Coração Imaculado de Maria,
livrai-nos da maldição do aborto!

(De Joana d’Arc a Joana Ribeiro Zimmer)

Em 9 de janeiro de 1431, teve início o iníquo julgamento de Joana D’Arc, dirigido pelo bispo francês Pierre Cauchon, defensor dos interesses ingleses na Guerra dos Cem Anos. Depois de muitas falsas acusações a heroína francesa, com apenas 19 anos de nascida, seria queimada viva em 30 de maio de 1431.

Em 20 de junho de 2023, Joana Ribeiro Zimmer, uma juíza de Santa Catarina, foi alvo de um primeiro julgamento pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Reclamação Disciplinar 0003770-59.2022.2.00.0000 em desfavor da magistrada teve como relator o Ministro Corregedor Luís Felipe Salomão, um dos quinze membros do Conselho.

O motivo da reclamação era a juíza, no exercício de sua função na Comarca de Tijucas (SC), ter tentado impedir o aborto de uma criança de 22 semanas de vida (mais de cinco meses) dentro do útero de outra criança de 11 anos de nascida, que engravidou ao praticar o ato sexual com um menino de 13 anos. O diálogo entre a juíza e a menina, em uma audiência de 5 de maio de 2022, envolvendo também a promotora Mirela Dutra Alberton (do Ministério Público de Santa Catarina) foi criminosamente vazado e exposto na página “The Intercept”, violando o segredo de justiça do processo.

Na referida audiência, a juíza e a promotora, fazendo jus à sua vocação à maternidade e ao dever institucional de proteger a vida, procuraram convencer a menina a desistir da ideia do aborto proposto por sua mãe.

Eis algumas perguntas da juíza: “Você sente o neném mexer?”, “Você quer esperar [o neném] nascer?”, “Quanto tempo você aceitaria ficar com o bebê em sua barriga … para a gente fazer a retirada antecipada do bebê para outra pessoa cuidar, se você não quiser?”, “Você suportaria ficar mais um pouquinho com o bebê?”, “Mais duas semanas, três semanas?”, “Você aceitaria que a gente entregasse para um outro casal ser pai e mãe do bebê?”, “Você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega para adoção?”.

Agora, trechos da fala da promotora: “O seu bebê já está completo. Ele já é um ser humano. Consegue entender isso? Ele já está com quase seis meses. Há bebês que nascem até antes e ainda sobrevivem”. “Em vez de deixá-lo morrer, porque já é um bebê, já é uma criança… Em vez de a gente tirá-lo da sua barriga e ele morrer agonizando… ele vai nascer chorando… A gente tira [o bebê], dá todos os suportes médicos para que ele sobreviva, e entrega para um casal, para adoção. Você aceitaria então ficar mais duas semanas?”

Embora a Constituição Federal declare que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, LVI), todo o julgamento se baseou nos dados obtidos pela violação de um segredo de justiça.

Deixando de lado a sabedoria salomônica, o relator Luís Felipe Salomão votou pela instauração do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) em desfavor da juíza. Seu voto foi acompanhado por todos os conselheiros. A última a votar foi a presidente da sessão, Ministra Rosa Weber, que disse: “O Estado é laico”.

Os fundamentos da instauração do processo

Quem assiste ao julgamento, disponível na página do CNJ[1], percebe uma indignação tamanha contra a juíza, que parece beirar o ódio. Tal repulsa é causada pelas seguintes convicções preconcebidas:

1) A união sexual entre a menina e o adolescente de 13 anos foi um “estupro de vulnerável” (art. 217-A, CP).

2) Há um aborto “autorizado” ou “permitido” pelo Código Penal quando a gravidez resulta de estupro (art. 128, II, CP).

3) Praticar o aborto em tal caso é um ato de “caridade”, que alivia sobremaneira o trauma deixado pelo estupro.

4) O nascituro (evita-se falar em “criança por nascer” ou “bebê em gestação”) não é pessoa, nem tem direitos. É mera “expectativa de pessoa” com “expectativa de direitos”. Somente se nascer com vida ele será pessoa e terá direitos (art. 2º, CC).

5) O juiz, que representa o Estado “laico”, não pode tentar impedir uma gestante de exercer seu “direito” de praticar um aborto.

Examinemos uma a uma as afirmações acima.

O estupro que não houve

De fato, constitui “estupro de vulnerável”, sujeito à reclusão de oito a quinze anos, “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” (art. 217-A, CP), ainda que de maneira consensual. Mas a lei 12.015/2009, que definiu esse crime, mudou também a redação do artigo 213, que trata do crime de estupro. Antigamente, somente um homem poderia ser autor de um estupro e só uma mulher poderia ser vítima desse crime. Agora, o estupro se define como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (art. 213, CP). Surgiu então a figura da mulher autora de estupro. No caso em questão, menino e menina cometeram, um contra o outro, um ato infracional assemelhado ao estupro de vulnerável. Trata-se do que a doutrina veio chamar de “estupro bilateral”, onde ambos são autores do crime. Ora, como argumenta Eduardo Luiz Santos Cabette, “o aborto pelo qual não se pune a mulher que engravidou é aquele em que ela é a vítima do estupro e não a autora” [2]. No caso, em que o ato foi consensual, não houve estupro algum. Nem se pode falar da não aplicação da pena para o aborto praticado por médico (art. 128, II, CP).

E se tivesse havido estupro?

Se a menina houvesse sofrido um verdadeiro estupro por parte de um homem adulto e engravidasse em razão da violência sofrida, nem assim ela teria “direito” a um aborto. Pois o inciso II do artigo 128 do Código Penal não diz que o aborto “é permitido”. Nem sequer diz que “não é crime”. Diz apenas que tal crime “não se pune” quando “praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

Segundo o magistério de Ricardo Dip[3],

… a leitura do caput do mencionado art. 128 (“Não se pune etc.”) está, para logo, a sugerir que aí se acham causas isentas de apenamento ou, quando muito, excludentes da punibilidade […]. Está a cuidar-se das chamadas escusas absolutórias, causas que, excluindo a pena, deixam subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona”[4].

Não cabe, portanto, ao Código Penal, conceder permissão para violar o direito fundamental à vida, à propriedade ou à segurança pública. O máximo que a lei pode fazer é, se o crime já foi consumado, deixar de aplicar a pena ao criminoso por razões de política criminal. Eis alguns exemplos.

Se um crime de furto foi praticado por um filho contra o seu pai, a lei penal deixa o criminoso “isento de pena” (art. 181, CP), embora não aprove tal violação à propriedade. Se a mãe escondeu seu filho criminoso da polícia, a lei, por misericórdia, não lhe aplica nenhuma pena (art. 348, §2º, CP), embora não aprove o crime de favorecimento pessoal por ela praticado, que constitui um atentado à segurança pública. Analogamente, se já foi praticado por médico um aborto em uma mulher grávida em razão de estupro, o autor do crime fica isento de pena, mas de modo nenhum a lei aprova tal atentado à vida da criança por nascer. É preciso demolir o mito, apregoado por tantos livros de Direito Penal, de que existe um “aborto legal” em nossa pátria.

Seria absurdo se as escolas, confundindo a isenção de pena com a legalidade, declarasse que o furto praticado entre familiares é “legal”, e ensinasse aos alunos as maneiras mais seguras de surrupiar coisas do papai e da mamãe. Seria absurdo se as penitenciárias, confundindo a escusa absolutória com a permissão prévia para a prática do favorecimento pessoal, convocasse as mães dos detentos a fim de ensiná-las a esconder seus filhos delinquentes da autoridade pública. Mais absurdo ainda é os hospitais se equiparem para a prática do crime do aborto, por considerarem que tal crime se torna um “direito” quando a lei não aplica pena ao médico criminoso.

O alívio que o aborto não traz

Há uma lenda, escrita nos livros de Direito Penal, segundo a qual a mera visão da criança concebida em um estupro “perpetuaria a violência sofrida”, causando um dano insuportável para aquela que deu à luz. A mesma lenda apregoa que, em tal caso, o aborto constitui um maravilhoso “remédio” para o estupro. Tais afirmações gratuitas são transmitidas e aceitas sem nenhum questionamento. A realidade é bem outra. Quem já lidou por vários anos com mulheres, adolescentes e crianças grávidas em razão de estupro, sabe muito bem que, após o parto, a visão do bebê é extremamente agradável para a mãe. A criança não abortada passa a ser amada de maneira extraordinária, mais ainda que os outros filhos gerados no matrimônio. Ao contrário, as mulheres que, em tal caso, fazem aborto, não conseguem disfarçar a dor que sentem pela morte do filho. Paradigmático é o caso da jovem Karol, de São José da Costa Rica, vítima de estupro, que, arrependida pelo aborto praticado, terminou por suicidar-se[5].

Se o nascituro fosse pessoa…

Nas aulas de Direito Civil, costuma-se ensinar que o nascituro não é pessoa, porque “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida” (art. 2º, CC, parte inicial). No entanto, prossegue o mesmo artigo, “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (art. 2º, CC, parte final). Ora, se desde a concepção, o nascituro tem direitos, então ele é pessoa.

Essa redação contraditória, que já existia no artigo 4º do Código Civil de 1916, deu margem a grandes contendas. Em 1983, o Supremo Tribunal Federal, que, como se costuma dizer, tem o direito de “errar por último”, consagrou o erro de dizer que o nascituro não é pessoa e que tem mera expectativa de direitos:

CIVIL. NASCITURO. PROTEÇÃO DE SEU DIREITO, NA VERDADE PROTEÇÃO DE EXPECTATIVA, QUE SE TORNARÁ DIREITO, SE ELE NASCER VIVO[6].

A negação da personalidade do nascituro é fundamental para quem defende a tese do aborto “legal”. Afirma o Ministro Ayres Brito, no célebre julgamento da ADI 3510 (destruição de embriões humanos) que, se o “ser em gestação” fosse pessoa, ou seja, sujeito de direitos,

… então as duas exceções dos incisos I e II do art. 128 do Código Penal seriam inconstitucionais, sabido que a alínea a do inciso XLVII do art. 5º da Magna Carta Federal proíbe a pena de morte (salvo “em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”)[7]

O mesmo diz Ronald Dworkin, ferrenho defensor da decisão Roe versus Wade, de 1973, que declarou o aborto “legal” em todo o território estadunidense:

Do ponto de vista de que o feto é uma pessoa, uma exceção para o estupro é ainda mais difícil de justificar do que uma exceção para proteger a vida da mãe. Por que se deve privar um feto de seu direito a viver e obrigá-lo a pagar com a própria vida [por] um erro cometido por outra pessoa?[8]

Mas o nascituro é pessoa!

Depois que o Brasil subscreveu (1969), ratificou e determinou que se observasse integralmente (1992) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, tudo mudou. Vejamos alguns artigos desse precioso tratado internacional.

Art. 1º, n. 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Art. 3º. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

Art. 4º, n. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Que diz o artigo 3º? Que “toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”. Mas, o que a Convenção chama de “pessoa”? A resposta está no artigo 1º, n. 2.: “para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano. Logo, segundo a Convenção, todo ser humano (= toda pessoa) tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica! Note-se que o direito de ser reconhecido por lei como pessoa é assegurado a todo ser humano. Não há, no artigo 1º, n. 2 nem no artigo 3º, a expressão “em geral” (que só aparece no artigo 4º, n. 1) ou qualquer outra que possa ser interpretada como excepcionalidade. Logo, “desde a concepção” todo ser humano tem o direito de ser reconhecido como pessoa. Portanto, o nascituro é pessoa e deve ser reconhecido como tal.

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Em 2009, o Supremo Tribunal Federal fixou o entendimento de que os tratados internacionais sobre direitos humanos – entre eles o Pacto de São José da Costa Rica – ocupam um nível supralegal, “estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna”. O mesmo acórdão, que declarou inaplicável a prisão do depositário infiel, prossegue dizendo:

O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão[9].

Assim, o Pacto de São José da Costa Rica torna inaplicável não só o artigo 652 do Código Civil (que permite a prisão do depositário infiel) mas também a primeira parte do artigo 2º do mesmo Código (que nega o reconhecimento da personalidade ao nascituro). Torna ainda inaplicável os incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, se forem interpretados como hipóteses de “permissão” para o aborto. Logo, no ordenamento jurídico brasileiro não há aborto legal.

A louvável atuação da juíza

O Poder Judiciário existe não para fomentar a prática do crime, mas para impedir sua prática ou, se o crime já foi praticado, aplicar ao culpado a pena prevista em lei.

No caso da menina de 11 anos e sua mãe, a juíza poderia simplesmente despedi-las, explicando que não existe o pleiteado aborto “legal”. Ela, porém, não se contentou em aplicar a letra fria da lei. Procurou, com um diálogo amável, convencer mãe e filha a desistirem de fazer o que a lei proíbe: matar uma pessoa por nascer.

A conversa, ilegalmente vazada e tornada pública, deveria ser objeto de louvor pelo Conselho Nacional de Justiça. Não são todos os magistrados que demonstram tanta ternura e amabilidade no trato com uma criança, valorizando a sua precoce maternidade e a vida intrauterina já tão adiantada.

Lamentavelmente, o aborto acabou sendo praticado no dia 22 de junho de 2022, quando o bebê já estava no sétimo mês de vida. Não foi revelado o método de aborto utilizado pela equipe médica do Hospital Universitário da UFSC. Provavelmente não foi uma simples operação cesariana. Se assim fosse, o bebê retirado sairia vivo e chorando. Matá-lo fora do ambiente materno configuraria crime de homicídio. Para conservar o “preconceito de lugar”, os médicos devem ter matado o nascituro ainda dentro do útero, possivelmente com uma injeção de cloreto de potássio no coração. Só depois devem ter retirado o cadáver do ventre da menina. Essa cena sim é absolutamente repugnante, e os que foram envolvidos nela deveriam ser cuidadosamente investigados.

O perigo da criação de um precedente

O que o CNJ julgou em 20 de junho de 2023 não foi o mérito da questão, mas apenas a existência de indícios de conduta que justificassem a abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Mas os ânimos do relator Salomão e demais conselheiros se demonstraram tão exaltados, que a condenação da juíza no PAD parece inevitável. A menos que o relator, honrando a sabedoria do homônimo rei de Israel, reconheça seu engano e apresente um voto pela absolvição da requerida.

Se, porém, o Conselho condenar a magistrada, será criado um nefasto precedente que favorecerá a promiscuidade sexual entre adolescentes, com a garantia de que uma eventual gravidez será garantida pelo Estado como um “direito” da adolescente “vítima”, qualquer que seja a etapa da gestação. Além disso, será consolidada a errônea tese de que o nascituro não é pessoa e de que existem hipóteses de aborto “legal” no Brasil. Por fim, tal precedente estimulará a Ministra Rosa Weber, presidente do STF, a colocar em pauta a ADPF 442, que pretende liberar o aborto até 12 semanas de gravidez.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Vice-presidente do Pró-Vida de Anápolis.

[1] https://www.cnj.jus.br/juiza-que-impediu-crianca-gravida-de-realizar-aborto-sera-investigada-pelo-cnj/

[2] https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-estupro-o-aborto-e-a-mentira/1554460971

[3] Atualmente desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.

[4] Ricardo Henry Marques DIP. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico: alvará para matar. Revista dos Tribunais, dez. 1996. p. 531-532.

[5] http://salvarel1.blogspot.com/2016/04/se-lo-horrible-que-es-la-violacion-pero.html

[6] Recurso Extraordinário 99038/MG – Rel. Francisco Rezek, Julgamento: 18 out. 1983, Segunda Turma, DJ 05 out.1984, p.16.452.

[7] ADI 3510. Voto do relator, 5 mar. 2008, n. 28, p. 32.

[8] Ronald DWORKIN. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 131-132

[9] Recurso Extraordinário 349703/RS, publicado em 05/06/2009.

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