intitulado “A desvantagem de ter duas cabeças”[2], demonstra que em um corpo, físico ou social, a cabeça só pode ser uma.
Antigamente, o marido era a cabeça
O Código Civil de 1916 assim dizia:
Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.
Art. 380. Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz, para solução da divergência.
Portanto, quando o marido era o chefe, prevalecia sua decisão. No entanto, prevendo abuso de autoridade, a lei previa que a mulher pudesse recorrer ao juiz.
Hoje, a família tem duas cabeças
O atual Código Civil (de 2002) diz:
Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
Parágrafo único. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses.
Hoje, o marido deixou de ser chefe. Que ocorre quando os cônjuges divergirem? O poder do Estado – o juiz da vara de família – intervém.
Ora, é possível que o marido esteja errado em seu parecer. Mas presume-se, até prova em contrário, que ele conhece e ama os familiares muito mais do que um juiz.
Com o novo Código, a mulher deixou de ser submissa ao marido, para ser submissa a um juiz desconhecido, a quem é necessário abrir a intimidade da família. O Estado passou a ter o poder de intervir na vida familiar até em disputas pequeninas, como em qual escola matricular os filhos[3].
Isso fere o princípio de subsidiariedade, segundo o qual os organismos sociais maiores podem e devem ajudar os menores apenas na medida de sua necessidade, suprindo o que estes não podem realizar por si sós[4]. Ora, a família pode gerir a si mesma sem necessidade de intervenção do Estado. Mas é preciso uma cabeça. E uma única cabeça.
Qual a vantagem de ser cabeça?
De acordo com a mentalidade do mundo, ser chefe é ser servido pelos súditos, receber honrarias, ganhar prestígio e dar ordens em proveito próprio.
No entanto, segundo Cristo, ser chefe é ser “o último de todos e o servo de todos” (Mc 9,35), “servir e dar a vida como resgate por muitos” (Mt 20,-28). Para ser constituído chefe, Simão Pedro foi interrogado por três vezes se amava a Jesus. Seu amor, porém, deveria exceder o dos demais discípulos: “tu me amas mais do que estes?” (Jo 21,15). Dos chefes, portanto – seja do Papa, chefe da Igreja, seja do marido, chefe da família – é exigido um amor maior.
Em uma eleição política, os candidatos se mordem uns aos outros para disputar o poder de mando. E aquele que é eleito aparece radiante, como quem venceu uma guerra contra seus opositores.
Em um conclave de cardeais, que se reúnem na Capela Sistina para eleger o papa, o clima é outro. Não há partidos, nem chapas nem propaganda eleitoral. Todos são eleitores e possíveis candidatos. Muitas vezes a votação não chega a um resultado. Quando se consegue eleger um papa, a fumaça branca sai da chaminé e logo vem um cardeal anunciar ao povo: “Habemus Papam!” (Temos um Papa!). Geralmente o Papa eleito aparece sorrindo, mas trêmulo, pensando no enorme encargo colocado sobre os seus ombros. Aceita o papado como um serviço ao qual não se pode furtar. Chama a si mesmo o “servo dos servos de Deus”.
Se pensarmos bem, obedecer é mais fácil que mandar. Quem obedece lança sua responsabilidade sobre aquele que manda. Será julgado com brandura. Quem manda deve responder por si e por aqueles que dirige. Pois sua autoridade é dada não para fazer valer a vontade própria, mas a de Deus.
Um julgamento implacável se exerce contra os altamente colocados. Ao pequeno, por piedade, se perdoa, mas os poderosos serão provados com rigor (Sb 6,5-6).
Quem obedece tem facilidade de cultivar a humildade, que é o fundamento e a guarda de todas as virtudes, segundo Santo Afonso. Aquele que manda deve vigiar continuamente para não se tornar orgulhoso, roubando para si a glória que pertence a Deus.
Se é assim, por que tanta aversão quando a Bíblia exorta as mulheres a serem submissas aos seus maridos como a Igreja é submissa a Cristo (Ef 5,22-24)? A função dos maridos não é nada leve: devem dar a vida pelas mulheres “como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25-29).
Na família, o pai é a cabeça, a mãe é o coração. Se a mulher desejar ser também cabeça, a família se torna um monstro de duas cabeças e sem coração. Com duas cabeças, prevalece a discórdia e a anarquia. Sem coração, falta a ternura e o aconchego. Eis o que vem acontecendo com muitas famílias hoje em dia…
Anápolis, 6 de fevereiro de 2018.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] Bôeres eram os colonos de origem holandesa e francesa da atual África do Sul, que entraram em conflito com o exército britânico, disputando o domínio das minas de diamante e de ouro encontradas naquele território. As duas Guerras dos Bôeres ocorreram entre 1880 e 1902.
[3] “Ao ser estabelecido legalmente que o exercício do pátrio poder seja sempre compartilhado, em caso de conflito insolúvel, deixou-se a decisão última nas mãos do juiz de família. E isso é desastroso porque quem toma algumas decisões importantes é um estranho à família: o lugar de residência ou de férias familiares, o colégio das crianças etc.. Com o agravante de que quem tem a palavra decisiva é um desconhecido para os filhos. E esse desconhecido manda mais do que seus pais – pelo menos em algumas circunstâncias. Portanto, os filhos percebem que, afinal, não existe nenhuma autoridade nessa família: ao menos nenhuma pessoa concreta que a encarne” (Jorge SCALA. Ideologia de gênero: o neototalitarismo e a morte da família. 2. ed. São Paulo, SP: Katechesis, 2015, p. 88-89).
[4] O princípio de subsidiariedade pertence à Doutrina Social da Igreja e encontra-se formulado por Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno, 1931, n. 79-80.