(Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim – Mt 19,14)

“Os pais têm a obrigação de cuidar que as crianças sejam batizadas dentro das primeiras semanas” (cân. 867 §1º). “Se a criança estiver em perigo de morte, seja batizada sem demora” (cân. 867 §2º) “mesmo contra a vontade dos pais” (cân. 868 §2º). Essas normas canônicas baseiam-se na fé da Igreja de que o Batismo é necessário para a salvação, conforme disse Nosso Senhor: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5). E ainda: “Aquele que crer e for batizado, será salvo; o que não crer será condenado” (Mc 16,16).

O mandamento de batizar “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” dirige-se a “todas as nações” (Mt 28,19), sem fazer alusão específica às crianças. Mas a Escritura fala de pessoas que foram batizadas com toda a sua família. Assim, Lídia, em Filipos, foi batizada, “ela e os de sua casa” (At 16,15). O carcereiro de Filipos recebeu o batismo, “ele e todos os seus” (At 16,33). São Paulo batizou “a família de Estéfanas” (1Cor 1,16). O próprio Martinho Lutero cita tais passagens bíblicas para confirmar que as crianças devem ser batizadas[1]. A rejeição do Batismo de crianças veio num momento posterior do protestantismo.

O destino das crianças mortas sem o Batismo

Santo Agostinho (séc. IV), em sua controvérsia com Pelágio, que negava a necessidade da graça para a salvação, foi induzido a afirmar que as crianças mortas sem o Batismo vão para o inferno, uma vez que não foram purificadas do pecado original e não há um lugar intermediário entre o inferno e o paraíso. No inferno, porém, tais crianças sofrem uma pena suavíssima, a mais leve de todas.

Na Idade Média, vão surgindo teorias mais benignas para o destino de tais crianças. Se elas não podem ver a Deus, por não terem sido libertas do pecado original, também não podem ir ao inferno, pois nunca cometeram qualquer pecado atual. Gozam assim de uma felicidade não sobrenatural, mas natural. Ora, argumenta Santo Tomás de Aquino (séc. XIII), como só pela fé conhecemos nosso fim sobrenatural (a visão beatífica), as crianças que morrem sem o Batismo não conhecem aquilo de que são privadas e, por conseguinte, não sofrem pela privação da visão beatífica. Esse estado de felicidade natural, conhecido como “limbo”, tornou-se doutrina católica comum até a metade do século XX. Nunca, porém, foi definida como verdade de fé.

O atual Catecismo da Igreja Católica (1992/97) não fala mais do limbo. “A grande misericórdia de Deus […] e a ternura de Jesus para com as crianças […] nos permitem esperar que haja um caminho de salvação para as crianças mortas sem Batismo” (n. 1261). O texto fala de uma “esperança”, não de uma certeza. E continua: “Eis porque é tão premente o apelo da Igreja de não impedir as crianças de virem a Deus pelo dom do santo Batismo” (n. 1261).

Em 2007, a Comissão Teológica Internacional publicou um documento chamado “A esperança de salvação para as crianças que morrem sem Batismo[2]. O texto afirma que a teoria do limbo “permanece uma opinião teológica possível” (n. 41). “É preciso reconhecer claramente que a Igreja não tem um conhecimento certo da salvação das crianças que morrem sem batismo” (n. 79). E ainda: “A Igreja não conhece [fora do Batismo] nenhum outro meio capaz de assegurar o acesso à vida eterna a essas crianças” (n. 29). Admite o ensinamento de Inocêncio III “segundo o qual os que morrem com o pecado original estão privados da visão beatífica”[3] (n. 83). Mas pergunta “se as crianças que morrem sem batismo morrem necessariamente com o pecado original, sem um remédio divino” (n. 83).

Segundo Pio XII: “o estado de graça no momento da morte é absolutamente necessário para a salvação; sem isso não é possível chegar à felicidade sobrenatural, a visão beatífica de Deus”[4]. Mas poderia Deus, por meios extraordinários, conceder o estado de graça às crianças não batizadas antes que elas morressem? Poderia.

