“É pelo fruto que se conhece a árvore” (Mt 12,33).
No dia 31 de julho de 2002, o Diário Oficial da União publicava o Decreto n.º 4.316, de 30 de julho de 2002, que “promulga o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW). Por este ato, o Brasil se tornou súdito de um Comitê de 23 peritos que, em nome da não discriminação da mulher, vêm recomendando a vários países a legalização do aborto, do lesbianismo e da prostituição, entre outras aberrações. Eis o texto integral do decreto:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VIII, da Constituição,
Considerando que o Congresso Nacional aprovou o texto do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, por meio do Decreto Legislativo no 107, de 6 de junho de 2002;
Considerando que o Protocolo entra em vigor, para o Brasil, em 28 de setembro de2002, nos termos de seu art. 16, parágrafo 2;
DECRETA:
Art. 1º O Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém.
Art. 2º São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido Protocolo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do art. 49, inciso I, da Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Art. 3º Este Decreto entra em vigor em 28 de setembro de 2002.
Brasília, 30 de julho de 2002; 181º da Independência e 114º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Celso Lafer
Qualquer jurista deve ter achado estranho o artigo 3º. A maioria dos decretos termina com a frase: “Este decreto entra em vigor na data de sua publicação”. Nos raros casos em que a entrada em vigor ocorre depois da publicação, a redação costuma ser esta: “Este decreto entra em vigor tantos dias após a data de sua publicação”. No entanto, o decreto acima especificou uma data, com dia, mês e ano para a entrada em vigor. E veja que data foi escolhida: 28 de setembro de 2002, justamente o “Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe”[1],, festejado anualmente pelas feministas! Este fato demonstra a relação íntima que há entre o Protocolo Facultativo à CEDAW e a causa abortista.
Esclarecendo dúvidas
CEDAW[2]: “Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher”. Adotada em 18/12/1979 pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Entrou em vigor em 03/09/1981. Pretende ser uma “carta de direitos” da mulher. Foi assinada pelo Brasil, com reservas, em 31/03/1981 e ratificada, com reservas, em 01/02/1984. Entrou em vigor em nosso país em 02/03/1984. Em 22/06/1994 foi ratificada, sem reservas.
Comitê da CEDAW: um conjunto de 23 peritos que, segundo o artigo 17 da CEDAW, deve “examinar os progressos alcançados na aplicação da Convenção”.
Antecedentes do Comitê: são péssimos. Em nome da não discriminação da mulher, censurou o Chile por não admitir forma alguma de aborto (20/08/1999); criticou a Bielo-Rússia (ou Belarus) por ter instituído o “Dia das Mães”, uma vez que a maternidade não é uma glória a ser exaltada (31/01/2000); recomendou ao Quirquistão que legalizasse o lesbianismo (04/05/1999); recomendou que a China legalizasse a prostituição (04/05/1999) etc.
Atuação do Comitê: totalmente arbitrária. Convém lembrar que o texto da Convenção nada fala sobre o aborto e o lesbianismo, e que condena explicitamente a exploração da prostituição da mulher.
Protocolos Facultativos: Freqüentemente os tratados internacionais sobre direitos humanos são seguidos de “protocolos facultativos”, que contêm regras ou procedimentos adicionais relacionados ao tema em questão. São facultativos, pois os Estados que assinaram a Convenção não são obrigados a aceitá-los.
Protocolo Facultativo à CEDAW: um documento adicional que, se ratificado, aumenta os poderes do Comitê sobre os Estados Partes. O Comitê passa a poder receber denúncias, realizar inquisições (inclusive do território dos países acusados!), fazer recomendações e exigir respostas ao cumprimento destas. Foi adotado em 6 de outubro de 1999 pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
Conseqüências da ratificação do Protocolo Facultativo à CEDAW: “A Convenção estabelece que os ditames do Comitê não são juridicamente vinculantes para os Estados signatários da mesma. Ou seja, que tudo o que o Comitê possa sugerir não passa de um mero conselho, sem que o país esteja obrigado a segui-lo. O Protocolo Facultativo converte esses ditames em juridicamente vinculantes, ou seja, que o Estado estaria obrigado a seguir tais conselhos. Ora, os ditames do Comitê habitualmente pedem – entre outras muitas coisas – mudanças legislativas nos países, aduzindo que não se adequariam à Convenção. Portanto, a assinatura do Protocolo Facultativo poderia significar a obrigatoriedade de realizar mudanças legislativas e inclusive constitucionais nos países que o ratifiquem. Isso simplesmente significa perder a soberania legislativa. Não existe nenhuma Convenção ou Tratado Internacional vigente que contemple um “direito” desta natureza” (Carta de Dr. Jorge Scala[3] a Dom Jayme Chemello, a Dom Aloysio Penna e a Dom Raymundo Damasceno, de 15/06/2002)
Sobre os membros do Comitê: “o Comitê da CEDAW está composto por pessoas que não têm nenhum título profissional habilitante nem nenhuma idoneidade reconhecida objetivamente no campo jurídico. Essas pessoas, sem nenhum conhecimento em matéria de direito, são as que vão obrigar os Estados a modificar suas constituições e legislações internas, e inclusive vão julgar seus governos. Um desatino desta natureza não existe em nenhum outro Tratado ou Convenção Internacional” (idem).
Posição da Conferência Episcopal da Argentina: “Vota-se afirmativamente a expressar parecer negativo da Assembléia Plenária sobre a possível aprovação do Protocolo sobre a discriminação de mulher por parte do Poder Legislativo Nacional, porque implicaria uma renúncia à soberania e deixaria uma brecha aberta à futura aprovação do aborto
+ Guillermo Rodríguez Melgarejo, Secretário Geral da Conferência Episcopal Argentina” (Resolução n.º 3 da 82ª Assembléia Plenária da Conferência Episcopal Argentina – NOTIVIDA, 29/11/2001).
Posição da Conferência Episcopal do Chile: “Os países deveriam seguir os ditames das Nações Unidas em matéria de política social? Definitivamente não, responde o presidente da Conferência Episcopal Chilena, o cardeal Francisco Javier Errázuriz. O senado do Chile está debatendo a ratificação de um protocolo facultativo à Convenção das Nações Unidas para a Eliminação de toda Forma de Discriminação da Mulher (CEDAW). O jornal O Mercúrio informava em 09 de janeiro que a Igreja Católica havia pedido ao senado que não ratificasse dito protocolo, posto que ele obrigaria ao Chile a legalizar o aborto”.(ZENIT, 02/02/2002).
Posição da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: A CNBB é, ao que se tem notícia, a única Conferência Episcopal do mundo que se posicionou a favor da ratificação do Protocolo Facultativo. Ao menos esta foi a posição de Dom Aloysio Leal Penna, “em nome da presidência da CNBB”, em audiência pública no Senado Federal em 21/05/2002, desautorizando a posição de 71 irmãos no episcopado. Até hoje não houve qualquer retratação oficial vinda da Conferência.
Cronologia da tragédia
13/03/2001 – o governo brasileiro assina, em Nova York, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW).
26/04/2001 – o Poder Executivo brasileiro apresenta à Câmara dos Deputados a Mensagem 374/2001 que “submete à consideração do Congresso Nacional o texto do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, assinado pelo governo brasileiro no dia 13 de março de 2001, na sede das Nações Unidas, em Nova York”.
03/10/2001 – aprovada a Mensagem na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Transforma-se no Projeto de Decreto Legislativo 1357/2001.
20/11/2001 – os líderes da Câmara apresentam um requerimento de urgência para o Projeto de Decreto Legislativo 1357/2001.
28/11/2001 – o Projeto é aprovado por unanimidade na Comissão de Seguridade Social e Família, acatando parecer da deputada Laura Carneiro.
06/12/2001 – é aprovado no plenário da Câmara o requerimento de urgência feito pelos líderes no dia 20/11/2001.
12/12/2001 – o plenário da Câmara aprova o projeto, discutido em turno único.
05/02/2002 – O Senado recebe a proposição, que se transforma no Projeto de Decreto Legislativo 1/2002 (abreviadamente, PDS 1/2002).
28/02/2002 – a Senadora Emília Fernandes (PT/RS) é designada como relatora do Projeto na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado.
16/04/2002 – A Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional aprova o parecer da relatora, favorável ao Projeto.
10 a 19/04/2002 – Setenta e um Bispos, reunidos em Itaici, na 40ª Assembléia Geral da CNBB, assinam uma carta solicitando ao Senado a rejeição do Protocolo Facultativo à CEDAW (PDS 1/2002). O documento termina assim: “Apelamos para essa Casa de Leis pedindo, em nome do que resta de nossa soberania nacional, em nome da defesa da vida e da família brasileira, que digam NÃO ao PDS 1/2002. Deus saberá recompensar os Senadores pelo atendimento a este pedido.”
25/04/2002 – Dom Raymundo Damasceno, secretário geral da CNBB, advertido de que a matéria estava em pauta, vai pessoalmente ao Senado e entrega a Carta dos 71 Bispos, acompanhada do ofício SG. n.º 313/02 por ele assinado, solicitando o adiamento da votação. Como conseqüência, o Senador Tião Viana (PT/AC) e outros quatro assinam um requerimento de adiamento, que é aprovado. A discussão da matéria é adiada para 5 de junho de 2002.
07/05/2002 – a Senadora Emília Fernades (PT/RS), inconformada, envia o Ofício n.º 327/2002 aos Senadores, convidando-os para participar de uma reunião referente ao Protocolo, a ser realizada no dia 21 de maio, terça-feira, às 17 h 30min, na sala 13 (Comissão de Serviços de Infra-Estrutura) no Senado. As autoridades convidadas são: 1. Dom Raymundo Damasceno, Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; 2. Ministro Hildebrando Tadeu Nascimento Valadares, Diretor Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, do Ministério de Relações Exteriores; 3. Dra. Solange Bentes, Secretária Nacional dos Direitos da Mulher e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher; 4. Dra. Sílvia Pimentel, Coordenadora Nacional do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/Brasil); 5. Dra. Flávia Piovesan, Procuradora Pública do Estado de São Paulo e Professora de Direito Constitucional da PUC. Com exceção do primeiro convidado, todos são favoráveis ao projeto. O desequilíbrio do debate é patente.
21/05/2002 – Ocorre a audiência pública no Senado. No lugar de Dom Raymundo Damasceno, comparece Dom Aloysio Penna, Arcebispo de Botucacu e responsável pelo Setor Família e Vida da CNBB. Foi o terceiro orador:
Quero deixar bem claro que estou representando aqui a Presidência da CNBB e a Comissão Episcopal de Pastoral, que se reúne todos os meses aqui em Brasília para analisar os principais problemas da Igreja do Brasil. […]
Desde a assinatura pelo Governo brasileiro do Protocolo de 13 de março de 2001, entidades de direitos humanos, em especial dos que lutam contra desigualdade de gênero, tem lutado pela regulamentação do Instrumento Jurídico internacional pelo Brasil. […]
A CNBB fez um pedido aos nobres Senadores para que fosse dado um pouco mais de tempo para que setores interessados pudessem aprofundar tão importante assunto. Agradecemos que isto tenha acontecido. […]
Acreditamos que a CEDAW, “Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher”, aprovada por quase todos os países, luta em favor da causa da mulher, infelizmente ainda tão marginalizada no Brasil e no mundo. […]
A CEDAW recomenda combatermos todas as formas de discriminação das mulheres.
Os “Comitês da CEDAW”, cuja finalidade é a de comunicar, divulgar e a de receber denúncias contra o “Protocolo Facultativo” da CEDAW, são formados por “experts” escolhidos nos diversos países que assinaram o “Protocolo Facultativo”. A escolha de especialistas deve levar em conta o pluralismo das posições acerca de conceitos relacionados com a vida.
[Nota: o parágrafo acima contém dois erros. Primeiro fala de “Comitês” da CEDAW, quando, na verdade, só existe um Comitê. Depois, diz que sua finalidade é “comunicar, divulgar e receber denúncias contra o Protocolo Facultativo”. Na verdade, o Comitê tem por finalidade considerar denúncias contra a Convenção (CEDAW), e não contra o Protocolo. Este não é uma carta de direitos da mulher, mas um documento adicional que aumenta os poderes do Comitê. Além disso, surpreendentemente, o Arcebispo pareceu colocar o pluralismo acima da defesa incondicional da vida humana]
Quando a oradora seguinte, Dra. Sílvia Pimentel, propõe-se a comentar a carta dos 71 Bispos, Dom Aloysio pede um aparte:
Eu queria esclarecer que há dois documentos: uma carta que foi assinada lá por dezessete representantes da CNBB… dos Regionais da CNBB. Agora, eu tenho que dizer, a bem da verdade, que foi entregue, juntamente com essa carta, que é uma folha só, um outro documento, que não é absolutamente oficial da CNBB e que não representa o pensamento da CNBB. O pensamento da CNBB é… foi o que eu expressei aqui. Essa carta infelizmente ela foi mandada assim para a CNBB, e o Dom Damasceno… ele reconhece isso, se estivesse aqui ele reconheceria… ele pegou junto e não devia ter entregue. Eu só queria esclarecer isso… Queria que a senhora se ativesse só a uma carta muito lacônica que foi assinada pelos dezessete Bispos. [O negrito corresponde às palavras pronunciadas pelo Bispo com maior ênfase]
[Nota: O aparte de Dom Aloysio é incompreensível. Em seu pronunciamento, ele reconheceu que foi a CNBB quem pediu o adiamento da votação da matéria. Logo, considerou válido o ofício de Dom Raymundo Damasceno, dirigido ao presidente do Senado. No entanto, o mesmo ofício também encaminhava a carta em que 71 Bispos, representantes dos diversos Regionais da CNBB, solicitavam a rejeição do Protocolo Facultativo. Ao que parece, Dom Aloysio impugnou o valor da carta, mas não do ofício que a encaminhou! Quem compreende isso?
Além disso, parece que a carta que fora entregue “por engano” deveria ter mais de uma folha, ao contrário de outra, “muito lacônica, que foi assinada por dezessete Bispos”. Mas tanto o ofício de encaminhamento quanto a carta assinada pelos Bispos, só têm uma folha. Ninguém tem conhecimento de outro documento, prolixo e de várias páginas, que tivesse sido entregue por engano.
Finalmente a Carta não era assinada por 17 Bispos, mas por 71 Bispos. Dezessete é o número de Regionais da CNBB que, segundo Dom Damasceno, estavam representados na Carta. Quanta confusão!]
A palestra da Dra. Sílvia Pimentel acaba por confirmar o que dizia a carta dos 71 Bispos. Não podendo negar os fatos, ela confirma que, embora o lesbianismo não apareça no texto da Convenção, o Comitê recomendou o Quirquistão que o legalizasse. Confirma também que o Comitê recomendou à China que legalizasse a prostituição. E para tentar justificar-se, ela diz que a Convenção, em seu artigo 6º, não proibiu a prostituição, mas apenas “a exploração da prostituição feminina”. Com esta sutil distinção, Dra. Sílvia acha que o Comitê está inocentado. Com relação à Bielo-Rússia, ela confirma que o Comitê mostrou-se preocupado pela reintrodução do “Dia das Mães”. Segundo a palestrante, não pode haver uma “redução do ser humano mulher a sua dimensão de mãe. A maternidade deve ser uma escolha e não um destino compulsório das mulheres”. Com relação ao aborto, cuja legalização foi recomendada ao Chile e ao Burundi, entre outros países, a doutora tenta, em vão, dizer que não se trataram de “recomendações”, mas apenas de expressão de “preocupação” por o aborto não ser legal, acompanhada de um “convite” para que os países revisem suas leis. Mas acaba dizendo claramente:
Está provado que o aborto clandestino é responsável por alto índice de mortalidade materna no Brasil e no mundo [isso é falso, conforme se pode ver examinando as estatísticas do Ministério da Saúde sobre as causas de mortalidade]. E é visando defender o direito à vida das mulheres que o Comitê tem recomendado a certos países que diminuam as restrições legais ao aborto (sic).
Ora, diminuir as restrições legais ao aborto equivale a legalizá-lo. Assim, examinando, ponto por ponto, a Carta dos 71 Bispos, Dra. Sílvia acaba por confirmar a monstruosidade do Comitê ao qual o Brasil estava para se submeter, caso ratificasse o Protocolo Facultativo.
No entanto, nada disso faz mudar o parecer de Dom Aloysio, que diz ao fim da audiência:
Eu queria manifestar mais uma vez que essa carta foi falha nossa. Reconheço mais uma vez, não representa a posição da presidência da CNBB. A posição está aqui neste documento, que eu acho que a gente pode considerar como um documento oficial que possa ser usado.
[O documento oficial, a que se refere Dom Aloysio, foi o pronunciamento que fizera naquela noite. A Carta assinada pelos 71 Bispos teria sido “uma falha”.]
Eu gostaria de deixar claras aqui as palavras daquela que foi mais incisiva e encarou mais diretamente a carta da CNBB, a Srª Sílvia, ao resumir: “Os católicos e outros religiosos têm o direito de construir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte da sociedade”. Estou inteiramente de acordo. “Mas não têm o direito de pretender hegemonizar a cultura de um Estado laico”. Professei aqui, claramente, que estamos num Estado pluralista laico, onde a Igreja está separada do Estado desde a República, e que devemos e temos a obrigação de defender aquilo que achamos que corresponde ao Evangelho, etc.
A Senadora Marina Silva toca o ponto fulcral da questão. Acho que o problema principal é o problema do aborto. Então, temos posições diferentes, inclusive baseados no princípio de que achamos [sic] que, desde que uma mulher gere uma nova criatura, o direito não é mais dela, mas do novo ser humano que está ali, que tem alma imortal, criado à imagem… Esse é um ponto de vista que nós, como parte da sociedade, podemos defender.
[O Arcebispo faz suas as palavras da Dra. Sílvia Pimentel, defensora do aborto. A Igreja não pode “hegemonizar a cultura de um Estado laico”. Ela apenas pode dizer que “acha” que a mulher não tem direito à vida do ser humano que está em seu ventre.]
[…]
Eu queria afirmar aqui, com toda a minha convicção, que a posição da CNBB é construtiva, e nós não aceitamos métodos violentos de quem quer que seja. Entende? Se existem violências no modo de tratar isso aqui, não é da vontade da CNBB. São pessoas que assumem essa responsabilidade, mas sem a aprovação, sem o consentimento, sem o apoio da CNBB.
[A carta dos 71 Bispos teria, segundo Dom Aloysio, sido violenta, ao sustentar a inviolabilidade do direito à vida como um valor absoluto, e não como uma opinião da Igreja]
27/05/2002 – A TV Senado transmite às 17h 15min o vídeo contendo a gravação da Audiência Pública ocorrida no dia 21 de maio de 2002, no Senado Federal, sobre o Protocolo Facultativo à CEDAW.
05/06/2002 – Dom Manoel Pestana Filho, Bispo de Anápolis, comparece ao Senado e envia uma carta de repúdio ao projeto, que está em pauta. A carta é lida pelo Senador Álvaro Dias (PDT/PR):
A manifestação inequívoca de 70 Prelados católicos brasileiros, que subscreveram o pedido inicial, mantém-se de pé, não obstante a incompreensão de alguma voz. Doutro lado, os argumentos da confrontadora, retransmitidos pela TV Senado, só fizeram confirmar os temores dos que se opunham à aprovação. Justifica-se, pois, amplamente, a negativa dos Estados Unidos em subscrevê-lo, bem como a resistência, no mesmo sentido, dos Episcopados argentino e chileno, e de associações internacionais de médicos e juristas católicos [os grifos são do original].
Repetidas vezes a Senadora Emília Fernandes tomou a palavra para defender o Protocolo Facultativo. O argumento chave foi a desautorização de Dom Aloysio à Carta dos 71 Bispos:
Acredito que a reunião realizada no Senado Federal encerrou a etapa de dúvidas existentes em torno da matéria, dando oportunidade a um consenso fundamental à sua aprovação, e que a posição da CNBB deixou claro que a entidade desautorizou qualquer outro documento que porventura esteja sendo divulgado. Que todo documento, a não ser este que foi entregue pela CNBB, corresponde a posições particulares e não da totalidade da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.
Assim, às 12h 45min, o Projeto de Decreto de Legislativo 1/2002 acabou sendo aprovado por maioria.
0706/2002 – O Diário Oficial da União publica o Decreto Legislativo n.º 107 de 2002, que “aprova o texto do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, assinado pelo governo brasileiro no dia 13 de março de 2001, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque”.
28/06/2002 – O instrumento de ratificação do Protocolo Facultativo é depositado junto à Secretaria Geral da ONU.
31/07/2002 – o Diário Oficial da União publica o Decreto n.º 4.316, de 30 de julho de 2002, que “promulga o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW)
28/09/2002– entra em vigor o Decreto acima, justamente no “Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe”.
A tragédia continua
No dia 04 de setembro de 2002, o Senado aprovou a Medida Provisória que criou a “Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher” (SEDIM)[4].
No dia 22 de outubro de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso lançou, em cerimônia na Palácio do Planalto, um Relatório Nacional Brasileiro Relativo aos anos de 1985, 1989, 1993, 1997 e 2001, nos termos do artigo 18 da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher[5].
“Esse relatório, inédito no Brasil, será enviado à ONU, que a partir de agora vai monitorar a situação da mulher no Brasil [grifei]. Novos dados serão enviados a cada quatro anos”[6].
O documento, de 276 páginas, foi coordenado por duas feministas que estavam presentes à mesa do dia do fatídico pronunciamento de D. Aloysio: Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel. Contou com o consórcio de várias organizações abortistas: ADVOCACI; AGENDE; CEPIA; CFÊMEA; CLADEM; GELEDES; NEV; THEMIS. Como não poderia deixar de ser, o documento elogia a Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes” que introduziu o aborto no SUS em nível federal em novembro de 1998; louva os juízes que, por sua própria conta, têm autorizado o aborto eugênico, e faz um lamento: “A descriminalização do aborto ainda encontra grandes resistências, principalmente em setores da sociedade ligados à Igreja Católica” (p. 221). As decisões judiciais que, ao arrepio da lei, vêm reconhecendo a união de pessoas do mesmo sexo são enumeradas com louvor (p. 105-106). O relatório constata com apreensão, que há “indícios de uma revitalização de ideologias maternalistas – que reduzem a mulher à sua dimensão de mãe – em documentos recentes elaborados e divulgados pelo MEC e Ministério da Assistência e Previdência Social”[7]. (p. 176).
Uma vez no governo, o presidente Lula assinou a Medida Provisória n.º 103/03 que transformou a SEDIM, vinculada ao Ministério da Justiça, na Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência da República. E que nome o presidente escolheu para a nova secretaria? A ex-senadora Emília Fernandes (PT/RS), ardorosa defensora do Protocolo Facultativo. No dia 2 de janeiro de 2003, ela tomou posse.
“Com status de ministério, a antiga Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher sairá da Justiça e ficará diretamente subordinada à Presidência da República, terá um orçamento de R$ 20 milhões e uma equipe de 32 pessoas. O aprimoramento de campanhas para estimular as denúncias [grifei] de violência contra a mulher e de programas de para diminuição das mortes relacionadas à gravidez, além de ações para redução da desigualdade, estão entre as medidas emergenciais da pasta de Emília Fernandes”[8].
Se alguma mulher, portanto, se sentir discriminada por não poder praticar um aborto, por não poder “casar-se” com outra mulher ou por não poder exercer a “profissão” de prostituta, poderá apresentar a denúncia à secretária Emília Fernandes. Caso seja necessário, ela encaminhará o caso ao Comitê da CEDAW, que tomará as devidas providências.
Anápolis, 02 de fevereiro de 2003.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz.
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] Ver <http://www.campanha28set.org>;
[2] Em inglês “Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women”. Lê-se “cidó”, embora vários pronunciem “cedáu”.
[3] Grande líder pró-vida argentino. Advogado formado em 1982 pela Universidade Nacional de Córdoba, é Coordenador para a República Argentina, do Conselho Latino-Americano para a Vida e a Família. Entre suas publicações, destaca-se “IPPF, la multinacional de la muerte“, na qual desmascara o plano da IPPF para a disseminação da “cultura da morte” em todo o planeta.
[5] O relatório pode ser baixado na Internet em formato ZIP no endereço <http://www.mj.gov.br/sedh/cndm/portal/CEDAW.ZIP>;