Sempre sonhei com a maternidade. Acho realmente que foi para isso que eu nasci. Tinha a pretensão de que para ter filhos, nós escolhíamos o melhor momento. E este momento, foi o ano de 2004. Nos preparamos desde o início do ano para uma possível gestação. Fiz exames, reduzi o número de atividades, etc.
Giovanna foi um bebê feito com muito amor, nós a desejávamos muito. O exame que deu positivo foi festejado por todos ao nosso redor. Nas primeiras semanas, senti uma forte cólica que segundo a médica, poderia ser um princípio de aborto ou apenas uma cólica de implantação do embrião. Naqueles quinze dias de licença, com medo de perder meu bebê, lembrei que a mãe do Pe. André, um grande amigo nosso, o consagrou a Deus ainda quando estava em seu ventre. Achei aquilo lindo! Resolvi também consagrar meu bebê a Deus e pedi que Ele fizesse dela sua serva. Que ela pudesse apontar Deus para seus irmãos. Acreditei assim, que isto se daria a partir de alguns anos.
No dia 10 de outubro na hora de deitar, falei ao meu marido que estava um pouco preocupada com a ultra que faria no dia seguinte, pois era nesta que se diagnosticava a anencefalia. Uma grande amiga minha tinha tido este diagnóstico a uns 3 anos atrás. Quando entramos para o exame, estava bem mais relaxada e preocupada em saber o sexo do bebê. Começamos a perceber o médico muito preocupado e calado. Quando perguntou se o meu médico estava no consultório naquele momento, gelei. O médico muito delicadamente avisou que a anencefalia era incompatível com a vida. Chorei e de mãos dadas com o Marcelo falamos seguramente que a nossa responsabilidade de pai e mãe em qualquer circunstância já tinha sido assumida quando a fizemos. Ela já estava ali, já se protegia em mim e nós já amávamos. Quando chegamos, procuramos na Internet algo que nos orientasse, mas como estava próximo da votação da suspensão da liminar que liberava o aborto nestes casos só conseguimos ler opiniões contra e a favor do aborto.
O conforto veio de lindas cartas escritas por pais de bebês que possuíam anencefalia. Lendo-as, acabamos nos sentindo escolhidos e privilegiados. Aliás, era um confronto enorme, a tristeza que ficou da gestação de anencefalia da minha amiga, e o amor extremo expresso por estas famílias que viveram com seus filhos o tempo que Deus quis.
Percebemos também que depois da consagração que lhe fiz, Deus tinha dado à ela uma grande missão. Mostrar que tinha vida e que era uma cidadã.
Resolvemos que iríamos curtí-la intensamente cada momento. Gravamos todas as ultras, conversávamos com ela, e ela por sua vez, respondia com carinhosos chutinhos.
Tínhamos o grande desafio de preparar a nossa família e os amigos para esta realidade. Como falar com uma mãe que vai perder seu filho? Pergunta-se como ela está? Como o bebê está? Foi através da carta da Ana Lúcia para o seu filho Vitor (anencéfalo) que preparamos as pessoas mais próximas. Com o amor por ela que passávamos para os outros, fizemos com que todos ao nosso redor, também a amassem.
Foram meses de muita alegria. A única coisa que me fazia sofrer eram as pessoas que não viam vida em mim. Nitidamente, me viam como uma coitadinha que estava “brincando de ser mãe”. Não tocavam no assunto da gravidez. Eram capazes de me vir com aquele barrigão e fingir que não viam.
Giovanna mudou muita coisa ao nosso redor. A começar pelo ultrasonografista, que enquanto nas primeiras ultras se referia a ela no passado (era uma menina), nas últimas já comentava que ela tinha “pernocas”, mostrava sua boquinha, etc.
Nos dias que antecederam o parto, fiquei um tanto apreensiva. Seu nascimento que estava programado para entre 2 e 9 de abril, foi antecipado para 25 de março. Além de ser menos dias para eu curtí-la, (sabia que enquanto estivesse comigo,ela estaria bem)também seria em plena Sexta-Feira Santa .Pensava que era uma opção nossa e que como não se poderia evitar, o seu enterro poderia “atrapalhar” o feriado das pessoas.Tive uma gestação muito tranqüila como qualquer mulher.No final ,foi percebido um problema na minha placenta que não deixava passar nutrientes para ela como deveria. Como eu já havia preparado meu médico para ficarmos o máximo de tempo possível após o parto curtindo a Giovanna,ele antecipou para o dia da Paixão de Cristo. Quando me deparei com a paixão que nós três estávamos passando e pensei na de Cristo, percebi que a perfeição já começava no dia lindo que Deus escolheu para lhe recebermos e Ele recebê-la. Ofereci o nosso sofrimento pela conversão dos pecadores e Deus cuidou do resto. O dia começou com uma chuva fina, como uma forma Dele dizer: Estou presente!Aliás, nunca tivemos um momento tão íntimo com Deus como naquele dia e nos outros que se seguiram. Na maternidade, uma festa. Vinte e seis pessoas entre familiares e amigos aguardavam nos corredores e no quarto para terem a chance de viver o sublime momento da presença dela no meio de nós. Só alegria. Pe. André, padrinho escolhido antes do diagnóstico, me ministrou a Unção do Enfermos, confessou-nos e deu-nos a Eucaristia. Agora estávamos prontos. Na sala de parto, a nossa alegria e expectativa eram contagiantes. Quem via os nossos semblantes, não imaginava o que estava para acontecer. Foi muito tranqüilo e podemos sentir imensamente a presença de Deus ali.
Giovanna recém-nascida, chorando, sua mãe Mônica e Padre André, que fez o batismo.
Giovanna nasceu às 14:17h. Fiquei preocupada pois não ouvia seu choro. Sabia que corria o risco dela não reagir, não respirar e falecer no momento que cortasse o cordão umbilical. Fiquei apreensiva esperando alguém me dar notícias dela. Foi quando ouvi seu chorinho confirmado pelo Pe. André que foi batizá-la. O Papai tirou muitas fotos dela quando o Doutor Alberto, seu pediatra, veio trazê-la para meus braços. Ela era linda! Tinha a boca do Papai e o meu nariz. Seu chorinho era como se me pedisse proteção e foi o que fizemos. Dei carinho, beijo, chorei, pedi desculpas pela vida curta que lhe daria e curtimos muito. Levaram ela e fiquei com uma sensação maravilhosa pois tudo que pedimos já tínhamos conseguido: Que ela fosse batizada e que tivéssemos um tempinho para curti-la. Fui para o quarto e umas 18:00 h fui vê-la. Cheguei lá, os batimentos cardíacos dela estavam baixos e o aparelho emitia um alarme. Ao vê-la fiquei muito emocionada, pois ela estava peladinha e pude observá-la melhor e ver seus pezinhos, seus bracinhos, fofa demais! Comecei a fazer carinho em sua perninha e dizer o quanto ela era amada e o quanto estávamos orgulhosos da sua força. Sem que eu soubesse do seu estado, seus batimentos começaram a subir de 94 para 129 e estabilizaram (o normal é entre 120 e 170) para a surpresa inclusive da enfermeira que estava conosco. Foi a prova física do que eu já sabia. Que ela me reconheceu como aquela que a protegeu durante os nove meses e deu até um “sorrisinho” de tão relaxada que ficou. Foram momentos inesquecíveis. Ver quanto éramos importantes para ela, era tudo o que precisávamos e ao mesmo tempo, nem sei se merecíamos tamanha alegria. Foi colo de Deus mesmo.
Giovanna no colo de sua mãe, Mônica.
Umas 20:30 h pedi ao Marcelo para ver como ela estava. Ele voltou muito emocionado e disse que ela não estava muito bem, que respirava com dificuldades, que já devia ser a hora dela e que não achava bom eu ir lá. Choramos juntos e também rezamos juntos para que Nossa Senhora a recebesse quando chegasse lá e que ela não sofresse. A médica avisou à Miriam (madrinha da Giovanna) que era bom eu ir. Foi o que eu estava precisando. Quando cheguei lá, Giovanna não respirava mais, mais seu semblante era realmente de que não sofreu e de quem tinha partido nos braços da Mãe do Céu. Peguei ela no colo e percebi naquele momento ela estava nos vendo e que sabia do amor que tínhamos por ela. Dei beijos e fiquei um tempo contemplando seu rostinho lindo.
