(sobre o altar, Jesus entrega ao Pai sua vida por nós)

Jesus, que veio para que tenhamos vida “e vida em abundância” (Jo 10,10), deu sua vida por nós, suas ovelhas (cf. Jo 10,15) e a deu livremente (cf. Jo 10,18) ao ser “elevado da terra” (Jo 12,32) sobre a cruz. Quis, porém, que esse mesmo sacrifício cruento (sangrento) fosse realizado de maneira incruenta (sem derramamento de sangue) sobre os nossos altares: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19; 1Cor 11,24-25).

Deixou-nos, assim, a Eucaristia, em que ele se oferece ao Pai em sacrifício e se entrega a nós como alimento. A Eucaristia é, portanto, sacrifício (Missa) e sacramento (Comunhão).

“A Igreja vive da Eucaristia” (Ecclesia de Eucharistia vivit). Logo, não podemos viver sem o sacrifício incruento de Jesus sobre os nossos altares – a Santa Missa – e sem comer e beber o seu Corpo e o seu Sangue sob as espécies do Pão e do Vinho – a Sagrada Comunhão.

Como pôde observar Pe. Philip J. Reilly, fundador dos Helpers of God’s Precious Infants (Ajudantes das Preciosas Crianças de Deus)[1] o trabalho pró-vida mostra-se infrutífero se não for alicerçado na Eucaristia.

A primeira Missa

A primeira Santa Missa foi celebrada pelo próprio Senhor na noite de quinta-feira santa, enquanto ceava com os seus discípulos.

A segunda Missa

A segunda Santa Missa foi celebrada na tarde do domingo da Ressurreição. A Liturgia da Palavra se deu no caminho com dois discípulos, quando o Senhor, “começando por Moisés e por todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito” (Lc 24,27). A Liturgia Eucarística se deu em Emaús, quando. “à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e distribuiu-o a eles” (Lc 24,30).

Os ágapes

No tempo dos Apóstolos, a Santa Missa, à semelhança da Última Ceia, era celebrada à tarde e precedida por uma ceia fraterna chamada ágape. Isso, porém, deu ocasião a abusos, já denunciados por São Paulo: “Cada um se apressa a comer a própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,21). Por esse motivo, já no fim do primeiro século ou no início do século II, a Missa passou a ser celebrada de manhã, dissociada dos ágapes.

A bula “Quo primum tempore”

Em 1570, o Papa São Pio V, pela bula “Quo primum tempore”, quis editar um Missal que servisse de referência e unidade na celebração da Santa Missa no rito latino. Isso era mais do que oportuno, pois o mundo acabava de ser agitado pela “Reforma” de Lutero (1517), que tanta confusão causara, inclusive em matéria litúrgica. Sobre isso, o Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, foi categórico:

Não há nenhuma liturgia tridentina e até 1965, ninguém teria sabido o que significava essa palavra. O Concílio de Trento não “fez” nenhuma liturgia. E tampouco há nenhum missal de São Pio V no sentido estrito. O missal que apareceu no ano 1570 por encargo de Pio V só diferia em pequenas coisas da primeira edição impressa do Missal romano, aparecida uns cem anos antes. Na reforma de Pio V se tratava simplesmente de eliminar as impurezas que haviam sido infiltradas durante a baixa Idade Média e os erros que se haviam cometido ao copiar e imprimir, voltando a estabelecer como regra para toda a Igreja o Missal Romano, que não havia quase sido afetado por essas transformações.

[…]

Já no ano 1614 havia aparecido, durante o papado de Urbano VIII, uma nova versão do missal, que também incluía diferentes melhorias. Quer dizer, tanto antes como depois de Pio V, cada século foi deixando suas marcas no missal, que era concebido como um único livro, submetido por um lado, a um contínuo processo de purificação e, por outro, de crescimento[2].

O Concílio Vaticano II

O primeiro documento do Concílio Vaticano II – a Constituição Dogmática “Sacrossanctum Concilium” – versava sobre a Liturgia e falava, entre outras coisas, sobre a conveniência de uma reforma litúrgica. Na sessão solene de 4 de dezembro de 1963, sob a presidência do Papa São Paulo VI, o documento recebeu apenas 4 votos negativos e 2147 votos favoráveis. A aprovação foi praticamente unânime. Os Padres Conciliares queriam uma reforma na Liturgia, incluindo a Santa Missa, o Calendário Litúrgico, os Sacramentos e o Ofício Divino.

A Constituição “Missale Romanum”

Seguindo os ditames do Concílio Vaticano II, o Papa São Paulo VI, em 1969, promulgou, com a Constituição “Missale Romanum”, o novo Missal, do mesmo modo que, há quatro séculos, São Pio V havia promulgado um novo Missal conforme decisão do Concílio de Trento. Até aí, nada de extraordinário.

Porém, lamentavelmente, o novo Missal surgiu num clima de euforia, em que se pregava que o Concílio Vaticano II teria sido uma novidade absoluta para a Igreja, em ruptura completa com o passado. Em nome do Concílio pregava-se a liberdade de agir “seguindo a sua consciência”, sem levar em conta a norma objetiva da moralidade. Confessores autorizavam o uso da pílula anticoncepcional, sacerdotes abandonavam o sacerdócio, religiosas deixavam seu hábito; tudo parecia novo, mas de uma novidade destrutiva.

A reforma do Missal serviu de pretexto para que se fizessem coisas que nele não estavam escritas e que o Concílio jamais aprovara: o abandono do canto gregoriano e da polifonia, a troca do órgão de tubos por instrumentos de som estridente, a total supressão da língua latina, erros nas traduções para o vernáculo, a apresentação da Missa como um banquete fraterno, sem qualquer referência ao sacrifício de Cristo, a apresentação do povo como um “segundo celebrante” convidado a dizer palavras reservadas ao sacerdote…

A culpa de toda essa dessacralização caiu, então, sobre a reforma litúrgica promulgada por São Paulo VI. Seria necessário – diziam os “tradicionalistas” – retornar à forma litúrgica anterior, impropriamente chamada Missa “tridentina” ou “de São Pio V”. Na verdade, após São Pio V, o missal já havia sido reformado várias vezes. A última reforma havia sido feita por São João XXIII em 1962. O retorno ao Missal de 1962 foi apresentado como um retorno à “Tradição”. O novo Missal seria indigno da Liturgia. Segundo alguns, a celebração com o novo Missal constituía uma abominação, comparável aos cultos idolátricos. Segundo outros, a “nova Missa” seria simplesmente inválida. Outros admitiriam que ela é válida, mas herética. Por fim, outros diriam: “A nova Missa não é herética, mas conduz à heresia”.

O banquete do Cordeiro

Scott Hahn, ex-ministro protestante, narra em seu livro “O banquete do Cordeiro”[3], como a sua conversão à Igreja Católica se deu em 1985 após observar a celebração da Missa em uma capela de Milwaukee (EUA).

À minha frente havia um número considerável de fieis, homens e mulheres de todas as idades.

Impressionaram-me suas reflexões e sua evidente concentração na oração. Então um sino soou e todos se levantaram quando o padre surgiu de uma porta ao lado do altar (p. 21).

Scott decidiu ficar sentado no fundo da capela, com a Bíblia aberta ao lado.

Entretanto, à medida que a missa prosseguia, alguma coisa me tocou. A Bíblia não estava só ao meu lado. Estava diante de mim – nas palavras da missa! Um versículo era de Isaías, outro dos Salmos, outro de Paulo (p. 22).

Com as palavras da consagração e a elevação da hóstia branca, todas as suas dúvidas se esvaíram: “Meu Senhor e meu Deus. Sois realmente vós!”.

Não imaginava uma emoção maior que a que aquelas palavras provocavam em mim. Porém a experiência intensificou-se quando ouvi a congregação repetir: “Cordeiro de Deus… Cordeiro de Deus… Cordeiro de Deus”, e o sacerdote a responder: “Eis o Cordeio de Deus…” enquanto elevava a hóstia (p. 22).

A menção do Cordeiro conduziu Scott Hahn ao Apocalipse, onde Jesus é apresentado como Cordeiro por 28 vezes. Conduziu-o às núpcias do Cordeiro. Conduziu-o ao trono do céu, onde Jesus é saudado como Cordeiro.

Espere um pouco. Isso é o céu.

Não, isso é a missa.

