“Espantai-vos disso, ó céus, horrorizai-vos e abalai-vos profundamente” (Jr 2,12)
No dia 25 de março de 1998 (por coincidência, solenidade da Anunciação do Senhor) o Diário Oficial da União publicava a portaria 232 do Ministério da Justiça, constituindo uma “Comissão Revisora” do Anteprojeto do Código Penal, presidida pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. O objetivo da Comissão era “receber sugestões com vistas a elaborar a redação final do texto a ser encaminhado ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República” (D.O.U. 25/03/1998).
Na verdade, o Anteprojeto do Código Penal estava tão cheio de defeitos, que se fazia necessária uma acurada revisão. Tal revisão seria feita por conceituados juristas, depois de ouvidas as críticas da sociedade. Acontece que, por volta de agosto de 1998, o Ministério da Justiça se via entulhado de cartas de protesto vindas de toda a parte do Brasil.
De fato, não era cabível a homenagem póstuma prestada ao nazismo com a descriminalização do aborto eugênico (art. 128 inciso III), autorizando a eliminação de seres humanos defeituosos. Não era admissível a redução da pena do auto-aborto à ridícula detenção de um a nove meses (art. 124) menor que a prevista para quem mata um mico-leão ou um tatu-canastra (cf. art. 29 da lei 9605 de 12/02/98). Não era aceitável o golpe à família brasileira da descriminalização do adultério e da bigamia. Nem se podia admitir a exclusão do atual artigo 229, que incrimina os mantenedores de prostíbulos e “motéis”. Além disso, para o médico que “por compaixão” (sic) assassinasse um paciente terminal, a pena máxima seria seis anos de reclusão (art. 121 §3º), exatamente igual à pena mínima prevista para o homicídio simples (seis a vinte anos de reclusão; art. 121)!
Ao clamor da população juntou-se um fator de peso (talvez decisivo) para o recuo dos juristas: o presidente Fernando Henrique Cardoso estava em plena campanha de reeleição, e não convinha ao governo federal, em tais circunstâncias, tomar atitudes impopulares como a inclusão de tais aberrações na reforma do Código Penal.
Muitos se alegraram quando em 2 de agosto de 1998, o Jornal do Brasil publicou a matéria “Governo não muda aborto“. Naquela época, tanto o Ministro da Justiça Renan Calheiros, quanto o presidente da Comissão Luiz Vicente Cernicchiaro concordaram em manter intacta a legislação atual acerca do aborto, deixando eventuais alterações por conta do Congresso Nacional. “Não podemos pôr em pauta um assunto explosivo como este, que ainda não foi suficientemente discutido“, dizia Calheiros.
No entanto, passado o período eleitoral, por uma estranha mágica, a Comissão Revisora resolveu voltar atrás, reincluindo no Anteprojeto os mesmos atentados à vida e à família. No dia 14 de janeiro de 1999 eu me deparava com uma manchete escrita na página 14 do Correio Braziliense em letras enormes: “PENA MENOR PARA O ABORTO”. Tudo voltava a ser como antes: aborto, eutanásia, adultério, bigamia, prostíbulos… como se de nada tivesse valido o protesto popular.
Enviei então, no dia 20 de janeiro de 1999, uma carta aberta ao Ministro da Justiça Renan Calheiros, intitulada “A ditadura da minoria”. Não foi o destinatário da carta, mas o presidente da Comissão, o Ministro Cernicchiaro, que se dignou responder. O tom da carta foi extremamente gentil, aberto ao diálogo, inclusive público. No entanto, na tentativa de justificar-se, o Ministro fez uma impressionante confissão, que transcrevo ipsis literis: “Todas as correspondências foram levadas em conta. A não ser quanto ao aborto (sic) as manifestações (incluindo o silêncio) subscrevem o anteprojeto” (carta, 25/01/1999). Em outras palavras: pelo menos quanto ao aborto, as manifestações não subscrevem o Anteprojeto. E como, dentre as sugestões, “79% se referiam ao tema do aborto” (cf. Folha de São Paulo, Cotidiano, p. 3, 30/01/1999), houve uma autêntica traição da vontade popular. Pergunto: se a Comissão foi capaz de se manter insensível diante de um protesto tão veemente da sociedade, que terá ela feito em relação às outras manifestações de menor expressão? Estaremos nós em face de uma Comissão instituída “pro forma“, para dar a mera aparência de participação popular em um anteprojeto já preestabelecido? Nenhum valor terá tido a palavra de nossos Ministros dada há poucos meses? Estarão todos os valores, inclusive a vida, submissos às circunstâncias eleitorais (ou eleitoreiras)?
Na democracia absoluta, a vontade de Deus não tem poder. O que manda é a vontade do povo. Na impossibilidade do consenso, prevalece a vontade da maioria. Que nome dará o leitor a um regime em que se faz a vontade de uma minoria de juristas, à revelia da esmagadora maioria da população?
Anápolis, 12 de março de 1999.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz