No dia 20 de janeiro de 1999, enviei ao Ministro da Justiça Renan Calheiros uma carta aberta intitulada “A ditadura da minoria“, em que protestava contra o desprezo da Comissão Revisora do Código Penal pela vontade popular, sobretudo quanto a temas relativos à vida e à família.
Não foi o destinatário da carta (Ministro Renan Calheiros), mas o presidente da Comissão Revisora, Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, que se dignou responder. Em seguida, o texto da carta entrecortado por comentários meus.
Brasília, 25 de janeiro de 1999.
Excelentíssimo Senhor
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Recebi seu fax datado do último dia 20. Antes de tudo, registro minha admiração; aprecio as pessoas que lutam com ardor para fazer vingar o que entendem correto, justo e indispensável à sociedade. É o seu caso.
Cumpre-me, em homenagem, à verdade, fazer algumas considerações:
1) A Comissão designada pelo Ministério da Justiça elabora sugestão. Não será transformada, por si só, em lei. Ao Ministro da Justiça, com o seu poder de decisão, caberá a palavra para remeter o anteprojeto, em forma de projeto-de-lei ao Congresso Nacional. Aqui, sim, poderá ser lei. Dessa forma, data venia, não faz sentido a expressão – A ditadura da minoria.
Comentário: Concordo que o Anteprojeto ainda não é lei. No entanto, a razão de ser da Comissão Revisora é “receber sugestões com vistas a elaborar redação final do texto a ser encaminhado ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República” (Portaria 232 do Ministério da Justiça, de 24 de março de 1998). Quando a Comissão vira as costas, não apenas à vontade de Deus, mas também ao clamor insistente da população, perde o seu caráter de representatividade. Fechada sobre si mesma, o que ela faz é ditar propostas à revelia do povo. Tal atitude é, portanto, ditatorial. Trata-se, como disse, de uma ditadura da minoria.
2) Todas as correspondências foram levadas em conta. A não ser quanto ao – aborto – as manifestações (incluindo o silêncio) subscrevem o anteprojeto.
Comentário: O Ministro faz aqui uma confissão: pelo menos quanto ao aborto, as manifestações não subscrevem o Anteprojeto. E como, dentre as sugestões, “79% se referiam ao tema do aborto” (cf. Folha de S. Paulo, Cotidiano, p. 3, 30/01/99), houve uma autêntica traição da vontade popular. Se a Comissão foi capaz de se manter insensível diante de um protesto tão veemente da sociedade, que terá ela feito em relação às outras manifestações de menor expressão? Tudo isso vem confirmar a propriedade do título que dei à carta aberta ao Ministro da Justiça: “A ditadura da minoria”.
3) A lei penal deve evidenciar – eficácia. Não basta a mera – vigência. Imprescindível a sociedade reclamá-la. Quanto ao adultério e à bigamia, por favor, consulte as distribuições das comarcas brasileiras. Insignificante o número de ações relativas a esses crimes. A introdução do divórcio (certo ou errado) confere ao cônjuge traído, no campo cível, a solução procurada: rompimento do vínculo matrimonial, ensejando outro casamento. Não mais se faz imprescindível a – sociedade conjugal de fato.
Comentário: Se algum dia, por benevolência de Deus, o número de homicídios se tornar insignificante, estará na hora de descriminalizá-lo? Será esta a opinião do Ministro, que pensa em descriminalizar a bigamia e o adultério por serem insignificantes os números de ações relativas a esses crimes?
O divórcio (errado ou errado) confere ao cônjuge o “direito” de trair permanentemente o outro em uma nova união. Mas será que um erro justifica o outro? Tal traição permanente justificaria as traições ocasionais em que consiste o crime de adultério?
4) Data venia, o lenocínio continua infração penal; aliás severamente punida. Registre-se, nunca, no Brasil legislativamente, se conferiu tanta importância ao combate da exploração da prostituição, da pedofilia e do tráfico de pessoas.
5) Atribuo, permita-me observar, apenas leitura rápida ou incompleta do texto, poderá conduzir à sua conclusão.
Comentário: O artigo 172 do Anteprojeto, que incrimina o lenocínio, sintetiza os artigos 228 e 230 do atual Código Penal (favorecimento da prostituição e rufianismo, respectivamente). No entanto, o Anteprojeto suprimiu totalmente o atual artigo 229, que trata especificamente da manutenção de prostíbulos, e cuja redação é:
“Art. 229 – Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro e mediação direta do proprietário ou gerente. Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa“.
Os donos de “motéis”, que vivem às custas de corromper a família, agradecem efusivamente a supressão desse artigo. Com isso os centros de corrupção poderão ser reconhecidos como pessoas jurídicas, sem precisarem ocultar-se sob o razão social de hospedarias.