Segundo S. Tomás de Aquino, “Deus não vinculou seu poder aos sacramentos, de tal modo que não possa conferir o efeito dos sacramentos sem os sacramentos”[5].

“Deus pode, portanto, dar a graça do batismo sem que o sacramento seja administrado, fato que deveria ser recordado especialmente quando a administração do batismo for impossível” (n. 82). “Aqueles que choram sobre a sorte das crianças que morrem sem batismo, sobretudo seus pais, são, frequentemente pessoas que amam a Deus e deveriam ser consoladas por essas palavras” (n. 80).

Sobre as crianças abortadas, o documento traz um parágrafo interessante:

Algumas das crianças que sofrem e morrem são vítimas de violência. Nesse caso, tendo como referência o exemplo dos Santos Inocentes, podemos perceber uma analogia com o batismo de sangue, que traz a salvação. Ainda que inconscientes, os Santos Inocentes sofreram e morreram por Cristo. Seus carrascos eram movidos pelo intento de matar o Menino Jesus. Assim como aqueles que tiraram a vida dos Santos Inocentes estavam guiados pelo medo e pelo egoísmo, assim a vida das crianças de hoje, de modo particular aquelas que estão ainda no seio materno, são, frequentemente, colocadas em perigo pelo medo e pelo egoísmo de outros.

Nesse sentido, encontram-se em uma situação de solidariedade com os Santos Inocentes. Além disso, estão em uma situação de solidariedade com o Cristo, que disse: “Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). É vital para a Igreja proclamar a esperança e a generosidade, que são intrínsecas ao Evangelho e essenciais para a proteção da vida (n. 86).

Boas novas

“O Ordinário local pode permitir que tenham exéquias as crianças que os pais tencionavam batizar, mas que morreram sem batismo” (cân. 1183 §2º). O que diz esse cânon é uma novidade.

Antes do Concílio Vaticano II, na Igreja latina não existia um rito fúnebre pelas crianças não batizadas, que eram sepultadas em terra não consagrada. […] Graças à reforma pós conciliar, o Missal Romano tem, agora, uma missa fúnebre pelas crianças que morrem sem batismo e, além disso, outras orações especiais no Ordo exsequiarum [Ritual de exéquias] para este caso (n. 90).

Ao conceder sepultura eclesiástica e Missa fúnebre para tais crianças, a Igreja exprime hoje a esperança na misericórdia de Deus, a quem os pequeninos são confiados.

Note-se bem. Agora que o limbo é tratado como uma hipótese, mas não a única possível, abre-se a esperança de que as crianças mortas sem o batismo sejam não apenas criaturas racionais, mas filhas de Deus. O novo tom do discurso permite-nos, com maior ardor, exigir dos hospitais que entreguem aos pais o corpo das crianças vítimas de aborto espontâneo e exigir dos Municípios que concedam a elas uma sepultura digna.

O dever de batizar permanece

O documento conclui com uma prudente advertência:

O que nos foi revelado é que o caminho ordinário de salvação passa através do sacramento do batismo. Nenhuma das considerações expostas anteriormente pode ser adotada para minimizar a necessidade do batismo, nem para retardar a sua administração (n. 103).

 

Anápolis, 8 de fevereiro de 2022.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis



[1]Como se prova que também as criancinhas devem ser batizadas?

Criancinhas devem ser batizadas 1º porque elas pertencem a todas as nações; 2º porque são carne nascida da carne e por isso necessitam da regeneração; 3º porque o Santo Batismo, quanto sabemos, é o único meio pelo qual pode ser operada nas criancinhas a fé salvadora” (Catecismo Menor do Doutor Martinho Lutero, publicado pela Igreja Evangélica Luterana do Brasil, 7. ed. Porto Alegre: Concórdia, 1957, p. 135, pergunta 291).

[3] “A pena do pecado original é a privação da visão de Deus, enquanto a pena do pecado atual é o tormento do inferno eterno” (DH 780).

[4] PIO XII. Alocução sobre o apostolado das parteiras (29 out. 1951), n. 19.

[5] S. TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica III, q. 64, a. 7, resp.

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