Não, é o livro do Apocalipse.

Espere um pouco: isso é tudo o que está acima (p. 24).

A belíssima narrativa acima mostra como uma digna celebração da Santa Missa foi ocasião de atrair um protestante à fé católica. Ele viu a Missa não como simples banquete fraterno, mas como um verdadeiro sacrifício, em que a vítima é o Cordeiro. Qual foi a Missa que o levou à conversão? A Missa de sempre, a mesma que foi celebrada por Jesus na Última Ceia, e que assumiu tantas formas no decorrer dos séculos.

Em qual forma ela foi celebrada? Na forma atual, do Missal promulgado por São Paulo VI. Percebe-se que, em vez de conduzir à heresia, a “nova Missa” conduziu alguém da heresia à verdadeira fé.

“Pode um Papa fixar um rito para sempre?”

A pergunta acima foi feita por Dom Gaetano Bonicelli, arcebispo de Sena, à Congregação para o Culto Divino. A resposta, de 11 de junho de 1999 foi: “Não”. E acrescentou:

Sobre o poder da Igreja acerca da administração do sacramento da Eucaristia, o Concílio de Trento declara expressamente: ‘A Igreja teve sempre o poder de, na administração dos sacramentos, salva a substância, estabelecer ou mudar o que julgasse mais conveniente à utilidade de quem recebe ou à veneração dos próprios sacramentos, segundo a diversidade de situações, tempos e lugares’ (DS 1728). Do ponto de vista canônico, deve-se dizer que quando um Papa escreve ‘concedemos perpetuamente’, deve-se sempre subentender ‘até que seja ordenado de outro modo’. É próprio da autoridade soberana do Romano Pontífice não ser limitado pelas leis meramente eclesiásticas, muito menos pelas disposições dos seus Predecessores. Ele é ligado somente à imutabilidade das leis divina e natural, além da própria constituição da Igreja[4].

Logo, embora a bula “Quo primum tempore” fale de um indulto perpétuo para celebrar segundo o Missal Romano de 1570, tal “perpetuidade” termina quando um Papa posterior dispõe de outro modo. Foi, portanto, legitimamente que o Papa São Paulo VI promulgou o “novo Missal” de 1969 para substituir o de 1962, promulgado por São João XXIII.

A língua litúrgica e a orientação do celebrante

Há quem pense que a diferença entre a Missa que hoje celebramos e aquela de 1962 esteja sobretudo na língua (latim / vernáculo) e na orientação do celebrante (voltado para o tabernáculo / voltado para o povo). Na verdade, a Constituição “Sacrossanctum Concilium” preceituou: “Salvo o direito particular, seja conservado o uso da Língua Latina nos Ritos latinos” (SC 36 §1º). Mesmo quando fala da possibilidade de dar algum lugar à língua vernácula, o documento acrescenta: “Todavia, providencie-se que os fieis possam juntamente rezar ou cantar em língua latina as partes do Ordinário que lhes compete” (SC 54). A desaparição completa do latim na Missa nada tem a ver com os preceitos do Concílio Vaticano II.

Joseph Ratzinger, em sua magnífica “Introdução ao espírito da liturgia”, explica que o Concílio não fala de uma “disposição voltada para o povo”. A orientação primitiva não era versus populum, mas versus Orientem. O povo e o celebrante se voltavam juntos para o Oriente, “para o Cristo que avança e vem ao nosso encontro” [5].

O atual Missal, de fato, não impede a celebração em latim e estando o sacerdote celebrante voltado para o tabernáculo.

O Lecionário

Diz o convertido Scott Hahn em sua já citada obra:

As leituras que ouvimos na missa são programadas com antecedência para um ciclo trienal em um livro chamado Lecionário. Esse livro é antídoto eficaz para a tendência que eu tinha, como pregador protestante, de identificar os meus textos favoritos e pregá-los inúmeras vezes. Eu passava anos sem tocar em alguns livros do Antigo Testamento. Isso nunca é problema para os católicos que participam regularmente da missa[6].

Um livro de leituras – Lecionário – destacado do Missal foi um grande presente feito a nós pela Igreja com a reforma litúrgica. Até o Missal de 1962, a quantidade de textos bíblicos era tão pequena, que cabia no próprio livro do Missal. Hoje, o sacerdote pode, em três anos, na Missa Dominical, pregar sobre o Evangelho segundo São Mateus (Ano A), São Marcos (Ano B) e São Lucas (Ano C). E nos dias de semana, pode, em um ciclo de dois anos (Ano Par e Ano Ímpar) alimentar os fiéis com uma abundância de textos do Antigo e Novo Testamento.

Ato penitencial

Na fórmula de confissão dos pecados, a reforma litúrgica fez bem em acrescentar o pecado de omissão, após os “pensamentos, palavras e atos”.

São palavras do grande orador Pe. Antônio Vieira:

A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificilmente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo[7].

No entanto, a reforma suprimiu um belo diálogo que, no missal de 1962, havia entre o celebrante e a assembleia. Primeiro o celebrante se confessava ao povo, depois o povo se confessava ao celebrante pedindo um ao outro orações mútuas por seus pecados. Nesse diálogo, acentuava-se que o sacerdócio ministerial (do celebrante) e o sacerdócio comum (dos fiéis) “diferenciam-se na essência e não apenas em grau”[8] conforme ensinou o Concílio. A supressão deve ter sido feita em nome da simplificação, mas pode ter causado um empobrecimento na liturgia.

Concelebração

A concessão da faculdade de concelebrar, “que apropriadamente manifesta a unidade do sacerdócio” (SC 57) foi uma boa medida da reforma. Porém, não parece ter sido feliz que, durante a Oração Eucarística, somente o celebrante principal se ajoelhe, os demais fazendo apenas uma inclinação sobre as espécies consagradas.

Maria Mãe de Deus

Não é possível analisar minuciosamente o novo calendário litúrgico, comparando-o com o anterior. Mas há uma novidade inegavelmente boa: a celebração de Maria Mãe de Deus no início do ano civil (dia 1º de janeiro) como uma Solenidade! No calendário antigo, a Maternidade Divina era uma festa de segunda classe celebrada no dia 11 de outubro.

Quatro Orações Eucarísticas

Além do Cânon Romano (Oração Eucarística I), cuja forma fixou-se entre os séculos IV e V, a reforma litúrgica nos presenteou com mais três orações eucarísticas (II, III, IV). Estas últimas trouxeram explícita a epiclese ou invocação do Espírito Santo sobre as oferendas a serem consagradas, como ocorre nas liturgias orientais.

Conclusão

A solução para a crise religiosa que se seguiu à reforma litúrgica de 1969 não está no retorno puro e simples ao missal de 1962. Não se deve desprezar as muitas coisas boas que a reforma nos trouxe. Se em alguns pontos a reforma não foi feliz, podemos respeitosamente sugerir que tais erros sejam corrigidos (sem, porém, suprimir os acertos). Críticas construtivas são sempre bem-vindas. O que não se pode é, em nome da “Tradição”, fazer guerra ao Papa e aos seus legítimos atos de governo.

 

Anápolis, 9 de março de 2022.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

 



[1] http://www.helpersbrooklynny.org

[2] J. RATZINGER. La fiesta de la Fe: ensayo de teología litúrgica. 3. ed. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1999, p. 116-117. Citado por Dom Fernando Arêas RIFAN. Considerações sobre as formas do Rito Romano da Santa Missa. Campos dos Goytacazes: A.A. S. João Maria Vianney, 2007, p. 44.

[3] Scott HANN. O banquete do Cordeiro: a missa segundo um convertido. 7. ed. São Paulo: Loyola, 2006. Cada citação será acompanhada do respectivo número da página, entre parênteses.

[4] Cf. Dom Fernando Arêas RIFAN. Considerações sobre as formas do Rito Romano da Santa Missa… p. 45-46. O inteiro teor da resposta está em http://www.unavox.it/doc11.htm

[5] Cf. Joseph RATZINGER. Introdução ao espírito da liturgia. São Paulo: Loyola, 2013, p. 67-70.

[6] Scott HAHN, O banquete do cordeiro, p. 51.

[7] Antônio VIEIRA, Sermões: Padre Antônio Vieira. São Paulo: Hedra, 2000, tomo 1, p. 379

[8] Constituição Dogmática “Lumen Gentium”, n. 10.

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