Seu enterro foi tratado às 9:00 h do dia 26 para às 11:00h do mesmo dia. A chuva fina permanecia e por ser um Sábado de Aleluia, imaginamos que as pessoas não teriam tempo de saber e de estarem lá. O carinho de todos foi tão grande que umas 90 pessoas entre amigos e familiares foram nos dar apoio. Marcelo carregou seu caixãozinho com o orgulho de quem deu a vida e dignidade quando esta já não era possível. Sabia que para esta filha, com certeza, teríamos dado o Céu. E que a vida que ela hoje vive não tem mais fim. Giovanna foi uma guerreira que mostrou aos mais incrédulos que era pequena no tamanho, mas grande na necessidade de mostrar o quanto sua vida era importante.
(a parte a seguir foi acrescentada pela autora depois da propaganda do aborto de anencéfalos pela revista Veja)
Hoje, aquela paz abriu espaço para uma inconformação quando ouço a frieza com que falam do assunto.
Chamam-me de hipócrita (Revista Veja 03/09/08) por eu acreditar que crianças que nascem com anencefalia (ausência parcial do cérebro) como minha filha, têm o direito de serem respeitadas como seres humanos e cidadãs que são. Hipócritas são os que defendem os direitos dos excepcionais, mas querem que estes sejam aniquilados pelas suas mães em seu útero se assim elas desejarem.
Minha filha viveu além dos nove meses em meu ventre, apenas 6 horas e 45 minutos, mas nasceu viva e por todo este tempo, respirou sem a ajuda de aparelhos e chorou ao nascer. Esta não é somente uma discussão entre “doutores” e a Igreja como querem que acreditem.
Sinto-me profundamente desrespeitada como mãe quando ouço que uma criança como a minha filha, não tem direito à vida e tê-la protegida pelas leis que regem o meu país. Não admito que se menospreze a importância da vida da minha filha como se faz.
Se estiverem preocupados com o emocional das mães, pensem não só nas mães que rejeitam este filho “imperfeito”, mas também nas mães que os acolheram como príncipes de suas vidas. E desta forma, fica impossível eu não sofrer profundamente ao ouvir que vocês até aceitam que eu leve a gestação até o fim, mas que minha filha não tem o direito de viver o tempo que não sabemos também se ainda teremos para viver. É como se dissessem que respeitam a minha opção de fingir que sou mãe.
Sofro ao ouvir que “o que se tem no ventre materno é algo que nunca chegará a alguém”, “O útero materno é um casulo e o feto, uma crisálida que não chegará a ser uma borboleta. Tem o direito de nascer para morrer?” (Ayres Britto – O Globo 21/10/04). A constituição do meu país “abraça” a dignidade humana da minha filha e a coloca como cidadã que nasceu viva respirou sozinha e veio a óbito naturalmente. Com isso teve direito a certidões de nascimento e óbito e enterro digno como toda mãe deseja para um filho morto. Sofro ao ler em dicionários que anencéfalo é um monstro caracterizado pela ausência de cérebro. Minha filha não nasceu um monstro. Pelo contrario um bebê lindo que carregava características nossas como qualquer outro bebê. Também sofro ao ouvir mentiras tendenciosas como dizer que o bebê que nasce assim não tem vida. Quem não tem vida chora? […]
Não me sinto no direito de julgar aqueles pais que tomaram decisão diferente, pois agem como um homem que por desespero atente contra a vida do assassino de um ente querido. Entendo seus motivos,mas não posso concordar com seus atos. Se eu concordasse com esta liberação, estaria aceitando que a vida da Giovanna é uma verdade relativa. A um interesse meu de passar ou não por um sofrimento. Se não quero passar por ele, então ela não tem vida. Se aceito, tem vida. Tem vida e pronto. Ponto incontestável na minha experiência de mãe que a vi respirar espontaneamente como qualquer outro bebê.
O governo deveria sim, dar todo o apoio físico e psicológico para esta mulher, para que assim como comigo, o que fique, não seja a dor de ter matado um filho, mas uma dor conformada, pois a protegi enquanto a vida lhe foi possível.
Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2008.
Mônica Torres Lopes Sanches.