Hélio Bicudo
Presidente da Federação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos
[Jornal do Brasil, 02/AGO/2004]

A decisão do ministro Marco Aurelio, do Supremo Tribunal Federal, de considerar a anencefalia fundamento para o aborto legal pode merecer reparos do ponto de vista da interpretação do texto constitucional, tendo em vista o disposto no artigo 5º da Constituição Federal, que garante a inviolabilidade do direito à vida, e, bem assim, o estabelecido no artigo 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), que considera o direito à vida a partir da concepção.

Esse dispositivo se incorpora à legislação constitucional brasileira, nos termos do mesmo artigo 5º da Carta política, quando em seu parágrafo 2º estabelece que ”os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Saliente-se que o Brasil ratificou a Convenção Americana em 1992.

Entretanto, um fato restou claro na decisão do eminente ministro. Conforme consta de seu despacho, ele teria levado o problema à consideração do plenário do Supremo Tribunal Federal, que não se manifestou, entrando, de seguida, em férias coletivas, e, portanto, relegando a solução do problema para a oportunidade da reabertura dos trabalhos do tribunal.

Ora, se o ministro estava convencido da legitimidade do aborto in casu, aguardasse ele o retorno dos ministros em férias para decidir. Correria o risco de, tomada a decisão, não ter ela a eficácia pretendida. Da mesma maneira, uma liminar tornaria sem eficácia decisão ulterior em sentido contrário, pois o aborto já se consumara com autorização judicial. Ou então a decisão ulterior reconheceria o fato consumado, apenas porque consumado.

Esse episódio torna claro que já é tempo de acabarmos, de vez, com férias coletivas de juízes e tribunais, que suscitam questões de difícil reposta, permitindo que um juiz decida por toda uma corte que, ouvida oportunamente, poderia concluir de maneira inteiramente contrária à decisão tomada, tornada, de fato, irrevogável.

A Justiça brasileira, por defeitos estruturais que mantém, possui uma organização que não mais atenta para as premências de um mundo em rápida transformação.

A chamada reforma do Poder Judiciário, que desfigurou por inteiro a proposta inicial que objetivava a sua maior eficiência, mediante a aproximação das partes e dos juízos, não passa de um reforma cosmética, feita para que se pense que foi feita, deixando permanecer os mesmos vícios de todos conhecidos e que impedem a atuação de um Poder Judiciário que atenda aos naturais anseios do povo por uma verdadeira Justiça.

A procrastinação da justiça é, talvez, um dos maiores males para sua efetivação, como torna claro a decisão agora adotada por apenas um ministro da Corte Suprema, ante a impossibilidade de se ouvir o seu plenário em tempo útil.

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