O salto triplo do Ministro José Serra
“O José do Pulo” |
“O João do Pulo” |
Em 29 de maio de 1999 falecia o grande atleta brasileiro João Carlos de Oliveira, recordista mundial do salto triplo, conhecido como “João do Pulo”. No ano anterior, porém, mais precisamente em 9 de novembro de 1998, um outro brasileiro, desta vez um José, dava um salto triplo muito maior, sem precedentes na história brasileira. Tratava-se da Norma Técnica intitulada ” Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes“, que era assinada pelo Ministro da Saúde José Serra. Com uma só canetada, o Ministro satisfazia a um antigo sonho dos abortistas: autorizar os hospitais públicos a matar criancinhas geradas em um estupro.
A ansiedade dos grupos pró-morte era grande. Desde 1991 tramitava pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 20/91, de autoria dos deputados Eduardo Jorge (PT/SP) e da então deputada Sandra Starling (PT/MG), que pretendia obrigar o Sistema Único de Saúde (SUS) a praticar aborto nos dois casos não punidos pelo Código Penal. Logo eles viram, porém, que a oposição era grande, e que dificilmente o projeto se tornaria lei. Apelaram então para um atalho: a caneta do Ministro da Saúde. Atropelando o Congresso Nacional e violando o Direito positivo brasileiro, a referida “Norma Técnica”, como por um passe de mágica, autorizou e instruiu os hospitais do SUS a fazerem aborto em crianças de até cinco meses de vida, com a condição de terem sido geradas em um estupro.
Com o objetivo de protestar contra a Norma, eu e mais dois Bispos (Dom Raymundo Damasceno, secretário geral da CNBB e Dom João Bosco Oliver, bispo de Patos de Minas) no dia 21 de março de 2000, estivemos no gabinete do Ministro da Saúde. Ouvimos dele as seguintes palavras: “Eu sou contra o aborto, mas… (cuidado com este “mas”!) eu não posso me furtar a oferecer a uma adolescente estuprada o aborto a que ela tem direito (sic!) e assim, vê-la morrer em um aborto feito em fundo de quintal“. Parece que o Ministro não entendia (e ainda não entende) o salto triplo de sua “Norma Técnica”. Vejamos com detalhes essa façanha olímpica:
PRIMEIRO SALTO:
Dizer que o aborto em caso de estupro não é crime.
O Ministro se apoiou no artigo 128 do Código Penal, que assim se exprime:
“Não se pune o aborto praticado por médico:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
A redação é clara. Não está escrito “não constitui crime” mas tão-somente “não se pune“. O médico que pratica aborto nesses dois casos comete crime, embora esteja isento de punição.
É o que explica muito bem o juiz de Direito no Distrito Federal Dr. Marco Antônio Silva Lemos.
“Demais disso, convém lembrar, logo de imediato, que o art. 128, CP, e seus incisos, não compõem hipóteses de descriminalização do aborto. Naquele artigo, não está afirmado que “não constitui crime” o aborto praticado por médico nas situações dos incisos I e II. O que lá está dito é que “não se pune” o aborto nas circunstâncias daqueles incisos. Portanto, em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas – o que a legislação infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo – não será punido penalmente, por razões de política criminal” (MARCO ANTÔNIO SILVA LEMOS, Juiz de Direito no Distrito Federal, O alcance da PEC 25/A/95, publicado no Correio Braziliense, 18/12/1995, Caderno Direito e Justiça, página 6; os grifos são do original).
Ingenuamente, o Ministro argumentou que, se tal aborto não é punível, então não é crime. Certamente ele deve ignorar a existência de outros crimes que não são puníveis em circunstâncias especiais, por razões que os juristas chamam de escusas absolutórias.
Diz, por exemplo, o artigo 181 do Código Penal:
“É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título (crimes contra o patrimônio) em prejuízo:
I – do cônjuge, na constância da sociedade conjugal;
II – de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural“
Em outras palavras, não se punem o furto, o estelionato, a fraude…, se forem praticados contra os pais, contra os avós, contra os filhos, contra os netos, contra o esposo ou a esposa… embora continuem sendo crimes. Para preservar a intimidade da família, a lei preferiu nestes casos não intervir com penas.
Um outro exemplo; o artigo 348 do Código Penal assim define o crime de favorecimento pessoal:
“Auxiliar alguém a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão“.
Quem, portanto, ajuda um assassino (autor de um crime punível com 6 a 20 anos de reclusão) a não ser preso pela polícia, comete crime. A pena para este crime é a detenção de um a seis meses, e multa. No entanto, diz o parágrafo 2º do mesmo artigo 348: “Se quem presta o auxílio é ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, fica isento de pena“.
Isto significa que, se a mãe ajudar o filho assassino a não ser preso, ela fica isenta de pena. É claro que a mãe não tem o direito de fazer isso. Mas, se fizer, a lei perdoa, tendo em vista os laços afetivos que unem a mãe a seu filho. Trata-se de uma circunstância especial, em que o crime (favorecimento pessoal) sem deixar de ser crime, fica isento de pena.
Peço licença ao ilustre Dr. José Geraldo Barreto Fonseca, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para mencionar o genial argumento que dele ouvi. Diz o jurista que o simples fato de o Código Penal mencionar o aborto como meio para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez resulta de estupro, já indica que tal aborto é crime. Jocosamente ele explica que o Código não diz, por exemplo: “não se pune a mãe que amamenta o filho”. Pois, como amamentar o filho não é crime, não há razão para se dizer que “não se pune”. Qualquer conduta descrita no Código Penal é, portanto, crime, a menos que se diga explicitamente o contrário.
SEGUNDO SALTO:
Dizer que o aborto em caso de estupro não é um ilícito.
Mesmo que, por hipótese, o aborto em caso de estupro não fosse crime, o Ministro ainda estaria bem longe de poder baixar uma “Norma Técnica” autorizando sua prática nos hospitais públicos. Pois há vários atos que violam alguma lei (e são, portanto, ilícitos) sem que, porém, tenham sido definidos como crimes.
Isto é muito bem ilustrado pelo Dr. Walter Moraes, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (falecido em 18/11/1997), a maior autoridade brasileira em direitos da personalidade, em sua palestra proferida na Câmara dos Deputados em Brasília, no seminário “A farsa do aborto legal” (24/09/1997):
“Um bom exemplo de ilícito que não é crime pode ser encontrado no próprio artigo da Constituição que proíbe a violação da vida.
Alguns incisos adiante (X), o artigo 5º proclama, com a mesma solenidade do direito à vida, que é inviolável a imagem das pessoas.
É uma proibição grave; senão, não estaria na Constituição.
Mas violar a imagem não é crime.
Vou dizer que imagem é a aparência física, seja no original, seja representada em retrato, busto etc.; e que violar a imagem é utilizá-la sem o consentimento da pessoa representada“.
Mais adiante, continua o jurista:
“O que faz uma proibição legal tornar-se crime?
Simplificando, de novo: é a lei.
A lei descreve um comportamento humano e diz: isto é crime.
Então, aquele ilícito é crime“.
Ele então cita o art. 5º inciso XXXIX da Constituição Federal, que diz:
“Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal“.
Portanto, ainda que um ato viole diretamente um direito garantido por lei, este ato só será crime se for definido como tal pela lei. Um exemplo, que não foi dado pelo Dr. Walter Moraes, mas que agora está muito candente, é o do descarte de embriões concebidos in vitro. É claro que isto viola o direito constitucional à vida, garantido no artigo 5º da Constituição. No entanto, tal prática não é crime. Por quê? Simplesmente porque não houve (até hoje) lei que a definisse como tal. Em 1940, quando o Código Penal foi promulgado, não havia fertilização in vitro. O legislador penal, portanto, incriminou o aborto, mas não tipificou como crime a morte deliberada de embriões originados em laboratório, nem fixou uma pena para tal ilícito.
Continua o Dr. Walter Moraes:
“Se o aborto que o Código Penal chama de necessário, ou o por causa de um estupro (art. 128), não fosse crime, ainda assim seria um ilícito jurídico, pois é justamente uma forma de homicídio proibido na fórmula constitucional ‘inviolabilidade do direito à vida’“.
Vários anos antes, o mesmo autor já havia escrito:
“Certamente, a grande maioria dos ilícitos jurídicos que se cometem no embate da vida social, não são crimes.
Então, dizer que o aborto terapêutico (ou o de honra) é legal ou lícito só porque não configura crime, seria incidir em formidável simplismo” (WALTER MORAES, O problema da autorização judicial para o aborto, Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, março/abril de 1986, p. 23).
Para que o aborto em caso de estupro não fosse um ilícito, seria preciso revogar todas as leis que protegem a vida humana, sobretudo as do nascituro:
Seria preciso retirar do “caput” do art. 5º da Constituição Federal a “inviolabilidade do direito à vida” (mas seria estranho que permanecessem invioláveis os direitos à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, garantidos no mesmo artigo; pois como um morto poderia gozar de tais direitos?).
Seria preciso retirar o inciso XLV do art. 5º da Constituição Federal, que diz: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado“, uma vez que o que a Norma Técnica pretende é punir com a morte a criança por causa do crime de estupro cometido pelo seu pai.
Seria preciso retirar o art. 227 da Constituição Federal que diz: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à vida“.
Seria preciso revogar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), sobretudo o seu art. 7º, que diz: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas públicas que permitam o seu nascimento“.
Seria preciso revogar o Código Civil, com todos os direitos assegurados ao nascituro desde a sua concepção, conforme diz seu art. 4º: “a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro“.
Em resumo, para que o aborto em caso de estupro deixasse de ser ilícito, seria preciso fazer uma verdadeira revolução na legislação brasileira. Nem sequer uma emenda constitucional que abolisse o direito à vida seria possível, pois diz o art. 60 § 4º da Constituição Federal:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e as garantias individuais“.
Pode-se ver então a grandiosidade deste segundo salto do Ministro José Serra.
TERCEIRO SALTO:
Dizer que o aborto em caso de estupro deve ser oferecido pelo Estado.
Ainda que, por absurdo, o aborto em caso de estupro não fosse crime e nem fosse um ilícito, mesmo assim o Ministro deveria pensar duas vezes antes de assinar uma Norma que favorecesse sua prática. Pois nem tudo aquilo que é lícito fazer, é desejável pelo Estado que se faça.
Por exemplo, diz o art. 5, inciso XV da Constituição Federal:
“É livre a locomoção em território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens“.
Assim, é lícito que os moradores do campo abandonem sua terra e venham procurar abrigo na cidade. No entanto, este fenômeno, conhecido como êxodo rural, está longe de ser desejável, por causar desemprego, inchaço urbano e proliferação de favelas. Por isso, o Estado não procura favorecê-lo. Ao contrário, estimula a fixação da população rural em suas terras.
É lícito, ainda, que qualquer brasileiro deixe o país com seus bens. No entanto, nem por isso, o Estado favorece a emigração, oferecendo, por exemplo, passagens aéreas gratuitas para os que quiserem definitivamente abandonar o Brasil e fixar residência no estrangeiro.
Logo, mesmo que matar um nascituro concebido em um estupro fosse um ato lícito, o Ministro deveria perguntar a si mesmo: tal ato deve ser estimulado? O Ministério da Saúde (que existe para cuidar da saúde) deve instruir os hospitais a matar bebês?
OS DETALHES DO SALTO:
1. O título do documento parece inofensivo: “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes – Norma técnica – 1ª edição – Brasília – 1998.” O aborto é chamado eufemisticamente “esvaziamento da cavidade uterina”. A criança a ser trucidada é chamada de “concepto”. Os restos mortais do bebê são chamados “material embrionário ou fetal eliminado”.
2. Para a prática do aborto basta a apresentação de um Boletim de Ocorrência Policial, o que se obtém em qualquer delegacia e não constitui prova alguma da existência do estupro. Não são obrigatórios o registro de Atendimento Médico à época da violência sofrida nem o laudo do Instituto Médico Legal. As portas estão escancaradas para a falsificação de estupros e o aborto em série (*).
3. O assassínio da criança é feito de maneiras diferentes, de acordo com sua idade. Até 12 semanas (três meses), recomenda-se o esquartejamento (curetagem) ou a aspiração da criança em pedacinhos. Entre 13 e 20 semanas (até cinco meses) recomenda-se o uso do misoprostol, substância que causa violentas contrações no útero e expulsa o bebê. Acima de 20 semanas (não sei por que motivo) o Ministério da Saúde recomenda poupar a vida do inocente.
REAÇÃO AO SALTO
O deputado Severino Cavalcanti (PPB/PE), 2º vice-presidente da Câmara dos Deputados, entrou com um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que recebeu o número 737/98, no intuito de sustar a Norma Técnica abortiva do Ministério da Saúde. Lamentavelmente o PDL 737/98 perdeu por 16 votos x 24 votos quando no dia 25 de agosto de 1999 foi votado na Comissão de Seguridade Social e Família. E no dia 13 de setembro de 2000, o projeto perdeu por 3 votos contra 23 votos na Comissão de Constituição, Justiça e Redação. Resta ainda ser apreciado pelo plenário da Câmara.
Anápolis, 08 de maio de 2000.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
(*) Vale lembrar que nos Estados Unidos o aborto foi legalizado graças a um falso estupro, alegado por Norma Mc Corvey (conhecida como Jane Roe). A decisão judicial Roe versus Wade da Suprema Corte norte-americana, em 1973, legalizou o aborto em todo o território nacional, em qualquer etapa da gestação. Vinte e dois anos mais tarde, em 1995, a mesma Norma Mc Corvey confessou a verdade na revista Newsweek: nunca ela havia sido estuprada. Arrependida, hoje ela milita no movimento pró-vida dos Estados Unidos.