Nota à imprensa
Em face do teor do artigo entitulado “Processo de aborto legal chega ao STF cinco dias após morte do bebê”, publicado no Jornal Folha de São Paulo do dia 5 de março de 2004, seguem os seguintes esclarecimentos da Ministra Laurita Vaz, Relatora do Habeas Corpus n.º 32.159 – RJ.I – Breve históricoOs autos do referido processo foram recebidos no Gabinete, em 25 de novembro de 2003, com pedido de liminar objetivando a suspensão da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que autorizara a realização de aborto, tendo em vista a apontada inviabilidade da vida pós-natal do bebê em gestação, diagnosticado como portador da doença conhecida por anencefalia.No dia seguinte, a liminar foi deferida, nos termos do pedido, para sustar a autorização do abortamento, porquanto, dentre os outros motivos jurídicos relevantes, tal intervenção não encontra respaldo na legislação pátria, que só admite a interrupção de gravidez resultado de estupro ou se há sério risco de vida da gestante.O habeas-corpus, que possui rito sumário, foi normalmente processado, com a subseqüente requisição de informações da autoridade indigitada coatora, bem como com a remessa dos autos para o Ministério Público Federal, a fim de que exarasse o seu parecer.Em 15 de dezembro, cumpridas as diligências previstas na legislação processual, e diga-se, rapidamente e dentro do prazo previsto, os autos retornaram ao Gabinete devidamente instruídos com as peças necessárias para o julgamento da causa. O processo foi levado à sessão de julgamento em 18 de dezembro de 2003, oportunidade em que a 5ª Turma deste Tribunal, em decorrência da notícia veiculada pela imprensa fluminense de que a mãe teria desistido do aborto, suspendeu o julgamento, determinando novas diligências para confirmar a informação que, afinal, teria o condão de esvaziar completamente o objeto do habeas-corpus impetrado. As férias forenses iniciaram em 20 de dezembro de 2003 e terminaram em 1º de fevereiro de 2004. Prestadas novas informações pelo Tribunal fluminense, juntadas aos autos no início de fevereiro, esclarece-se que nos autos originários da ação não havia qualquer manifestação formal da gestante naquele sentido divulgado pela imprensa. O julgamento foi então retomado, em 17 de fevereiro, tendo a 5ª Turma, à unanimidade, decidido por deferir o pedido em favor do nascituro, em conformidade com o voto da Relatora.II – Quanto às críticasA criticada “demora”, como se pode verificar da simples leitura do andamento processual disponível na página eletrônica deste Superior Tribunal de Justiça na internet, inexistiu. Como dito alhures, todas as fases processuais, incluindo as providências urgentes, foram pronta e oportunamente realizadas, em total conformidade com a lei processual. Ressalte-se, ainda, que a decisão criticada nada mais fez do que aplicar a legislação pátria, que, boa ou ruim, é a Lei votada e aprovada pelo Parlamento.Disponibilizo à imprensa o inteiro teor do voto proferido no mencionado julgado, ainda pendente de publicação.
HABEAS CORPUS Nº 32.159 – RJ (2003/0219840-5)RELATÓRIOEXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA):
Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado por LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ, em favor de NASCITURO, que se encontra no útero da mãe, G.O.C., contra decisão proferida, liminarmente, em sede de apelação, pela Desembargadora da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para autorizar a realização de abortamento do nascituro.
Consta dos autos que a Defensoria Pública fluminense ingressou com pedido perante a Vara Criminal da Comarca de Teresópolis/RJ para que a gestante fosse autorizada a se submeter a uma intervenção cirúrgica, visando interromper sua gravidez, tendo em vista a apontada inviabilidade de vida pós-natal do feto que, segundo exames realizados, constatou-se padecer de anencefalia (cabeça fetal com ausência de calota craniana e cérebro rudimentar).
O MM. Magistrado indeferiu o pedido, nos termos a seguir transcritos:
“Indefiro o pedido por falta de amparo legal, eis que a hipótese vertente não se encontra inserida no bojo do art. 128 do CP. Julgo, pois, extinto o processo, nos termos da lei processual.” (fl. 02)Seguiu-se a interposição de apelação para o respectivo Tribunal Estadual, buscando a tutela jurisdicional negada. A Desembargadora Relatora do feito, em sede liminar, embora fosse o pedido de caráter inteiramente satisfativo, autorizou a realização do aborto (fls. 03/04).
Sustenta o Impetrante, no presente writ, que a decisão ora hostilizada violou os preceitos previstos nos arts. 3º, 5º e 227, da Constituição Federal, bem como o disposto no art. 2º do Código Civil.
Alega, também, que o aborto em questão não se enquadra nas hipóteses dos incisos do artigo 128, do Código Penal, razão pela qual não poderia ter sido autorizada sua realização, sob pena de se estar facultando a prática de crime de aborto.
Apresenta, por fim, julgados de diversos Tribunais, todos no sentido único da defesa do nascituro (fls. 05/11).
Em 21/11/2003, deferi nos presentes autos a liminar requerida “para sustar a decisão do Tribunal de origem que autorizou a realização do abortamento do nascituro, até a apreciação final deste writ pela Egrégia Quinta Turma desta Corte” (fls. 21/23), já sabendo que, no mesmo dia, foi levado a julgamento perante a 2ª Câmara Criminal do Tribunal a quo o agravo regimental interposto contra a decisão liminar da Desembargadora Relatora da apelação, tendo sido, por votação majoritária, negado provimento ao recurso e, por conseguinte, mantida a autorização para a interrupção da gravidez.
As informações foram prestadas pelo ilustre Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça fluminense, dando conta de que “a decisão restou suspensa por força da liminar concedida por essa ilustre Ministra, no bojo do presente mandamus” (fl. 31). Em informações complementares, consignou ainda que, in verbis:
“Os autos aguardavam a lavratura do voto vencido, por isso que não o remeti por cópia, na oportunidade, nem pude indicar seus fundamentos.
Já o tendo agora examinado, esclareço que entendeu, meu nobre colega, em síntese, que incabível seria a liminar em sede daquele apelo, interposto que foi com fulcro no art. 593, inciso II, do Código de Processo Penal, e recebido em seu duplo efeito, e também por possuir natureza satisfativa, a tornar prejudicado o julgamento do recurso acaso realizada a cirurgia.
Entendeu, ainda, ser taxativo o rol do art. 128 do Código Penal, adotando a corrente doutrinária do tecnicismo jurídico, e lamentou o posicionamento do Ministério Público atuante junto ao Juízo de 1.º grau, que, ao invés de atuar em favor do nascituro como curador, já que a d. Defensoria pública Pública encontrava-se a defender os interesses dos pais-autores, colocou-se, como custos legis, em posição favorável ao aborto, que no caso equiparar-se-ia a verdadeira cesariana antecipada, deixando indefeso o ora Paciente, e ferindo o contraditório.
Por fim, manifestou-se desfavoravelmente à aplicação, por analogia, do citado art. 128, do Código Penal, porque, em breves termos, no caso do inciso I – aborto necessário – seria ferido o princípio basilar da legalidade estrita, regente do Direito Penal, sendo sua adoção na hipótese vertente verdadeiro caso de atipicidade. Equivaleria a um aborto eugênico, e não legal ou terapêutico, onde é evidente o estado de necessidade que justifica a medida – caso não efetivado o aborto, pereceria a própria mãe do nascituro, e ao invés de um sacrifício, teríamos dois.
Argumenta, ainda, com a ausência de prova nos autos de perícia mais elaborada quanto ao risco de vida da gestante, que poderia, aí sim, permitir a aplicação do inciso I, do citado dispositivo legal.
Já o permissivo do inciso II – aborto sentimental – teria, diferentemente da hipótese em testilha, sua justificativa na proveniência de ato ilícito, não podendo, como tal, gerar direitos.
Por fim, rechaça a jurisprudência trazida à colação, oriunda de Tribunais de outros Estados, e divergente da predominante neste Tribunal do Rio de Janeiro em sede de mandamentais, especialmente em mandados de segurança.
Informo, por derradeiro,que, apesar dos rumores na mídia no sentido de que a mãe do ora Paciente teria desistido do aborto pleiteado, não consta dos autos do apelo, até a presente data, qualquer petitório de desistência da ação por parte dos autores.
Remeto em anexo, para conferência, cópia do voto vencido, juntado aos autos na data de hoje. […]” (fls. 124/125).O Ministério Público Federal, representado pela Douta Subprocuradora-Geral da República Cláudia Sampaio Marques e pelo Douto Procurador-Geral da República, Cláudio Lemos Fonteles, manifestou-se às fls. 94/98, opinando pela concessão da ordem, em parecer que guarda a seguinte ementa:
“1. Interrupção da vida em feto com anomalia cerebral: ilegalidade na decisão judicial que isso autoriza: considerações.
2. Direito à vida: sua compreensão na perspectiva ineliminável da acolhida, do carinho e do amor, não importa o tempo de sua manifestação, dos pais aos filhos em gestação.
3. Deferimento do pedido.” (fl. 94)É o relatório.HABEAS CORPUS Nº 32.159 – RJ (2003/0219840-5)EMENTAHABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.
1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.
2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.
3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.
4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.
5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.VOTOEXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA):
De início, insta que seja analisada a argüição feita oralmente pelo Douto representante do Ministério Público Federal acerca da eventual imprestabilidade da presente via para a defesa do direito à vida do nascituro.
A insurgência não procede. Com efeito, o habeas corpus é via idônea para alcançar a tutela jurídica ora pleiteada. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.
Superada a questão preliminar, passa-se à analise de outras peculiaridades do caso em testilha.
O presente habeas corpus é impetrado contra uma decisão liminar proferida pela Desembargadora Relatora da apelação, posteriormente ratificada pelo Colegiado da Corte a quo. Cumpre destacar que, mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.
Nesse contexto, em caráter excepcionalíssimo, conheço da impetração e passo ao exame do mérito.
O tema em debate é bastante controverso, porque envolve sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas, filosóficas e morais. Advirta-se, desde logo, que, independente de convicções subjetivas pessoais, o que cabe a este Superior Tribunal de Justiça é o exame da matéria posta em discussão tão-somente sob o enfoque jurídico. Isso porque o certo ou o errado, o moral ou imoral, o humano ou desumano, enfim, o justo ou o injusto, em se tratando de atividade jurisdicional em um Estado Democrático de Direito, são aferíveis a partir do que suas Leis estabelecem.
A decisão proferida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro funda-se, essencialmente, na inviabilidade da vida extra-uterina do nascituro e no transtorno psíquico sofrido pela gestante e seus familiares, sem dúvida, motivo de muita dor.
Contudo, é fato inarredável que a situação posta nos autos não está expressa na Lei Penal deste País como hipótese em que o aborto é autorizado. É certo que o trabalho do jurista, mormente o do Magistrado, não deve ficar engessado nas letras frias da Lei. Espera-se mesmo que o Juiz não seja um mero expectador das mudanças da vida cotidiana, mas, sim, um efetivo membro da sociedade, apto a exercer sua jurisdição com bom senso e equilíbrio, sempre buscando uma exegese consentânea com a realidade em que vive. Não se pode olvidar, entretanto, que há de se erigir limites. E estes hão de ser encontrados na própria Lei, sob pena de se abrir espaço à odiosa arbitrariedade.
A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.
Com efeito, o Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta nos autos originários é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que, insisto, fora excluída de forma propositada pelo Legislador. Deve-se deixar a discussão acerca da correção ou incorreção das normas que devem viger no País para o foro adequado para debate e deliberação sobre o tema, qual seja, o Parlamento.
Merece destaque, também, as percucientes observações trazidas pelo Ministério Público Federal, in verbis:
“De plano, não é fato que o jovem casal está em quadro de profunda angústia.
A matéria jornalística, lida a fls. 61, deixa por bem claro que, verbis:
“Depois da decisão, no entanto, a mãe desistiu de realizar o aborto, e vai prosseguir com a gravidez.”A própria Promotora de Justiça, tão enfática no pugnar pela autorização do aborto – fls. 35/38 – , mudou de postura e, verbis:
“Ela vai chamar-se Vida ou Soraya, disse a promotora criminal de Teresópolis, Soraya Taveira Gaya, que recorreu da decisão do juiz da Vara Criminal, Paulo Rodolfo Maxiliano de Gomes Tostes, que indeferiu o pedido inicial do aborto. Os Pais da criança evitam falar no assunto. “Pareciam aliviados com a decisão da Justiça, mas alegaram motivos pessoais para fazer outra opção”, explicou a promotora Soraya.” (vide: fls. 61)Não é correto, como faz a il. Des. Gizelda Leitão Teixeira, dizer da invocação constitucional “como garantidora do direito à vida, nada mais”.Ora, o direito à vida é tudo, por isso que nada mais se considera quando ele é questionado, caindo, então, no vazio tal questionamento.Não são assim, “velhos e surrados argumentos de defesa pura e simples da vida” como estabeleceu a il. Desembargadora.Qualquer argumento em favor da vida jamais será velho e surrado.O que é preciso compreender-se – e agora sim surge a incidência do princípio da razoabilidade – é que vida intra-uterina existe.É que, mesmo nesse estágio, sentimentos de acolhida, carinho, amor, passam por certo, do pai e da mãe, mormente desta para o feto.Se ele está fisicamente deformado – por mais feio que possa parecer isto jamais impedirá que a acolhida, o carinho, o amor flua à vida, que existe, e enquanto existir possa.Isso, graças a Deus, está além da ciência.Foi isso que gerou a mudança nos planos do casal, para acolher, pelo tempo que possível for, a menina que geraram.” (fl. 97/98)Ante todo o exposto, CONCEDO a ordem para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar PREJUDICADA a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.
É o voto.MINISTRA LAURITA VAZ
Relatora