6) Relativamente ao – aborto – de início, em momento algum se trata de – eugenia. Não há nenhuma semelhança com regimes ditatoriais, de que o nazismo é exemplo recente.
Comentário: O regime nazista eliminava os seres humanos defeituosos. O inciso III do artigo 128 do Anteprojeto autoriza a eliminação do bebê desde que haja “fundada probabilidade… de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais”. Qual é a diferença? Talvez apenas uma diferença de lugar. Pois os nazistas matavam os deficientes fora do organismo materno. Agora, com a evolução da técnica, é possível diagnosticar a deficiência ainda no estado intra-uterino. Tal diagnóstico precoce permite ao médico assassinar a criança não nascida pelo simples fato de ser deficiente. Haverá na História uma discriminação pior do que essa?
A ex-deputada Marta Suplicy teve a sinceridade da chamar tal ato (por ela defendido) de “aborto eugênico” (conferir o texto da justificativa do Projeto de Lei 1956/96 que “autoriza a interrupção da gravidez nos casos previstos na presente lei”). Tal sinceridade faltou na redação do Anteprojeto do Código Penal.
7) O Direito Penal moderno, e nisso recebeu salutar influência do Direito Canônico, consagra o princípio da proporcionalidade. As condutas devem ser diferenciadas a fim de também o serem as sanções.
8) O auto-aborto continuará – crime. A pena cominada justifica-se no sistema. E mais. A lei precisa ser interpretada no contexto histórico-social. Tenho certeza, também em sua paróquia (a regra é geral) somente pessoas humildes são acusadas desse delito. A sua sensibilidade social não pode deixar de considerar esse relevante pormenor. A lei penal não pode ser utilizada para acentuar ainda mais as injustiças sociais: passam diante de nossos olhos e parece, com nossa indiferença, que inexistem!!! Tantas vezes, Deus escreve certo por linhas tortas!
Comentário: De acordo com o Anteprojeto, o auto-aborto continuará crime, mas com uma pena simbólica:
“Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque. Pena – Detenção, de um a nove meses“.
No entanto, a morte de um animal em extinção continuará severamente punida pelo art. 29 da Lei 9.605, de 12.02.98:
“Art. 29 – Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa.
(…)
§ 4º – A pena é aumentada de metade, se o crime é praticado:
contra espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ainda que somente no local da infração“.
Onde está o princípio de proporcionalidade? É justo que um crime contra a vida de um ser humano inocente seja punido com menos severidade que um crime contra o meio ambiente? As crianças valem menos que os micos-leões e os tatus-canastras?
Concordo que, lamentavelmente, muitas vezes os grandes criminosos escapam à justiça e somente os criminosos mais pobres são efetivamente punidos. Isso ocorre, por exemplo, com o furto, a fraude e o estelionato. Tal fato nos autorizaria, porém, a reduzir a pena de tais crimes a algo simbólico, com o fim de favorecer os ladrões menos abastados? Não seria sensato, ao contrário, fazer a lei valer para ambos, ricos e pobres, ao invés de eliminá-la para ambos? Que tal punir tanto as mulheres ricas que matam seus filhos quanto as mulheres pobres autoras do mesmo crime?
9) A eutanásia é crime, como espécie de homicídio. Dada, porém, a motivação, notadamente o grau de culpabilidade (reprovabilidade) – não se confunde com o motivo torpe ou fútil, invocando-se mais uma vez o princípio da proporcionalidade – a cada um conforme a sua obra – o tratamento deve ser diferente. Caso contrário, fazer injustiça – tratar igualmente situações diferentes.
Comentário: De acordo com o Anteprojeto, a eutanásia será punida com reclusão de três a seis anos (art. 121 §3º). O homicídio simples é punido, porém, com reclusão, de seis a vinte anos (art. 121). Como se vê, o médico que assassina seu paciente terá como pena máxima a reclusão de seis anos, o que ironicamente é a pena mínima para um homicídio simples! A vida de um doente grave vale menos que a de um ser humano sadio? A “compaixão” do médico homicida é suficiente para aliviar tanto sua pena?
Agradeço a remessa da mensagem.
Espero não importuná-lo.
Continuo aberto para o debate, inclusive público.
Cumprimento-o respeitosamente.
Abraços.
Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro.
Comentário: O que é mais espantoso nisso tudo é que em agosto de 1998 o Ministro da Justiça Renan Calheiros, em consonância com o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, divulgou pela imprensa que havia desistido de alterar a legislação penal sobre o aborto. De acordo com Renan Calheiros, o artigo 128 (casos de aborto não punível) permaneceria intacto. “Não vamos pôr em pauta um assunto explosivo como este, que ainda não foi suficientemente discutido”, disse (Governo não muda aborto. Jornal do Brasil, 2/8/98). Pelo que ocorreu depois, parece que não podemos contar com a palavra de nossos Ministros.
Anápolis, 20 de fevereiro de 1999.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis