(a questão da animação)*
Segundo Aristóteles (384/385–322 a.C.), “a alma é o princípio pelo qual primeiramente vivemos, sentimos e entendemos”[1]. Esse conceito é abrangente: coloca a vida, a sensação e o pensamento (ou entendimento) sob um único princípio. Como o pensamento e a sensação também se incluem na noção de vida, a definição aristotélica poderia resumir-se em: “a alma é o princípio vital”.
Há três espécies de alma, de acordo com as operações que o vivente desempenha:
1) A alma vegetativa preside a conservação do indivíduo (pela alimentação e crescimento) e da espécie (pela reprodução). É própria dos vegetais.
2) A alma sensitiva preside as sensações, os apetites e a locomoção. É própria dos animais.
3) A alma intelectiva ou racional preside o entendimento e a vontade. É própria do homem, animal racional.
Nenhum indivíduo tem mais de uma alma. Nos animais, a alma sensitiva responde também pelas faculdades nutritivas. No homem, a alma racional responde também pelas faculdades nutritivas e sensitivas. Diz Aristóteles:
O caso das figuras é semelhante ao da alma, já que sempre no termo sucessivo está contido em potência o termo antecedente, e isso vale seja para as figuras, seja para os seres animados. Por exemplo, no quadrilátero está contido o triângulo, e na faculdade sensitiva, a nutritiva[2].
A alma racional, ao contrário da vegetativa e da sensitiva, é intrinsecamente independente da matéria. Tem natureza espiritual e é criada diretamente por Deus. Não pode ser produzida a partir dos corpos nem das almas dos pais (traducianismo), como afirmou Tertuliano (160-230 aprox.) e como conjecturou Santo Agostinho (354-430). Assim diz o Catecismo da Igreja Católica:
A Igreja ensina que cada alma espiritual é criada diretamente por Deus – não é ‘produzida’ pelos genitores – e é imortal: não perece no momento de sua separação do corpo na morte, e de novo se unirá ao corpo no momento da ressurreição final (n. 366).
Aristóteles pensava que o embrião era produzido a partir da mistura do sêmen do homem com o sangue da mulher: “chamo embrião [kyema] a primeira mistura da fêmea e do macho”[3].
Animação imediata e animação mediata
Costuma-se atribuir a Aristóteles a teoria de que o embrião primeiro tem uma alma vegetativa, que depois é substituída por uma alma sensitiva a qual, por fim, é substituída por uma alma racional. Haveria assim, no desenvolvimento embrionário, uma sucessão de almas[4].
Santo Tomás de Aquino (1225-1274)[5] fez sua essa interpretação da tese de Aristóteles. Para o Doutor Angélico, o embrião humano é inicialmente informado por uma alma vegetativa. Quando esta se corrompe, dá lugar a uma alma sensitiva. Por fim, esta última se corrompe e dá lugar à alma racional que, por ser espiritual, é criada diretamente por Deus. A animação – criação e infusão da alma racional por Deus – se daria, portanto, não no momento da concepção, mas em um momento posterior: 40 dias para o embrião masculino e 90 dias para o embrião feminino. Essa tese é chamada de animação mediata ou retardada.
Santo Alberto Magno (1206-1280) interpretava Aristóteles de maneira diversa. O embrião humano, antes de receber de Deus uma alma racional, não possui alma nenhuma. Suas atividades vegetativas e sensitivas são exercidas pela potência formativa (vis formativa) presente no sêmen paterno, o qual se supunha acompanhar o embrião pelo menos até o 40º dia. Santo Alberto defendia sim uma animação mediata ou retardada, mas sem progressão de almas.
Note-se que ambos os doutores julgavam indispensável a presença do sêmen paterno junto ao embrião ainda não animado por uma alma racional. Por quê? Porque somente uma alma racional (no caso, a alma do pai) podia dispor a matéria do embrião para receber de Deus por criação uma alma racional. A alma do pai agia formando o embrião através da vis formativa presente no sêmen. Não se falava de uma ação da alma da mãe porque, segundo a biologia aristotélica, a fêmea forneceria apenas o elemento passivo (a matéria) enquanto o macho, o elemento ativo (a forma).
Antes de Santo Tomás de Aquino, houve autores que defendiam a criação e infusão da alma no momento da concepção. Essa tese – da animação imediata – foi defendida, por exemplo, por Clemente de Alexandria (150-215 aprox.), Lactâncio (260-330 aprox), S. Gregório de Nissa (335-394) e, sobretudo, por São Máximo Confessor (580-662).
No entanto, o Doutor Angélico não faz menção de nenhum deles, a não ser São Gregório de Nissa; e este ele o interpreta como traducianista. É digno de nota o silêncio do Aquinate acerca de São Máximo, que entre todos foi o que melhor expôs e defendeu a tese imediatista. Conclui-se que Santo Tomás não conheceu a tese da animação imediata. Quando expõe sua tese – da animação retardada – não o faz com a intenção de combater a tese da animação imediata (que ele desconhece), mas sim para combater o traducianismo (que afirma a propagação da alma racional pelo sêmen paterno)[6].
Que diria hoje Santo Tomás?
Hoje se sabe que o embrião recém-concebido não é uma “massa informe”[7], como pensava Aristóteles, mas uma célula com incrível organicidade. Sabe-se ainda que o encontro do espermatozoide paterno com o óvulo materno é um evento marcante, que produz a perda da individualidade dos gametas e o surgimento de um novo indivíduo. Sabe-se, por fim, que, após a fecundação/fertilização do óvulo, os espermatozoides restantes não permanecem por quarenta dias, mas morrem logo depois. Não se pode mais recorrer à suposta vis formativa presente no sêmen paterno para explicar a disposição do corpo do embrião para receber a alma racional.
Poderia o embrião, por si mesmo, sem uma vis formativa externa, preparar-se para a vinda da alma racional? De maneira nenhuma. Uma alma inferior não seria capaz de produzir os órgãos de uma alma superior[8]. Isso feriria o princípio de causalidade, segundo o qual a perfeição do efeito não pode superar a perfeição da causa. O embrião de Santo Tomás e de Santo Alberto não tem potência ativa para se tornar um homem adulto. Seu desenvolvimento depende de um agente externo.
Excluída a presença e a ação do sêmen paterno ao lado do embrião por vários dias (como se supunha), cabe aos mediatistas de hoje responderem: como a alma racional dos pais pode exercer a distância uma causalidade eficiente na disposição da matéria do embrião?
Uma tentativa de solução (proposta por Bénédicte Mathonat) é pôr a vis formativa dentro do embrião humano[9]. Porém, ao se fazer isso, deve-se também pôr a alma racional no embrião humano desde a concepção. Pois, conforme Santo Tomás, somente uma alma racional pode ser sujeito dessa potência formativa[10]. Mas então estamos diante da tese da animação imediata.
Hoje, portanto, a teoria da animação imediata é a única compatível com os conhecimentos atuais de biologia e com o respeito de Santo Tomás pelo princípio de causalidade. Hoje podemos afirmar com segurança que no momento da concepção o embrião recebe de Deus uma alma espiritual, tornando-se uma pessoa humana.
No entanto, mesmo defendendo a animação retardada, Santo Tomás nunca admitiu o aborto de um embrião ainda não animado por uma alma racional. Matar o embrião em tal estágio da gravidez seria um pecado gravíssimo não contra a vida de uma pessoa, mas contra a dignidade da procriação.
Curiosamente, ao tratar da encarnação de Cristo, São Tomás e São Máximo estão de acordo em afirmar que sua alma racional foi criada no primeiro instante de sua concepção. Santo Tomás faz disso uma exceção. São Máximo considera isso um modelo, uma vez que o Verbo se fez em tudo semelhante a nós, menos no pecado (Hb 4,15)[11]. Seja como exceção, seja como modelo, há um consenso admirável, entre os Padres e os Doutores, sobre a animação imediata do corpo de Cristo. E Cristo “manifesta plenamente o homem ao próprio homem”[12]
*Para maior aprofundamento, leia-se nossa tese doutoral em Bioética A alma do embrião humano: a questão da animação e o fundamento ontológico da dignidade de pessoa do embrião. Anápolis: Múltipla, 2013. Ela pode ser adquirida em www.providaanapolis.org.br
[1]ARISTÓTELES, De anima, II, 2, 414 a 12-13.
[2]ARISTÓTELES, De anima, II, 3, 414 b 29-31.
[3]ARISTÓTELES, De generatione animalium” I, 1, 728b 35.
[4]Cf. ARISTÓTELES, De generatione animalium, II, 3, 736 b 8-15.
[5]Também chamado o “Doutor Angélico” e o “Aquinate”.
[6]Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica, I, q. 118, a. 2; Suma contra os gentios, II, cap. 88 e 89; Comentário às Sentenças, II, d. 18, q. 2, a. 1; De potentia, q. 3, a. 9.
[7]ARISTÓTELES, De historia animalium”, IX, 3, 583 b
[8]Cf. S.J. HEANEY, “Aquinas and the presence of the human rational soul in the early embryo”, The Thomist 56 (1)1992, p. 26
[9]Cf. B. MATHONAT, “Le début de la vie human chez Saint Thomas”, Cahiers de la Faculté Libre de Philosophie Comparée 59 (2000), p. 111.
[10]Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os gentios, cap. 89, n. 1742.
[11]Cf. S. MÁXIMO, Ambigua, 42, PG 1341 B-C.
[12]CONC. VAT. II, Gaudium et Spes, n. 22.