(e quem pediu ajuda à Justiça é condenado por danos morais)

O dia 28 de setembro é tradicionalmente usado pelas feministas para gritar em favor da descriminalização e legalização do aborto. Neste ano elas aproveitaram a data para noticiar, com grande estardalhaço: “Justiça condena padre por impedir aborto legal”[1]. A condenação ocorreu em 2016 pelo STJ, mas neste ano a sentença transitou em julgado[2]. Isso serviu de pretexto para ressuscitar o caso e espalhar desinformações e difamações. Veja abaixo alguns boatos que têm circulado e o que realmente aconteceu.

Boato: Em outubro de 2005, a jovem Tatielle (19 anos) saiu de Morrinhos (GO) para Goiânia a fim de fazer um aborto legal.

Fato: Nenhum aborto é legal. Mas o aborto que se pretendia fazer em Geovana (filha de Tatielle), criança deficiente com síndrome de “body stalk”[3], nem sequer se enquadrava nas hipóteses de não aplicação da pena do artigo 128 do Código Penal. O médico que fizesse tal aborto deveria, pela lei brasileira, sofrer pena de reclusão de um a quatro anos (art. 126, CP).

Boato: O juiz da primeira vara criminal de Goiânia havia autorizado o aborto de Geovana. A autorização judicial tornou o aborto legal.

Fato: Se um juiz autoriza um crime (por exemplo, o assalto a um banco), o crime continua sendo crime. O único efeito de uma autorização “judicial” para o aborto é tornar o juiz coautor do crime.

Boato: Era preciso abortar Geovana porque sua mãe Tatielle estava correndo risco de morte.

Fato: Uma deficiência do bebê, como aquela que sofria Geovana, não acrescenta à mãe nada aos riscos normais de uma gravidez. Além disso, “em casos extremos, o aborto é um agravante e não uma solução ao problema”[4].

Boato: Geovana era um “feto inviável”. Não era justo obrigar Tatielle a prosseguir com a gravidez.

Fato: Geovana era uma criança gravemente deficiente. Sua deficiência e sua curta expectativa de sobrevida não a tornavam menos digna de respeito. A vida humana vale em si mesma. Não vale pela saúde, pela duração, pelo lugar (dentro ou fora do útero) nem por qualquer outro critério extrínseco. A obrigação de Tatielle e a de todos nós em relação a Geovana era uma só: não matar.

Boato: Um padre não tem o direito de impetrar “habeas corpus” em favor de uma criança por nascer.

Fato: Qualquer cidadão, padre ou leigo, cristão ou pagão, tem o direito, assegurado pela Constituição Federal, de impetrar ordem de habeas corpus “sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (art. 5º, LXVIII, CF). O habeas corpus é o remédio heróico. Não requer contratação de advogado e a petição pode ser redigida até em um papel de guardanapo.

Boato: O padre foi o culpado de a mãe não ter exercido seu direito ao aborto.

Fato: Não existe “direito ao aborto”. Se o Desembargador Aluízo Ataíde de Souza, do Tribunal de Justiça de Goiás, concedeu uma liminar em 14/10/2005 cassando a autorização do juiz, é porque entendeu que o juiz havia agido com ilegalidade e abuso de poder quando permitiu a morte de uma criança deficiente.

Boato: Se o “habeas corpus” não tivesse sido impetrado por um padre, o desembargador não teria concedido a liminar.

Fato: Na petição, que teve que ser redigida a mão sobre o balcão da primeira vara criminal de Goiânia[5] em 11/10/2005, eu me identifiquei como “estudante de Direito”[6] e não como padre. E apresentei argumentos jurídicos. O desembargador, quando leu a petição, julgou o pedido procedente, mesmo sem saber que o impetrante era padre.

Boato: O padre nem foi visitar Tatielle quando ela foi impedida pela justiça de fazer o aborto.

Fato: Quando impetrei o habeas corpus, temia que o aborto já tivesse sido feito ou que a liminar chegasse tarde demais[7]. Meu temor foi confirmado quando em 15 de outubro de 2005, foi publicada uma notícia no jornal O Popular com o seguinte teor:

OPop151005

O desembargador Aluísio Ataídes de Sousa, em decisão de gabinete, suspendeu ontem alvará judicial que autorizou aborto de feto com síndrome de Body Stalk, em gestante de 19 anos. A decisão, entretanto, perdeu objeto, pois o procedimento já foi realizado[8].

Diante da notícia do aborto já consumado, dei o caso por encerrado. Vários dias depois, porém, eu saberia que tal notícia não era verdadeira. A liminar havia chegado a tempo de salvar Geovana da morte. Ela estava para ser abortada no dia 14/10/2005, quando chegou ao Hospital Materno Infantil (Goiânia) a decisão liminar do Desembargador Aluízo Ataíde de Souza sustando o aborto e cassando a sentença que o autorizara.

Se eu soubesse que Geovana estava viva no ventre materno e que seus pais haviam voltado com ela para Morrinhos (GO), sem dúvida teria ido visitá-los, acompanhá-los durante a gestação, exortá-los a amarem sua filha até o último momento, oferecer-lhes assistência durante o parto (como fez nossa instituição com tantas outras gestantes) e, em se tratando de uma criança com risco de morte iminente, batizá-la logo após o nascimento. E se ela falecesse, para mim seria uma honra fazer suas cerimônias fúnebres e acompanhar a família até o cemitério.

Boato: Ao ver nascer uma criança “mostruosa” sua mãe sentiu repulsa.

Fato: Provavalmente a jovem mãe se apaixonou pela filha ao vê-la nascer. Como, segundo diz a fábula, a coruja acha seus filhotes os mais lindos do mundo, o normal é que a mãe se encante pelo bebê recém-nascido, qualquer que seja sua aparência. O que deve ter entristecido Tatielle foi a morte prematura de Geovana, que ocorreu uma hora e quarenta minutos após o nascimento[9]. Mas sua filha foi registrada em cartório como cidadã e recebeu uma sepultura no Cemitério São Miguel, de sua cidade. Um destino bem mais nobre do que o de ser descartada como lixo hospitalar.

Boato: O padre causou danos morais em Tatielle ao impedir que ela fizesse o aborto. Por isso é justo que ele tenha sido condenado a pagar uma indenização.

Fato: Os pais de Geovana (Tatielle e José Ricardo) são pessoas simples, moram no interior de Goiás e foram instrumentalizados por organizações feministas para se tornarem ícones da causa abortista. Se, por absurdo, Tatielle se sentisse triste por não ter podido abortar sua filha e desejasse uma compensação financeira, sua advogada deveria pedir indenização não a quem impetrou o habeas corpus, mas ao desembargador que, representando o Poder Judiciário, cassou a autorização para abortar.

Boato: O ministro Dias Toffoli, do STF, confirmou a condenação do STJ ao padre que impetrou “habeas corpus”.

Fato: A ação indenizatória contra mim (que pedia R$ 100.000,00) foi proposta em 2008. Foi rejeitada tanto pelo Fórum de Goiânia quanto pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Então a advogada interpôs um Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e um Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF). Surpreendentemente, no STJ a relatora Ministra Nancy Andrighi reverteu a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás condenando-me, em 20/10/2016, a pagar R$ 60.000,00 (sessenta mil reais)[10]. Toda a 3ª Turma do STJ acompanhou o voto da relatora.

Quanto ao STF, ele nada mais fez do que julgar prejudicado o Recurso Extraordinário, uma vez que a pretensão da recorrente já havia sido atendida pelo STJ. Assim decidiu corretamente o ministro Dias Toffoli, em decisão de 17/06/2020 publicada no Diário de Justiça Eletrônico em 24/06/2020, sem sequer entrar no mérito do recurso.

Boato: A sentença que condenou o padre foi uma derrota para a Igreja Católica.

Fato: As perseguições nunca foram derrotas para a Igreja, mas ocasiões de purificação e crescimento para os cristãos. A sentença foi uma derrota sim para o exercício da cidadania. Ela criou um precedente perigoso. De agora em diante, se alguém chamar a polícia e ela prender um ladrão, este poderá talvez exigir uma indenização não da polícia, mas de quem a informou do assalto que ele estava para realizar. Se um juiz condenar um criminoso, este poderá, quem sabe, responsabilizar civilmente o promotor que o denunciou por lhe ter causado danos morais. E assim por diante…

Anápolis, 12 de outubro de 2020

Solenidade de Nossa Senhora Aparecida.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

 



[2] Diz-se que uma sentença “transita em julgado” quando não cabe mais recurso contra ela.

[3] Síndrome de “body stalk” é uma má-formação que consiste na ausência ou encurtamento do cordão umbilical, com os órgãos abdominais fora da cavidade e diretamente ligados à placenta. A criança costuma morrer pouco depois do nascimento.

[4] ACADEMIA DE MEDICINA DO PARAGUAI. Declaração de 04/07/1996.

[5] Não me foi permitido retirar os autos para fotocopiá-los.

[6] Na época eu cursava o quarto ano do curso de Direito da Universidade Federal de Goiás.

[7] Como já havia ocorrido outras vezes.

[8] Waldineia LADISLAU. Aborto negado e decisão nula. Goiânia, O Popular, 15 out. 2005, p. 8. O destaque é nosso

[9] Geovana Gomes Lomeu nasceu em Morrinhos no dia 22/10/2005 às 12 horas e faleceu às 13h40 do mesmo dia. Infelizmente não foi batizada.

[10] Segundo as feministas, este valor teria chegado agora, com juros moratórios e correção monetária, até cerca de R$ 400.000,00.

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